O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Antonio Machado e Fernando Pessoa

Publico o final da comunicação que apresentarei amanhã, às 11 h 30 m, com o título "Mesmidade e Alteridade em Antonio Machado e Fernando Pessoa", nas Jornadas Luso-Espanholas de Filosofia "Filosofia e Literatura na Península Ibérica: Respostas à Crise Finissecular", que decorrem hoje e amanhã na Academia Portuguesa da História, no Palácio dos Lilases, Alameda das Linhas de Torres, nºs 198-200, em Lisboa.

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A meio caminho entre esta soberania vazia, sem id-entidade e logo sem alteridade, irredutível a qualquer relação mesmo-outro, e a absoluta identidade heterofágica para que tende o sonho de ser Deus-tudo em Bernardo Soares, o Pessoa ortónimo vive a experiência heteronímica como imitação de uma singular criação divina do mundo. Num poema escrito em 1930, Pessoa parte da assunção do querer “sentir tudo / de todas as maneiras” para uma contemplação do mundo em que o sujeito, em vez de possuir o que vê, se dispersa em cada coisa que contempla e em cada pensamento que o “torna já diverso”. Sendo “estilhaços do ser” as “coisas dispersas” do mundo, a intensa atenção que lhes dedica converte-se também numa fragmentação da “alma em pedaços / E em pessoas diversas”, que revelam o erro de alguém se julgar “próprio”, dotado da unidade de uma identidade senhora de si: “Quem se crê próprio erra, / Sou vário e não sou meu”. Sendo as “coisas” do mundo não só “estilhaços” ontológicos mas também gnosiológicos, não só do “ser”, mas ainda “do saber do universo”, o sujeito assume não ser senão os seus “pedaços, / impreciso e diverso”. Perante a irredutível alteridade de quanto sente e a ausência de si mesmo (“de mim sou ausente”), na medida em que o sujeito deixou de ser um centro unificado na relação consigo e com o mundo, interroga-se “como é que a alma veio / A acabar-se em ente?”, o que entendemos como a perplexidade perante a falácia da representação dominante da “alma” como uma id-entidade que plenamente se possui. É aqui que proclama a descoberta deste outro modo de ser, plural e não singular, múltiplo e não uno, como uma correspondência à criação divina, entendida heterodoxamente como uma pluralização do próprio Deus em diversas modalidades de si: “Assim eu me acomodo / Com o que Deus criou, / Deus tem diverso modo / Diversos modos sou”. A explosão e fragmentação heteronímica é na verdade uma imitatio Dei, pois Deus ao criar retira “o infinito / E a unidade” ao “que é”, o que deixa supor que a totalidade dos existentes não é senão a plural modalização de um Deus que ao criar se finitiza e multiplica, como no sentido da divina autotransgressão criadora em Teixeira de Pascoaes.

A heteronímia, sendo afinal a protagonização e experiência íntima de uma divina heterogeneização, mostra a aventura pessoana como um outro modo de ser Deus, um Deus em autopoética alteração criadora, dinâmica e potencialmente extensiva a outros sujeitos, que assim, repetimos, medeia entre o absoluto vazio trans-divino do “King of Gaps” e a absoluta divinização do sujeito em Bernardo Soares. A experiência desta humana e divina heterogeneização parece aproximar o pensamento heteronímico de Pessoa desse “pensamento mágico” de Martín que veicula a “essencial heterogeneidade da substância única”, a “imanente outridade (otredad) do ser que se é”, o quieto e “perpétuo câmbio” da própria substância, o “câmbio substancial”. Isto, contudo, não por via da “sede metafísica do essencialmente outro”, ou seja, do “amor”, como “autorevelação” da heterogeneidade do ser, como acontece no apócrifo machadiano. Se o amor é, tanto em Machado como em Pessoa, uma fantasia e uma impossibilidade, ao menos em Machado ele revela a deiscente verdade do ser.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Uma peça de teatro para pensar a vida e a Europa

No início ela está sentada e diz: ainda não estão todos. Podem falar ainda. Depois não vos deixarei. Ela é Beatriz Batarda e é seguramente uma das poucas pessoas com quem fico apaziguada por me mandar calar. Ela está sentada à beira do palco a ver-nos chegar. Como se nos esperasse. O texto que irá representar talvez justifique o que faz quando nos recebe. Uma perna vai para a frente e para trás, como um pêndulo que procura o ritmo ou como um ritmo que a sustém vindo das profundezas do texto. Depois tem os braços em torno da outra perna curvada e vai-nos olhando nos olhos. Um a um, à medida que entramos. O cenário é simples: uma mão gigante desenhada no chão, numa fina alcatifa cinzenta, ou um grande pé, para o caminho que durante 50 anos esta mulher, vestida de homem e de todos os personagens, tem que percorrer para sobreviver.
A peça é um monólogo e Ella Gerricke faz de homem quase desde o início dos vinte e seis quadros que compõem o texto. Ela, Ella Gerricke, faz de homem, o marido que morreu de cancro, porque tem que sobreviver, porque já era pobre, porque a História interrompeu o seu sonho interminável de ser a Branca de Neve. Desde cedo, e para ter trabalho, esta mulher aprende a imitar os gestos masculinos que a tornam controladora de uma grua. Mas não é apenas no trabalho que ela tem que ser homem: na taberna, na rua, entre as crianças, depois com a subida de Hitler ao poder, ela tem que o ser na trincheira, na fábrica, escapar às inspecções e, entre os soldados, escapar ao desassossego das perseguições e excessos de uma sexualidade tão desenfreada e violenta como a da guerra. Prostitui-se, rouba, trabalha nos campos e nas fábricas de plástico que têm sucesso. Ela, Ella Gerricke, tem que matar, tem que sofrer e sofrer e continuar a sofrer sem redenção durante cinquenta anos. Entre certos quadros, Ella, não sabe quem é. E isso enfraquece-a. No texto de Manfred Karge ela está dilacerada e infeliz. Esse enfraquecimento não é do coração. A personagem diz mesmo, para mostrar o carácter orgânico do desconforto, que lhe dói “ali” e “ali” é o estômago. Ela tem fome da vida plena. A vida não saciou a sua vontade de viver e ser. Nesses instantes de consciência de si, Ella evoca a Branca de Neve. Essa evocação é uma invocação de uma dupla infância: a sua e a da Europa de Outrora. Ela não se reconhece nem no fascismo, nem no comunismo, quando trabalha na URSS, nem no capitalismo. Ella não se reconhece na Europa. A limite o texto mostra que não é apenas Ella Gerricke que não tem identidade, é a Europa que perdeu aquela que nasceu na Grécia e vinha insuflada pelo oriente. A dupla evocação é a dupla perda: a da infância de um ser humano, a infância cultural de um continente, a Europa, que se perdeu do mito e das bodas de Cadmo e Harmonia.
Sendo teatro difícil, político e difícil como o são as peças da Cornucópia, penso que essa é a mais fina e subtil relação analógica que o texto nos deixa para pensar: não é só Ella Gerricke que procura a sua infância que não teve. A Europa actual também só se pode rever numa infância que já não faz parte sequer do currículo das disciplinas. A escola já não é o mundo à parte onde as origens se pensavam e ofereciam ao ser de cada um. Da escola podemos dizer, como Nietzsche do teatro de Eurípides, que tem a vida banal do aluno no palco. Os tachos e as panelas, como ridicularizava Aristófanes nas Rãs. No “palco” da sala, como sabemos, não pode nem estar a vida do professor nem a do aluno. Na sala tem que estar o texto. O Outro com quem aprendemos a troca e a humildade, a ética, o diálogo, a verdade, o bem, o belo, muito para além de cada um e da nossa pobres vida. A escola não pode ser o prolongamento da vida que nos torna infelizes: a escola tem que ser a interrupção dessa vida, a emergência da outra, mais alta e sublime, mais elevada e suprema que os autores vislumbraram do pélago que os assombrou.