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Um lugar para nascer
Uma passagem
Um voo rente às águas
Um atravessar
Um mar de nascimento
Renascimento, despertar!
Um mar para abraçar.
Um mar para não ser.
Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".
"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"
- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente
Saúde, Irmãos ! É a Hora !
Rossana deita-se ao comprido. O seu pêlo é um entrançado branco por onde os fios de luz se intensificam. É uma espécie de primeiro cão do mundo. Olho para ela e penso que ela atravessou todas as idades, todas as eras, todas as casas dos homens. O crepúsculo é tal e qual como se estivéssemos no Outono mais denso, os tons amenos e belos, de uma tranquilidade lúcida, pura. Mas há uma luz. Uma luz intensa mas velada, uma atmosfera liquefeita, com a água solta, liberta do seu âmbito, intuitiva. A Rossana tem a pequena bola cor de laranja junto ao focinho, entre as patas. Está ali como no início de tudo. Mexo-me na cadeira, há um som. Rossana olha-me, de repente ela. Estou sentado no quintal, leio. É como se as palavras fossem o movimento de Deus, uno e distante. Reparo que o charro se apagou. É necessário acender outro fósforo. Meus pais não imaginam que faço isto. É por isso que o faço agora. Acendo o fósforo. Eis que a Rossana olha para mim e é ela mesma e todos os cães ao mesmo tempo, a dupla face do signo. Os animais são os seus nomes por inteiro, vivem na combustão inicial do fogo, trazem a translúcida quietação de tudo. Recosto-me, paro de ler. O fumo eleva-se. Penso que os meus amigos estão no vórtice das suas vidas, tal como eu. Curioso como nunca reparo nas flores do quintal. Estão em vasos que alguém, um dia, moldou. As flores são a mais delicada manifestação de vida. E ao mesmo tempo, a mais fortemente fundada no espaço. Irremovíveis, as suas raízes fundem-se com a terra. Agora que penso nisso, as flores são também o ser vivo mais propenso à levitação. Não o voo furtivo dos pássaros, não, a fluidez mais tensa do vento, a dança demiúrgica do estar sendo. A impossibilidade de repouso. Os pássaros têm os seus ramos de árvore, os seus cabos eléctricos onde abrigar. As flores vivem no eterno mover do mundo, etéreas e telúricas, sem síntese, só paradoxo. A Rossana pressente um barulho lá fora. Levanta-se. O charro apagou-se de novo.
Acredito na altíssima origem dos reis.
Acredito na encarnação dos augúrios.
E no voo e no pasto dos auspícios.
Acredito no pressentimento dos cães
E nas pessoas cozidas depois de mortas.
Acredito na ritualização das leis.
Acredito na sagração da nobreza.
Acredito nos homens sentados num altar.
sou um livro pendurado em ti.
uma leitura cada vez mais simples.
um espaço sem dimensão.
uno. sensível.
e abro-me por ti
na imensidão do amanhecer infinito.
in Nova Águia
O gato responde às dúvidas existenciais
do filósofo
com um bocejo
e um olhar íntimo
do alto do sofá vermelho
aconchegado no torpor
da tarde
o gato de Agostinho tem bigodes
e não é homem
aquele olhar sedutor
sem ser mulher
espeta as orelhas para ouvir
a voz sonolenta
do pensador.
Palmela, Dezembro de 2007
© Brissos Lino
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