O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 29 de maio de 2008

O que é a Religião? Notas várias

A noite é a mãe da religião.

Feuerbach em "A essência do Cristianismo".

A religião pura, originária e, provavelmente, única verdadeira, é a que vem de dentro da mente de quem a tem, que coincide perfeitamente com as suas crenças mais profundas acerca da origem e do ser da realidade - qual a sua origem? O que é, para mim, a realidade? -, sendo impossível, tautologia, um humano acreditar em algo em que não acredita. Quero com isto dizer que, provavelmente, sendo que cada pessoa tem a sua própria visão do mundo, semelhante e dissemelhante das outras, tem, também, a sua própria religião: relação de si com tudo, acto de se religar ao todo. Não podendo ser todas verdadeiras, as diferentes religiões (seis biliões?) têm, contudo, todas elas, algo de verdadeiro, na medida em que nada melhor do que a interioridade justamente para se expressar, imageticamente, ou conhecer-se.

Feuerbach escreve que Deus é a objectivação do humano, a essência de Deus a essência humana, à qual foram retiradas as características consideradas desagradáveis, portanto, uma idealização da essência humana: o bem, a virtude, o poder, a justiça, não o mal, o vício, a impotência ou a injustiça. Assim, aparentemente, poderíamos dizer que o humano se conhece a si mesmo. Porém, a religião originária, como o próprio autor frisa, revela-se, principalmente, na oração, e a oração é não apenas o pedido de ajuda para enfrentar os males do mundo mas, também, como surpreendemos por exemplo em Agostinho, a expressão, objectivação, de uma quase angustiante vontade de conhecer e de, principalmente, conhecer-se. Dado isto, poderíamos dizer que o humano não sabe se se conhece a si mesmo, vive na dúvida, pensa que há sempre mais, desconhece.

E, assim, dizemos que o grande desejo do religioso, o sumo, é conhecer-se. Deste modo, a pergunta primeira, última, essencial, da religião é: quem sou eu?, que pode ser dita de outro modo, desligada de eventuais referências à história de vida de quem se interroga: o que sou eu? A questão evoca o desejo, a ânsia, que o humano tem em conhecer o seu fundo, aquilo que está primeiro, a fonte, a origem, pois julga qúe é aí que se encontrará... à sua essência, aquilo que é mais profundamente, verdadeiramente: a verdade acerca de si.

Esse fundo é Deus, muito especialmente o hindu, Brahman-Atman, visto que a expressão refere, simultaneamente, algo que a pessoa não é, porque a pessoa é um ser particular no espaço-tempo, com uma história de vida, distinto da origem, etc., e algo que a pessoa é, porque é, em última instância, essencialmente aquilo, verdadeiramente aquilo, no fundo aquilo: não poderá não sê-lo, tal a natureza da ligação umbilical à Nave-Mãe, tal a natureza da Natureza. Nesse sentido, todos somos o incriado e não poderemos não sê-lo.

A religião é a tentativa de percorrer o cordão umbilical até à origem. E, embora possamos encetar o caminho através deste mundo, da contemplação que convida à viagem, a origem, o fim, não está neste mundo, é transcendente, invisível, é longe, é fora, é para lá, é além e, provavelmente, se o víssemos, teríamos de ir para lá dele, porque é essa a nossa Natureza, eis a da imaginação, querer ir para lá do dado, querer criar mundos, viver insatisfeitos, escapar, dominar ou não dominar, escolher, ser plenamente livre, um produto da imaginação, sem constrangimentos: ser Deus: livre, liberdade.

Assim, a pergunta "quem sou eu?" esconde a pergunta "por que é tudo assim?" que, por sua vez, esconde o desejo "quero ser livre". Deste modo, as duas perguntas resumem-se na seguinte: por que não sou livre? E, dada a imaginação, perguntamos: serei livre? "Desejo ser livre": por que não procurar, então, a liberdade? Eis o valor/ideal supremo que subjaz à religião pura (e purificada da superstição), a liberdade. Talvez por isso a essência de Deus permaneça um mistério, indefinida, sem propriedades... para ser plenamente livre, até da própria liberdade.

Assim, o religioso põe como Princípio aquilo a que aspira; mas não só por razões subjectivas ou de satisfação pessoal, como Feuerbach decerto pensaria, mas pela própria questão objectiva de que o Princípio tem de estar para lá das leis, sejam elas, por exemplo, físicas ou lógicas, não podendo nós, no entanto, justificar este pensamento supondo a liberdade do Princípio, tendo, então, de encontrar o caminho que nos indique que elas têm de ter sido criadas ou que Ele não é elas e é-lhes anterior e superior. Estou a escrever isto de uma Biblioteca e o tempo de uso do computador está a acabar e, por isso, não escrevo mais, publico-o.

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