O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 21 de maio de 2008

Uma reflexão sobre a filosofia

Que quer dizer a frase "O Homem é o ser para a morte"? Penso que mais do que dizer que os humanos são seres mortais, o que seria banal, diz que os humanos são os seres, de entre aqueles que conhecemos, que têm consciência da morte, sua e dos outros. E isso não é banal, embora seja uma simples constatação de um facto. Não é banal porque o facto de termos consciência da morte influencia, determina, toda a nossa construção de vida, individual e colectiva - a morte é o fatum fundamental e a consciência da morte é o seu mensageiro.

Na verdade, ao contrário de Nietzsche, não creio que os factos fundamentais da existência humana sejam a saciedade, a força, tudo o que possamos apelidar de bom, porque o filósofo era, afinal, um moralista, mas a fome, a sede, a fraqueza e o enfraquecimento, a doença e o sentimento de impotência, o desconhecimento e a fina percepção do acaso, enfim, a necessidade. Concordo, porém, com o filósofo, na medida em que considero que, de facto, o ser humano não tem culpa pelos seus actos, porque não pediu para nascer, nasceu no desconhecimento e na errância, não sabe por que está aqui, como se tivesse nascido de um ovo posto por um qualquer demónio cartesiano.

Contudo, acredito na existência de Deus, embora não saiba como Ele é: se é bom, se é mau, se não é bom nem mau, se é consciente ou inconsciente, enfim. Penso que a filosofia, que mais não é do que o filosofar, consiste justamente na tentativa de apreensão desse ser originário, fontal, que é mística e intuitiva. Mística, porque visa a união do sujeito que pensa com o objecto pensado; intuitiva, porque mais do que pensá-Lo através de conceitos, palavras, linguagem verbal, o sujeito tenta pensá-Lo através de algo para o qual a melhor metáfora é a da imagem, usando, portanto, a imaginação.

Neste sentido, penso que a filosofia é a actividade humana que tem as propriedades de ser, simultaneamente, religião, ciência e arte. Religião, porque toda a sua actividade se foca em Deus; ciência, porque todo o objectivo da sua actividade é conhecer o que se desconhece; arte, porque toda a sua actividade é criativa. Resta dizer, porém, que, enquanto religião, não tem o seu fundamento na fé, senão na intuição primeira de que o mundo tem uma origem; que, enquanto ciência, não é empírica; que, enquanto arte é, no máximo, arte conceptual, não porquanto malabara conceitos, mas dado que labora com imaginações-intuições puras.

Mas... de onde nasce a filosofia, o filosofar? Os manuais não têm pejo em afirmar, seguindo as tradições platónica e aristotélica, que o filosofar nasce do espanto, da aporia, da insolubilidade de problemas, de questões que o humano coloca à Natureza. Penso que, mais do que nascer da aporia, o filosofar nasce da intuição primeira de que o mundo tem uma origem, seja ela qual for, o que for, que, por sua vez, nasce do amor, ainda que muitas vezes recôndito, nas profundezas da alma, que o humano sente pelo Cosmos, amor esse que nasce da consciência do belo e, especialmente, do sublime, físico - como uma flor, uma paisagem, o vento - ou meramente mental - como a consciência do tempo, do espaço enquanto espaço. Daí, por sua vez, talvez nasça a aporia que, porém, mais não é que um sintoma.

O filosofar não é uma actividade argumentativa que visa descobrir verdades que nunca serão descobertas, senão numa sua versão espúria e muito em voga, que remonta a Parménides, aquando da viragem lógica do filosofar, actualmente praticada pelos chamados filósofos analíticos, que tratam principalmente de assuntos mundanos e pouco transcendentes - enquanto o filosofar visa o transcendente, o que está além, na medida em que é abertura-aventura. Alguns desses assuntos podem até ser importantes, como sejam os da Bioética, embora sejam assuntos de especial importância prática, não obstante o facto de serem especiais não os dotar de especial valor ou interesse filosófico.

O filosofar não é nem a actividade argumentativa referida no parágrafo anterior, nem um corpo de conhecimentos, embora se possa construir um corpo de conhecimentos a partir das experiências que os vários filósofos têm tido ao longo dos séculos, na senda do seu objectivo. Esse objectivo constitui, justamente, o filosofar: a apreensão mística intuitiva do todo. Esta actividade, que assim mais parece um palavrão, tem, por si e como é, todo o interesse público, porque é ela que vai permitir a existência de uma sociedade melhor, mais (e acima de tudo) preocupada em minorar o sofrimento humano e em aumentar o prazer. Querer transformá-la, como de resto tem sido transformada a partir de Parménides, por génios como Platão ou Aristóteles, e raridades subsequentes, numa eterna perpetuação pastosa de um pensar egocêntrico, inconsequente e exibicionista, é, mais do que uma negação, um crime. Mais do que um crime, uma estupidez.

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