O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 28 de abril de 2009

As Palavras e os Poetas - Olav H. Hauge



“Nous ne sommes rien, ce que nous cherchons est tout.”





Olav H. Hauge



Quem assim falava era poeta e hortelão, "jardineiro" do seu jardim e a sua voz erguia-se das terras do Norte, para si mesmo e para o outro homem que o ouvia: o leitor. O polo da tua busca era a interioridade, as tuas palavras eram magnéticas como dizias que a palavra deveria ser. Não mágicas, magnéticas. A tua bússola apontava à profundidade e interioridade da tua voz e da tua alma de louco, de poeta. Diziam: o sábio de Ulvik está à sombra da árvore a ver a luz arrefecer na outra face da folha. E havia sempre dois que te acompanhavam enquanto escrevias na silente voz da cascata ao norte, o fruto uno que prendias na boca. E tu, à sombra da velha árvore, passavas por várias águas a palavra até cair dentro do teu coração o fruto nítido e limpo de um som real, talvez o som de um pássaro a cantar sobre os canteiros das rosas. E esse território era um livro desenhado na pele e nas pétalas. Um poema como uma casa. Dizias: je veux qu'un poème soit tel que tu puisses habiter dedans. Esse era o veículo que usavas para transitar entre o que é e cabe no teu corpo e na tua alma e o que te sonhavas palavra e leitura. Habitaste as noites de Holderlin e gastaste os olhos a ler os poetas que haviam de povoar-te o jardim. Toda a vida a viagem se fez por dentro das palavras. A viagem em que a palavra viajava com o seu duplo, e cada coisa era outra e a mesma de outro modo de ser ela mais nítida e real. Um deus de pedra sagrou-te em poema que era para ti rosas selvagens “on a chanté les roses./ Je veux chanter les épines/ et la racine qui s'accroche/ au rocher dur,/ dur comme la main maigre d'une jeune fille.”Os melhores dos teus poemas, dizias, tinham sido escritos à sombra das árvores olhando a natureza e os ramos como mãos claras na mão com que seguravas o que nela cabia de nada-poema. Gotas no vento, a fina, pacífica e clara voz de uma simplicidade e densa precisão. Transformavas, irmão poeta, a maldição do poeta e do poema em clara sílaba, luz contida na palavra que alumia o bosque. Disseste: “Écrire de la poésie est nécessaire, vivre ne l'est pas” e eu acreditei. Quantas vezes terei dito que mais do que a poesia é o mistério que a vela que pode fazer aparecer quem, por nada ser, pode ser tudo. A tua palavra era aberta para o mundo, o poeta que me visita por vezes fecha-se sobre si mesmo, mas abre em desejo caminhos de claridade para os teus poemas , para o norte profundo e para as folhas do bosque. Oiço o poeta e o meu coração também aponta ao norte magnético das palavras:



“Quand je me réveille, un noir


corbeau frappe à mon coeur.


Ne vais-je plus jamais m'éveiller


à la mer et aux étoiles,


aux bois et à la nuit,


au matin,


avec des chants d'oiseaux!


(O texto foi escrito sobre a leitura do livro de poemas “Nord profond” de Olav H. Hauge, traduzido e ilustrado por François Monnet, ed. Bleu autour, 2008 - Aproveito para agradecer a Arnie a oferta deste livro.)

15 comentários:

baal disse...

o louco da aldeia e o louco da árvore

Anónimo disse...

Isso, baal, isso!

Um sorriso e saudades.

Anónimo disse...

Se os poetas se calassem a poesia acontecia.

Odin disse...

A Saudade não é exclusiva dos Lusófonos …

Confissão do poeta disse...

"Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira
E ouviu a voz de Deus num poço tapado" - Álvaro de Campos, "Tabacaria"

Corvos de Odin disse...

Sempre achaste que eras bom demais para o mundo e que este deveria girar à volta de ti, isso é que é um facto!

E tu, ó Odin, pelo vistos já estás de novo c’os copos …

Fernando Pessoa disse...

"Primeira Veladora - Não dizeis senão palavras. É tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos!... Se passeássemos?..."

- "O Marinheiro"

Anónimo disse...

...o bom deus dos poetas, Odin, a Saudade não é exlusiva nem inclusiva... A Saudade é libertação disso. Os poetas nascem e morrem em cada verso, como os homens respiram em cada batida: tantan! tantan! tantan! E a poesia é tão natural "como o levantar-se o vento..."; como a terra para viver e para morrer. os poetas cegos caminham sobre as suas próprias palavras para saudar: "tu portes le dieu de pierre/ aufond de toi. Tu le sert fidèlement...(palavras de Hauge, um poeta do Norte da Saudade, com um sorriso frio...)



Quando os poetas se calam a poesia contece é uma grande verdade!
Só o poema, porém, sabe dizê-lo de maneira a que pareça verdade.

Os poetas calam nos seus versos o que os deuses e os oráculos silenciam nas suas profecias...


Os deuses falam pela boca dos poetas que os criam...

cúmplices de deus na sua criação... dele libertos...

Boa noite.

Anónimo disse...

Que bons ventos vos levem, corvos de Odin! Memória e Pensamento não se zanguem com o deus antigo, como outro qualquer, morto e substituído...

Anónimo disse...

C'est le rêve qu nous portons
que quelque chose
va arriver,
que ça doit arriver -
que le temps va s'ouvrir
que le coeur va s'ouvrir
que les poertes vont s'ouvrir
(...)
qu'au point du jour
nous glisserons sur la vague~
vers une anse
dont nous ne savions rien"

(Palavras do poeta Olav Hauge)

Nunca Mais disse...

Ó Saudades, e o que dizem Pessoa e Campos?... Foges?

Anónimo disse...

Quem é que não foge!? Quem é que olha para trás e corre o risco de se ver!?

Anónimo disse...

Caros "Nunca mais" e "Anónimo",

Quando um poeta se interroga, quando um poeta fala, escutou antes uma voz, fosse a de deus, fosse a de um som que provavelmente é anterior aos deuses e ao próprio universo (estrelas, galáxias, Tudo...; quando o poeta-profeta se interroga, creio, não pergunta já por si, independente do mundo e desse todo de que é princípio e fim - deus, ele mesmo criador; ou a voz sem voz do incriado, essa a que o poeta persegue... talvez seja na voz das veladoras, seja na interrogação sobre o futuro da sua futura visão, o poeta, nesse momento, já não é, o poeta há. Ou outra coisa que lhe queiram chamar, mas que lhe é viagem e caminho em si, para de si se libertar. Em alguns poetas ouvimos isso. Ou é o mundo que fala, o poeta escuta; se o poeta fala o mundo acontece... é deus, o poeta, em certa medida. Não para se afirmar ser, antes para não ser senão o que é maior que a sua voz...o que se sonha ou do que tem saudades...

Penso que Olav H. Hauge nos traz a síntese da realidade, sem tese e antítese, transcendida, sem um "eu" que a suporta, para ser a visão de um Bashô vindo do "Norte profundo", vivendo um quotidiano de observador do espectáculo do mundo.
Apreciem este poema:

Le chat

"Le chat est assis dans la cour
lorsque tu arrive.
Parle un peu avec le chat:
à la farme, cést lui qui sait."

É importante saber onde e para quê o que nós sabemos serve.
Das coisas do poeta, ninguém sabe, nem mesmo ele...


Um abraço e um sorriso.

Anónimo disse...

não há poeta que se veja como tal

bicho da seda disse...

Não há tal que se veja como poeta.