O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

SEPULCROS E VERNIZES

NO CEMITÉRIO


Até os mortos parecem ricos e pobres, distintos e comuns com os seus sepulcros diferentes entre si como um bairro dos mortos na cidade dos vivos a continuar as casas, as casinhas e os casarões. Mas é tudo aparência, superfície, tal como toda esta vida à face da terra. No fundo, há um corpo em putrefacção e as pegadas de um pássaro do qual se perdeu para sempre o rasto e já nem se sabe se voa agora por infernos ou paraísos. E aí está, o silêncio dos mortos pintado de flores e mascarado de fotografias. Flores de Primavera do irromper da vida; flores de amor e de morte, de casamentos e funerais e fotografias de eternidade. Os rostos da "ausência" que por vezes um hálito da vida que foi parece animar, cruzando momentos de riso e de lágrimas que vão perdendo fôlego por falta de esperança e continuidade. Ao longe, sobre o cemitério, a linha silenciosa e estável do horizonte banhada de sol poente num dia desencoberto de Inverno e nas veias dos mundos compostos por muitos modos, corre um vendaval sorrateiro que apaga deste espaço vasto, onde o pano todos os dias se levanta para mostrar todas as coisas nos seus contornos e distinções, as figuras de fogo fátuo que cheias de si se afirmam, por medo se vendem, bêbedas de miragens tropeçam e constantemente se desviam dos percursos por si estabelecidos por um " em si" feito outro qualquer que lhes regula o grau de entusiasmo e a abertura do sorriso por este mesmo instinto espontâneo do ver para fora e ver plural e distinto.


NUM SALÃO DE ESTÉTICA

Ah! Este mundo da superfície no "barulho das luzes", a mistura das formas e cores no choque de estilos e personalidades! Pintar as unhas, usar roupas novas, usar cremes que por melhor concebidos nunca detêm o galopar do tempo presente na erosão de todas as coisas, dar ao rosto brilho, volume às pestanas, glamour aos lábios. Ir ao ginásio tonificar, gerir caloria para não desmanchar. Esforço insuficiente. Interessante enquanto descomprometido, apesar de inútil ! Tantas vezes cinzento apesar de tanta cor! Sem "raça", apesar do contraste! A distracção só para alguns tipos humanos, o passatempo daqueles que ainda têm tempo como se houvesse muito tempo a perder. Brincadeira semelhante às das crianças a desenhar bonecas ou a fazer muitas caretas no espelho experimentando perucas e narizes pontiagudos de pinóquio ou de palhaço mais arredondados. Uma brincadeira que não conduz a nada, nem à paz nem à guerra, nem ao triunfo da pátria nem à revolução das mentalidades, nem no fim de contas a um amor feliz, nem a um lugar no “ Céu” nem mesmo a um escalão no “ Inferno” ! Uma corrida que se sabe de antemão que está perdida, que se sabe à partida que a nada conduz de distinto, ao passo que há outras que a nada conduzem também, mas prometem muito mais.


E a jovem manicura que com mãos femininas e delicadas tirava com acetona os restos de verniz da sua jovem cliente, pergunta com simpatia:

- Que cor vai ser hoje?

- Vermelho - Responde a outra com uma voz que dispensava tanta simpatia.

- Tenho um novo – diz, ao mesmo tempo que puxa da sua palete de cores um vermelho não muito aberto com o rotulo da Risqué e a designação "Bohème" . - Pensei em si. É o seu género. Ao que recebeu um gesto de aprovação e concordância.

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