O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 6 de janeiro de 2008

Para uma nova teoria da saudade (celebrando o dia de Reis como o da nossa Realeza-Natureza profunda)

[...]14. A soledade (“solitas, atis”), a solidão e o isolamento são a artificial mas necessária condição da subjectividade, que não nasce senão da ilusória conversão do espaço infinito, livre, transparente e bem-aventurado da natureza-experiência primordial num foco de percepção dualista, egocentrada e portanto insatisfatória, sujeito e submisso ao mal-estar do sentimento de separação, solidão e desamparo e ao decorrente e necessariamente frustrado desejo de submeter todos os aparentes obstáculos-objectos externos e internos que dentro e fora de si a sua ignorância, desejo e aversão lhe fazem surgir como distintos, sedutores e repulsivos, o que o arrasta afinal no círculo vicioso da ilusão, escravidão e tormento. Não obstante, permanecendo íntima e atemporalmente vinculada à sua natureza-experiência primordial e profunda, cujo esplendor e fruição em si mesma a cada instante encobre e perde, sentindo-a como uma presença ausente, ou uma ausência presente, como algo abissalmente ou outrora vivido e agora remoto, perdido na lonjura, apenas pressentido ou instantaneamente aparente nos súbitos e curtos intervalos e suspensões da percepção dualista e condicionada, como um relâmpago fulgindo nas espessas e letais trevas da desatenção e do esquecimento quotidianos, a subjectividade não é nem pode ser senão memória e desejo, mais ou menos consciente ou inconsciente, disso, ou seja, desse vivido estado anterior de si, anterior a si, livre de si e de todo o fardo e dor conceptual, emocional e existencial que o si, o sujeito e o eu sempre carregam, tanto mais absurda quanto ilusoriamente: tal um Sísifo que não vê que a pedra e a fatalidade que incessantemente rola e arrasta é tomar-se por real e às suas percepções, com todos os pesadelos desse sonho resultantes, sendo o maior o confundi-lo com o estar desperto, o que verdadeiramente lhe impede o despertar libertador. Ou seja, como eloquente e notavelmente mostra a singular evolução da “solitate” latina na língua galaico-portuguesa, mostrando toda a sua aptidão a ser matriz de uma profunda visão da existência universal, a soledade da subjectividade não pode senão explicitar-se como a saudade que desde início é, com todos os sentidos que se lhe associam, adiante explicitados, e conforme o mostra a sua análise etimológico-filológica .
15. Filha da ilusória flexão e contracção da infinidade, plenitude e bem-aventurança da natureza-experiência primordial na soledade da subjectividade, a saudade é nesta a manifestação veemente, natural e necessária do sentimento de exílio, desintegração, desamparo, incompletude e carência que lhe é inerente enquanto ilusoriamente protagoniza o condicionamento dualista, sub/ob-jectado e espácio-temporal do próprio incondicionado absoluto. O que não o afecta, mas apenas ao sujeito que nele ficticiamente surge. Na verdade, se este saudosamente sente o vago e o não sei quê de uma presença ausente, ou de uma ausência presente, como algo outrora vivido e agora remoto, perdido na lonjura temporal ou metafísica ou afundado e obscuro nos abismos do inconsciente, de que há pressentimento, memória e desejo, o que assim sente é menos intrínseco ao objecto da saudade, que já vimos ser a natureza-experiência primordial - infinita e por isso sempre e a cada instante totalmente e em tudo presente - , do que ao próprio ilusório afastamento e desintegração dela, pelo qual o que não é sujeito nem objecto surge como objecto para um sujeito ou sujeito para um outro sujeito. Na verdade a subjectividade, a soledade e a saudade não resultam, como dissemos, senão da flexão e intelectualização da experiência originária, com o complexo conceptual-emocional daí resultante.
Filha da inalienável e irrecusável plenitude sempre presente e da ilusória diminuição da sua experiência na génese do sujeito e da percepção objectivadora, a saudade é todavia manência nessa plenitude antes de ser memória-desejo dela. Na sua ponta extrema, onde é não sendo, a saudade é manência na saúde (“salus, utis”) e na sanidade (de “sanus”, são, puro) da natureza-experiência primordial, a única sã – ou seja, pura, íntegra, perfeita - , necessária e autêntica. É apenas na medida em que, relativamente, há encobrimento e perda disso que, em absoluto, jamais se pode deixar de ser - pelo afastamento ilusório e mental, isto é, mentiroso, pelo estado alterado de consciência da percepção dualista, pela di-versão e dis-tracção instituidoras do sujeito e do objecto, pela dolência e doença dessa aparente privação do que afinal se é em superabundância - , que se aspira a reintegrar a experiência da manência pela memória e o desejo, eles mesmos antes de mais instâncias de inerência e vínculo e só derivadamente de reversão e regresso a partir de uma suposta distância. Pois esta memória e desejo, que são saudade, são-no de não serem, não manifestando senão a sua pertença a isso que constantemente os antecede, culmina e anula. Memória e desejo, memória-desejo do infinito, a saudade é-o disso onde nunca houve, há ou haverá qualquer memória, desejo e saudade. A saudade é a saúde, integridade e perfeição da natureza-experiência primordial, em toda a sua pujança iluminativa e fruitiva, amorosa e compassiva, a mover a reintegração de todos os sujeitos, humanos e não humanos, no imo de onde ilusoriamente se extraviam as mentes obscurecidas e errantes, envolvidas e arrastadas no fluxo insalubre e aflitivo das percepções, dos pensamentos e das emoções dualistas e assim das preocupações mundanas, enquanto auto-manipuladas pela sua ignorância na sujeição às aparências sedutoras, repulsivas e neutras dos objectos que em função dessa mesma ignorância lhes aparecem. A inquietação saudosa, que é sempre ponto de fuga e ruptura da soledade, pena e penúria da dualidade, reflexividade e discursividade mental, do existir em si recluso, da subjectividade e da mundanidade, promana da necessariamente insatisfatória experiência de si e do mundo por quem continuamente inere ao sempre instante não haver si nem mundo.
Manifestação da saúde e sanidade da natureza-experiência primordial em seu relativo encobrimento e privação, a saudade é, simultaneamente, a sua salvaguarda no domínio da aparente experiência dualista, impedindo que esta plena e verdadeiramente o seja, e a salvaguarda do aparente sujeito desta experiência no domínio daquela sua natureza autêntica, íntegra e sã, impedindo que ele se torne plena e realmente um sujeito isolado, perdido e submetido num mundo de objectos. A saudade é assim potência de salvação e redenção, entendidas como saudação, desejo, dom, reconhecimento e cuidado da saúde do que verdadeiramente é onde ela parece diminuir ou faltar. Mesmo associadas às saudações e aos cumprimentos inter-subjectivos, as “saudades” expressam o voto, ainda que inconsciente, de que o seu emissário e o seu destinatário se cumpram, cumprindo, ou seja, realizando e consumando, a sua inerente vocação à plena saúde de se tornarem quem realmente são, reunindo-se com o que de mais precioso há em si e em tudo, reencontrando-o e reconhecendo-o como a sua inalienável natureza.
Neste sentido, a saudade é também potência de re-ligação (“religare”, ou seja, neste caso, não religar, mas ligar atrás ou por detrás) e de re-colhimento (“relegere”, colher ou tomar de novo, enrolar de novo, percorrer de novo - também na memória - , reler). Ela é assim religiosa, segundo as duas etimologias possíveis de “religião”, não porém no sentido de religar algo ou alguém que efectivamente se separou, e enquanto separado, mas de ligar a mente que vive como real e absoluta a ilusória separação e soledade subjectiva ao que está sempre “atrás” ou “por detrás” dessa experiência, isto é, de a levar a des-cobrir a encoberta e constante anterioridade, o fundo sem fundo, da própria saúde incondicionada. A ligação, o vínculo do sujeito ao antes de o ser, desvelado nesse passo atrás do estar aí mental e reflexivo, des-inscrevendo-o da autoposição de-limitadora de si e do mundo, de-limitadora de si no mundo, consiste no seu re-colher-se, no reassumir da integridade encoberta e relativamente perdida pela incontinente disseminação da consciência nos estados mentais relativos aos aparentes objectos da experiência dualista e mundana. O re-colhimento processa-se assim pelo despojamento desses objectos e desses estados mentais de atracção, aversão e indiferença a seu respeito, tanto mais fácil e rápido quanto mais desde o início se reconhecer o carácter artificial e ilusório de toda a percepção dualista e de toda a clivagem sujeito-objecto. A consciência, redimindo-se da distracção e dispersão geradoras dos conceitos de interior e exterior, de eu e outro, de eu e mundo, percorre assim de novo, gradual ou subitamente, mas em sentido inverso, o caminho da sua ilusória constituição mundana, que é a constituição do próprio sujeito e do próprio mundo, regressando ao insituado e incondicionado imo da natureza-experiência primordial, sem sujeito nem objecto, sem centro nem periferia, sem intenções nem características. Reconhecendo-se e repousando nessa saúde inata, nessa plenitude livre de todas as condições, a saudade mata-se e liberta-se de o ser.
Todavia, se a saudade não pode morrer senão na cessação do sujeito e do mundo, esta não é de modo algum a extinção de algo efectivamente existente, mas tão só o fim de uma ilusão e de uma percepção falsa, o reconhecimento de que nunca em verdade houve, há ou poderá haver algo que seja sujeito e objecto, eu e mundo, com uma natureza ou entidade substancial, existente em si e por si própria. Como o desvanecimento de uma miragem ao abeirarmo-nos dela, cujo resultado não é contudo a decepção mas a alegria infinita. O que surge para a consciência dualista e mundana como um fim é afinal, embora ainda apenas para ela, um início. O início da fruição de todas as possibilidades do sem fim nem início.
À luz de quanto se disse, podemos agora acrescentar que o sentimento de ausência habitualmente associado à experiência da saudade, como afastamento e distância do seu objecto em relação ao sujeito que o recorda e deseja, e que aqui reinterpretamos como ilusório afastamento e distância do sujeito em relação à natureza-experiência primordial sempre presente e instante, tem ainda um outro e mais fundo sentido. A ausência (de “absentia”, “abesse”) pode ser compreendida não apenas como afastamento e distância de algo em relação a alguma coisa, mas, conforme o sentido também privativo da partícula “ab-“, como não entificação, como ausência da de-terminação de algo como ser ou ente, em plena conformidade com o sentido do “nada” português e castelhano (de “nulla res nata”). O sentimento de ausência, não disto ou daquilo, mas de aus-ência enquanto não entidade ou entificação, de não haver jamais relação com isto ou aquilo, de nunca haver nem não haver isto ou aquilo, é assim, em primeira e última instância, inerente à própria natureza-experiência primordial e à sua vacuidade-plenitude, alheia a sujeito e objecto e a todos os conceitos que estruturam a e decorrem da suposta relação entre um sujeito e um objecto. O sentimento de ausência, de eu e outro, de si e de mundo, é a experiência mais funda e primeira da saudade, enquanto experiência directa da manência na própria saúde e sanidade primordial, onde, como dissemos, a saudade é sem ser e sem o ser. A experiência de aus-ência é a jubilosa experiência primeira e última de não haver ente algum que possa ser ausente, no sentido de afastado ou distante, e de, sem contradição, todos os supostos e aparentes entes serem na verdade aus-entes, no sentido de livres de qualquer entificação e entidade, que os faça ser ou não ser isto ou aquilo. A saudade, enquanto experiência do vago e do não sei quê de uma presença ausente ou de uma ausência presente, é assim - antes de se desfocar e degradar na soledade subjectiva, que a converte na iludida memória-desejo de algo outrora vivido e agora remoto, perdido e pressentido na lonjura temporal ou metafísica ou afundado e obscuro nos abismos do inconsciente – a experiência directa e imediata da não presença (de “praesentia”, “praeesse”) de tudo o que aparece como presente, no sentido de nela jamais haver qualquer coisa ou ente que se constitua “prae”, ou seja, “diante”, “em frente”, “defronte”, nessa experiência de de-limitação, oposição e objecção mútua que vimos estruturar toda a relação dual e fictícia entre sujeito e objecto. O que se dá na presença ausente ou ausência presente da experiência saudosa é na verdade a infinita abertura de uma vacuidade-liberdade que esvazia toda a suposta substancialidade e densidade da esfera ôntico-ontológica e dissolve em espaço puro e infinito o ilusório enclausuramento da experiência de ser e ser algo. A saudade, enquanto experiência de aus-ência - em sua primordial instância, irredutível a todo o ausente - , é experiência da inerência da mente e de tudo o que percepciona à infinidade sem centro nem periferia, ao fundo sem fundo insubstancial e não-dual de tudo. Nesse sentido é um radical antídoto ao preconceito substancialista, que se aferra ao suposto de haver sub-postos, entidades substanciais (de “substantia”, procedente de “substare”, estar debaixo, resistir) cuja realidade sólida seja o firme, resistente e fundador suporte de aparentes e mutáveis qualidades ou de características intrínsecas, fomentando o apego e a aversão a tais entidades e, deste modo, a confusão e o sofrimento inevitáveis.
No mesmo sentido aponta o vago (de "vagus", errante; indeciso, inconstante, indefinido, e de "vacuus", vazio, desocupado, deserto; livre de; livre, aberto) da experiência saudosa, que se até um certo ponto indica a errância, inconstância e agitação da ignorante saudade mundana, em que a memória e o desejo do sujeito transitam continuamente de objecto para objecto, já em primeira e última instância refere a vacuidade, liberdade e infinita abertura da natureza-experiência primordial, em que a saudade não é de, em que não há saudade do quer que seja, mas tão só manência na saúde-sanidade da aus-ência de id-entidade-diferença, mesmidade-alteridade, eu-outro, sujeito-objecto. O imo da saudade é a fruitiva e criativa paz da vacância, estado de vacar e vagar (ambos do latino "vacare"), onde o ser vazio, desocupado e livre de si é espontâneo vagar para todo o possível (cf. os múltiplos sentidos do verbo latino).
Embora não seja este o lugar para o fundamentar, explicitar e desenvolver, cabe referir, a respeito deste sentido da saudade, que num dos vectores maiores da experiência galaico-portuguesa e da sua tematização poético-filosófica, de que o presente texto se assume continuador, emerge assim um paradigma alternativo àquele que tem predominado (com múltiplas dissidências e excepções) na experiência ocidental, desde a sua vertente clássica, greco-latina, até à cristã e à sobrevivência de ambas no planetarizado senso comum contemporâneo (de que alguma ciência dá mostras hoje de se emancipar). Aproximando-se, neste e noutros aspectos, de várias correntes e possibilidades da experiência oriental, isso é para nós sinal de uma mais profunda, radical e comum convergência onde Ocidente e Oriente se transcendem numa Origem irredutível às determinações histórico-geográficas e culturais do espírito. [...] - Excerto de "Da natureza primeira e última de todas as coisas, da mundanidade e da saudade", artigo publicado no último número da revista galega Agália, que integrará um livro em preparação.

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