O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Paisagem e Pátria


"A reflexão da paisagem no homem é activa e constante.
A paisagem não é uma coisa inanimada; tem uma alma, que
actua com amor ou dor sobre as nossas ideias ou senti-
mentos, transmitindo-lhes o quer que é da sua essência, da sua vaga e remota qualidade que, neles, conquista
acção moral e consciente.
Por isso, a paisagem representa um grande papel na nossa existência; tem sobre nós como que um poder de herança,
igual ao dos fantasmas avoengos.
O estudo da sua influência moral sobre o homem, creio que está, infelizmente, por fazer -…"
(Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português)



I
A história de um país, de um povo com suas múltiplas faces, é somente a superfície do que significa a palavra pátria. Mas a história lança paisagens imutáveis na nossa lembrança: um inverno sem cores, caminhos de ferro, arame, uma floresta de bétulas…


Die Geschichte eines Landes, eines Volkes mit seinen vielen Gesichtern, ist nur die Oberfläche dessen, was das Wort Heimat bedeutet. Aber sie wirft unveränderliche Landschaften in unsere Erinnerung: ein Winter ohne Farben, Wege aus Eisen, Draht, ein Birkenwald…

II
Quem diz que não tem pátria, diz, de um certo modo, a verdade. Ninguém pode possuir uma pátria. Podemos ser os donos de um mero pedaço de terra, mas nunca os donos da pátria. Isto é uma das diferenças entre Nacionalismo e Patriotismo.


Wer sagt, dass er keine Heimat hat, sagt, in gewisser Weise, die Wahrheit. Niemand kann eine Heimat besitzen. Wir können die Herren eines blossen Stück Landes sein, aber nie die Herren der Heimat. Das ist einer der Unterschiede zwischen Nationalismus und Patriotismus.

III
O conceito da nação age contra o conceito da pátria e o representante da nação é, para o indivíduo, o adversário da pátria. O conceito da nação elimina o sentido da Pátria e a política deveria trabalhar sem a gramática da terra natal. A paisagem, a língua, a fisionomia do próximo e a dor e o desejo de nós e do nosso redor espelha-se na carne. Todo o indivíduo é uma encarnação da sua pátria, entendida como paisagem e língua natal, e leva consigo as dádivas da cultura, as cores da paisagem, como também a culpa e o pecado parasitário e inegável da história.


Der Begriff der Nation handelt wider den Begriff der Heimat. Der Vertreter der Nation, ist, für das Individuum, der Gegner der Heimat. Der Begriff der Nation eliminiert den Sinn der Heimat und die Politik sollte ohne die Grammatik des Heimatlandes arbeiten. Die Landschaft, die Zunge, die Physiognomie des Nächsten und unser und unseres Umkreis Schmerz und Wunsch spiegelt sich im Fleisch. Jedes Individuum ist eine Inkarnation seiner Heimat, verstanden als heimatliche Landschaft und Muttersprache, und trägt mit sich die Geschenke der Kultur, die Farben der Landschaft, sowie die parasitäre und unleugbare Schuld und Sünde der Geschichte.

IV
O desejo de realizar o Municipalismo é uma expressão da relação do indivíduo com a sua paisagem, que não é simplesmente um espaço natural, mas sim o ambiente em que a alma, que é também carnal, se reencontra.

Der Wunsch den Munizipalismus zu verwirklichen, ist ein Ausdruck der Verbindung des
Individuum mit seiner Landschaft, die nicht einfach ein natürlicher Raum ist, sondern das Umfeld, in der die Seele, die auch fleischlich ist, sich wiederfindet.

V
Sempre vi a paisagem da minha terra natal com um olhar interior, onde a luz vermelha do sol poente cobre os campos e no céu da noite vagueiam estrelas artificiais da arbitrariedade e da angústia.


Immer sah ich die Landschaft meiner Heimat mit einem inneren Auge, wo das rote Licht der untergehenden Sonne die Felder bedeckt und am nächtlichen Himmel künstliche Sterne der Willkür und der Beklemmung wandern.

VI
A política e a economia são resíduos da história e não fundamentos da pátria.


Die Politik und die Wirtschaft sind Abfälle der Geschichte und keine Grundlagen der Heimat.

VII
As palavras intraduzíveis da pátria revelam-se através da gravação da paisagem por meio da poesia ou prosa filosófica.


Die unübersetzbaren Worte der Heimat entwickeln sich durch die Aufnahme der Landschaft mittels der Dichtung und der philosophischen Prosa.

VIII
„A língua é uma obra da natureza e do homen“, diz Pascoaes, e nós podemos aumentar esta frase: O homem é uma obra da natureza e da língua, como também a natureza é, como paisagem, a obra da língua e do homen.


„Die Sprache ist ein Werk der Natur und des Menschen", sagt Pascoaes, und wir können diesen Satz erweitern: Der Mensch ist ein Werk der Natur und der Sprache, wie auch die Natur, als Landschaft, ein Werk der Sprache und des Menschen ist.

IX
„A pátria é um ser espiritual", diz Pascoaes, "um ser espiritual a quem devemos sacrificar a nossa vida animal e transitória“. E a pátria é assim também um ser individual e universal no mesmo instante, um topos e uma u-topia. Devemos sacrificar-nos pela pátria universal que arde na nossa alma e que se localiza num utópico lugar - no lar dos nossos desejos e não no limbo dos nossos pesadelos onde vivemos actualmente...


„Die Heimat ist ein geistiges Wesen", sagt Pascoaes, "ein geistiges Wesen, dem wir unser tierisches und vergängliches Wesen opfern müssen. Und die Heimat ist so auch ein individuelles und ein universelles Wesen zugleich, ein Topos und eine U-topie. Wir müssen uns für die universelle Heimat opfern, die in unserer Seele brennt und die sich an einem utopischen Ort befindet - im Heim unserer Wünsche und nicht in der Vorhölle unserer Albträume, wo wir gegenwärtig leben...

X
Para falar da pátria deveríamos evitar palavras como "sangue" e "raça" e todas as palavras do século XIX e XX, como "progresso" e "superação". Uma nova pátria precisa novas palavras. Palavras desconhecidas para fazer novos descobrimentos. Velas brancas no vento que não vem do norte nem do sul, nem do ocidente e nem do oriente.


Um über die Heimat zu sprechen sollten wir Worte wie "Blut" und "Rasse" und alle Worte des XIX und XX Jahrhunderts, wie "Fortschritt" und "Überwindung", vermeiden. Eine neue Heimat braucht neue Worte. Unbekannte Worte um neue Entdeckungen zu machen. Weisse Segel im Wind, der weder aus dem Norden noch dem Süden, weder aus dem Westen noch dem Osten kommt.

XI
Em vez de usar a palavra "superação" podemos dizer "transformação" ou, melhor, "metamorphose". O homem precisa transformar-se como a lagarta e não superar-se a si e ao seu próximo.

Anstatt das Wort "Überwindung" zu gebrauchen, können wir "Tranformation" oder "Metamorphose" sagen. Der Mensch muss sich wie die Raupe verändern und nicht sich und seinen Nächsten überwinden.

XII
Todo homem, cada indivíduo, deveria ter o direito de escolher a sua pátria, seja nos trópicos ou no ártico. Pátria: o lugar onde a alma se casa com a paisagem.


Jeder Mensch, jedes Individuum sollte das Recht haben, seine Heimat auszuwählen, sei es in den Tropen oder in der Arktis. Heimat: Der Ort wo sich die Seele mit der Landschaft vermählt.

XIII
A minha pátria é uma paisagem perdida.


Meine Heimat ist eine verlorene Landschaft.

XIV
O capitalismo nao é o vencedor de um "progresso" humano, mas sim o último apêndice - o apêndice inflamado. Apenas a ablação pode salvar o organismo.

Der Kapitalismus ist nicht der Sieger eines menschlichen "Fortschritts", sondern der letzte Fortsatz - der entzündete Blinddarm. Nur die Entfernung kann den Organismus retten.

XV
Progresso e regresso: duas caretas de uma cabeça.

Fortschritt und Rückschritt: Zwei Grimassen eines Kopfes

XVI
Se a alma é estendida entre as coisas que se não movem e as coisas que se movem, ela parece uma membrana onde toda a brisa, todo o toque e todo o som se junta numa melodia silenciosa e infinita. Esta melodia, esta extensão ou distensão doce e dolorosa, pode chamar-se saudade ou Sehnsucht e pode considerer-se como um dos princípios fundamentais do ser humano e talvez de todo o ser vivo. A paisagem - cor, traço, sombra - da pátria, entendida como Heimat, é, como toda a paisagem amada e desejada, uma gravação saudosa, doce, dolorosa e inegável. Uma pessoa nunca aparece no nada, sempre aparece dentro de uma paisagem - natural ou cultural - que marca, fere e cuida.

Wenn die Seele zwischen den Dingen, die sich nicht bewegen, und den Dingen, die sich bewegen, aufgespannt ist, erscheint sie wie eine Membran, wo sich jede Brise, jede Berührung und jeder Klang zu einer einzigen stillen und unendlichen Melodie vereint. Diese Melodie, diese Ausbreitung, oder süsse und schmerzhafte Dehnung, kann man saudade oder Sehnsucht nennen und als eines der grundlegenden Prinzipien des menschlichen Wesen und vielleicht aller Lebewesen betrachten. Die Landschaft - Farbe, Strich, Schatten - des Vaterlandes, verstanden als Heimat, sowie jede geliebte und erwünschte Landschaft, ist eine sehnsuchtsvolle Aufnahme, süss, schmerzvoll und unleugbar. Eine Person erscheint nie im Nichts, erscheint immer in einer - natürlichen oder kulturellen - Landschaft, die kennzeichnet, verletzt und sorgt.


XVII
Uma sociedade cresce e decai com a sua história, que é a sua consciência, enquanto a língua e a paisagem se gravam a longo prazo no subconsciente, que é casado com a carne.


Eine Gesellschaft wächst und zerfällt an seiner Geschichte, die sein Bewusstsein ist, während sich die Sprache und die Landschaft auf lange Sicht in das Unterbewussstsein einschreiben, das mit dem Fleisch vermählt ist.

XVIII
Podemos entender todas as formas geográficas como pátria - uma cidade, um país,um continente ou o inteiro planeta - e proceder ao seu estabelecimento baseado em conceitos. A cidade como espaço habitacional, o país como espaço de língua, o continente como espaço cultural ou o planeta como espaço vital. Mas este alargamento não compreende o sentido da pátria. Somente a paisagem é o conceito próprio para a compreensão e o sentido da pátria. A pátria existe realmente - como a paisagem na poesia. A pátria é metáfora viva e utopia ao mesmo tempo. É origem e chegada - mas no caminho somos sempre estrangeiros.

Wir können alle geographischen Gebilde als Heimat verstehen - eine Stadt, einLand, ein Kontinent oder den ganzen Planet - und deren Begründung anhand vonBegriffen vornehmen. Die Stadt als Wohnraum, das Land als Sprachraum, denKontinent als Kulturraum oder den Planet als Lebensraum. Aber diese Ausweitung begreift den Sinn von Heimat nicht. Erst die Landschaft ist der eigentliche Begriff fürdas Verständnis und den Sinn von Heimat. Die Heimat existiert wirklich, - wie die Landschaft in der Dichtung. Die Heimat ist lebendige Metapher und Utopie zugleich. Ist Herkunft und Ankunft - doch unterwegs sind wir immer Fremde.

XIX
O desligamento do mundo e o retrocesso para o Eu não é simplesmente uma necessidade para a percepão do mundo, mas sim o fundamento necessário para a destruição do mundo. A εποχή cartesiana é na verdade a possibilidade do ganho e da perda do mundo ao mesmo tempo, mas sempre com a probabilidade de uma saída sem uma entrada na indigência do mundo. No retrocesso para o Eu actua uma imagem do mundo científico e a suposição de que o Eu poderia jamais deixar alguma coisa sem abrir uma chaga: a dor do mundo. A alma do mundo.

Die Ausschaltung der Welt und der Rückgang auf das Ich, ist nicht einfach eine Notwendigkeit für die Wahrnehmung von Welt, sondern die notwendige Grundlage für die Zerstörung von Welt. Die cartesianische εποχή ist zwar die Möglichkeit von Gewinn und Verlust der Welt zugleich, doch immer mit der Wahrscheinlichkeit des Ausgang ohne den Eingang in die Bedürftigkeit der Welt. Im Rückgang auf das Ich wirkt ein wissenschaftliches Weltbild und die Annahme, das Ich könnte jemals etwas verlassen ohne eine Wunde zu öffnen: Der Schmerz der Welt. Die Seele der Welt.

XX
O conceito do Eu marca o começo da moderna crítica à metafísica, o começo do pensamento analítico e praticamente o começo do restringimento da filosofia. Por isso a necessidade da renovação do conceito da alma, ou melhor, da alma em si. A alma como o fundamento inconcebível do movimento, como o princípio invisível, como o peso inegável do corpo como organismo afectivo. A alma é sem tamanho, forma e extensão, mas ela pesa e faz o corpo sentir o seu próprio tamanho, a sua forma e a sua extensão. A alma é o princípio formador - a plenitude em si.


Der Begriff des Ich markiert den Beginn der neuzeitlichen Metaphysikkritik, den Beginn des analytischen Denkens und eigentlich den Beginn der Verengung der Philosophie. Daher die Notwendigkeit der Erneuerung des Begriffs der Seele oder besser der Seele an sich. Die Seele als der unfassbare Grund der Bewegung, als das unsichtbare Prinzip, als das unleugbare Gewicht des Leibes als affektiver Organismus. Die Seele ist ohne Grösse und ohne Gewicht, aber sie wiegt auf dem Leib und macht diesen erst zu der Grösse, Form und Ausdehnung, die ihn sich selbst spüren lässt. Die Seele ist das formfüllende Prinzip - die Fülle an sich.

XXI
A paisagem é o traço do homem, enquanto o jardim é o seu desejo.

Die Landschaft ist die Spur des Menschen, während der Garten sein Wunsch ist.

XXII
Não existe um retorno à natureza, para um estado original, nem um regresso ao paraíso. Somente uma odisseia, a criação da paisagem através dos fragmentos da lembrança.

Es gibt kein "zurück zur Natur" in einen einen ursprünglichen Zustand, keine Rückkehr in eine Heimat, sondern nur die Odysse, die Erschaffung der Landschaft aus den Bruchstücken der Erinnerung.

XXIII
As paisagens não têm fronteiras, mas os jardims têm grades e sebes vivas

Die Landschaften haben keine Grenzen, aber die Gärten haben Zäune und Hecken.

XXIV
Não a alma, mas sim o Eu está em guerra com o mundo.

Nicht die Seele, sondern das Ich ist im Krieg mit der Welt

XXV
Todos nós vivemos longe da nossa pátria e a pátria existe somente como lembrança do futuro.

Wir leben alle fern von unserer Heimat und die Heimat exisitert nur als eine Erinnerung an die Zukunft

XXVI
A pátria é um desejo e o paraíso uma plenificação.

Die Heimat ist ein Wunsch und das Paradies eine Erfüllung

XXVII
O paraíso é ao mesmo tempo uma pátria ideal e uma paisagem ideal, mas o que queremos dentro desta harmonia perfeita sem rupturas e sem lembranças?

Das Paradies ist zugleich eine ideale Heimat und eine ideale Landschaft, aber was wollen wir in dieser vollkommenen Harmonie ohne Brüche und ohne Erinnerung?

XXVIII
A história do Eu é uma história da destruição.

Die Geschichte des Ich ist eine Geschichte der Zerstörung.

XXIX
A nossa alma é uma dádiva da serpente.

Unsere Seele ist ein Geschenk der Schlange

XXX
Quadrinha

Nem uma terra é nossa, nunca seja
Os campos e cabos e mares sem fim
Tudo que vejo, quem vê os deseja
São fundos sem fundo, paisagens em mim

4 comentários:

Paulo Borges disse...

Saúdo um novo Novalis re-temperado por Pascoaes e pela lusotropicalidade ! O romantismo germânico e o português parecem tantas vezes correr de uma mesma fonte, onde murmura a voz de um Ocidente esquecido, insituável na civilização em que se encobre...
"A minha pátria é uma paisagem perdida": a saudade é também isto, sentir que tanto mais se possui quanto mais se perde. Podem tirar-nos o que temos, jamais o que perdemos. É descomunal a força da perda. Abre o coração até ao infinito.

Ana Margarida Esteves disse...

É exactamente essa a ideia que tenho de Patria ... Um espraiar de sensações, vivências, impressões ... Círculos concêntricos de experiências viscerais que se estendem e se tornam cada vez mais reais quanto mais distantes estamos da base material dessas experiências ...

Mas essa horizontalidade sensual não dará mais a ideia de uma Mátria, como concebeu a Natália Correia, do que de uma Patria, com tudo o que implica de verticalidade e concentração num projecto, no fazer?

Concordo plenamente com o Paulo. Sei muito bem o quanto é descomunal a força da perda e o quanto abre o coração até ao infinito ...

Anónimo disse...

Lisboa e Portugal a preto e branco... Reimersão foto-poético-filosófica num tempo suspenso... O que resiste, impotente, à fuga atónita dos dias.

Anónimo disse...

A foto da igreja, do eléctrico e da Rua do Alecrim aberta para o céu e o rio transportou-me a isso que faz de Lisboa a cidade mais bela do mundo, mesmo que não conheça todas as outras. Isso que não sei explicar...