quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
O novo homem
O homem será feito
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como flor
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
"Nove meses, eu?
Nem nove minutos."
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.
Carlos Drummond de Andrade
In Caminhos de João Brandão
José Olympio, 1970
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como flor
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
"Nove meses, eu?
Nem nove minutos."
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.
Carlos Drummond de Andrade
In Caminhos de João Brandão
José Olympio, 1970
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6 comentários:
Soberbo, Liliana, com aquela sempre deliciosa ironia sábia de Drummond.
Eu não quero que nada me faça "liberto da herança de sangue ou de afeto", pois nela somos todos família uns dos outros: é o mesmo sangue, humano, desumano, mas nunca inumano, que nos corre nas veias, neste terrestre laboratório evolutivo e,m que somos feitos, ainda quando custe a acreditar, por alguns espécimes, nossos primos, que se nos deparam.
Essa é, aliás, uma demonstração cabal de que o laboratório de que Drummond fala, já existe faz muito tempo, por aqui...
Para que, precisamente...
"o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
[não acabe] com o Homem."
Assim, haverá, pelo menos uma coisa boa: poderá continuar a existir a "Serpente"...
Abraço amigo, corajosa Liliana!
Descobri este poeta há pouco tempo e é como o Lapdrey diz: tem uma deliciosa ironia.
e neste poema, há uma forma de encontro sobre o pensamento que se debruça sobre este estar do HOMEM.
ironizar para abalar quem lê.
uma boa noite, caro Lapdrey
Mas como o mundo desloca-se rodando, anda para a frente, andando para trás: esse representa igualmente o homem velho.
Pascoaes escreveu: poeta quer dizer profeta.
Sem dúvida, Liliana, concordo profundamente consigo.
Acredito que só o estar, o estar bem e, por isso, o bem-estar do homem inteiro podem fazer que ele se alce mais e mais à dimensão de Homem, e que apenas destarte este se debruce no parapeito do olhar daquele: assomará ele então em grandeza, na sua vida: esse, o Novo Homem, infindamente...
Abraço amigo, nisso comungante.
P.S. Se bem me recordo, alguém terá dito que a "ironia é a lógica formal da superior inteligência". Subscrevo.
(Espero é que, por aqui, não haja almas que, mais confirmando a razão de tal dito, confundam inteligência com Q.I. ... Mais razão teria então Drummond.)
Lembra o soma do Huxley! Com utopias destas...rsrs
«O Futuro é tão antigo como o Passado. E ao caminharmos para o Futuro é o Passado que conquistamos!»
António Maria Lisboa
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