terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
A Serenidade, Ana Hatherly
A Serenidade
Não falo da serenidade olímpica dos deuses, da sua impavidez e imperturbabilidade, falo da serenidade que o homem pode atingir reconhecendo que se todas as suas certezas são susceptíveis de ser alteradas, o seu erro não será eterno (tão pouco seremos eternamente homens). Não falo da insensibilidade ou do alheamento, falo do mergulho em todas as aparências até ao ponto em que elas se fundem numa só. Falo da serenidade perante o erro e da serenidade perante toda a certeza, não falo da indiferença, falo da calma desapaixonada. Falo da serenidade que descobre os limites do próprio mal: quanto mais mal mais mal, até que há-de anular-se (tudo o que experimentamos tem limites e tudo serve para tudo transformar). Falo da serenidade que permite reconhecer em cada um o assoprador da forja sobre a qual se informa o metal candente que ao mesmo tempo é a mão que molda, o martelo que o quebra, o fogo que o queima e a casa do forjador. Falo da serenidade nascida da paz que um máximo de consciência traz consigo, o que permite sair para fora da angústia da solidão, do amor egoísta, do conceito inabalável, da moral autoritária, para fora de tudo o que limita, constrange, incompreende e separa. Falo da serenidade perante a vida e perante a morte, a que acredita no desígnio transcendente da metamorfose, a que considera o homem um ponto de confluência de vários reinos mas que é em si mesmo um curso e que portanto progredirá. Falo da serenidade que não é renúncia à felicidade mas o caminho para a alegria, a superação de todos os desejos num único: nada desejar por só desejar tudo.
Não poderemos evitar o desejo, porque o homem é ele próprio a forma do desejo, de um desejo, uma alta manifestação da vontade, humana ou divina, e o desejo é o impulso emanando do ritmo espiritual, mas o que poderemos tentar vencer são os desejos paixões da alma que nos conduzem à angústia e ao enojo, nojo ainda no sentido de luto perante uma morte que não é a metamorfose desejada, que é destruição mimética, um mimodrama em que em vez de actores nos fazemos pantomimos.
Mas como é que se pode permanecer sereno perante a fealdade, o embuste, a deturpação que se tornam humilhantes para o homem e o atiram para o desamparo do desencontro, do desentendimento, para a solidão e para o medo? Como é que se poderá permanecer sereno perante o trágico da existência?
Crendo e querendo.
Todos os credos ensinam a confiança na sabedoria duma determinação superior, todos os credos ensinam que cada um tem em si todos os meios para contribuir para a sua perfeição e para a perfeição geral. Todos os credos ensinam a serenidade, assim queiramos aceitar que a alegria está ligada à paz, que mais que um sentimento é uma forma superior de vivência, e que todos fazendo parte da economia universal, participaremos com toda a certeza da divina geometria do equilíbrio.
Então teremos ultrapassado todos os credos: teremos atingido a Alegria.
Ana Hatherly, “Nove Incursões”, Sociedade de Expansão Cultural, Lisboa, 1962, págs. 181-184.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
15 comentários:
A Além-cria. :)
(o filho-homem em si mesmo - na sua essência: além de si)
(trocadilho derivado da palavra Alegria)
"Serenidade, eu rezo..." Lembrei. Lembro de cor: "...Acorda a minha mãe quando ela dorme/Quando ela tem no peito a solidão completa de quem passou a noite perguntando por mim...(Cito de memória, sem respeitar a pontuação, que me perdoem todos...)
Serenidade é este mesmo ritmo de serenar e internamente fluir esse manar das águas tranquilas de ser...
A Alegria só mora no coração dos poetas. Mesmo quando tristes são eles os vasos sagrados dos afectos que dão e tiram o ser.
A Alegria...a incontida vontade de ser e deixar ser dentro de si e para além de si.
A Alegria um vento que vem de tão longe e corre apenas nos cabelos dos bons.
Aleluia à Alegria!
Querido(a) Ventos do Bem,
o vento nada vê, corre no cabelo de todos, porém, só alguns o sentem. Bons, maus? Alguns. Mas o que se quer é ser Tudo (em todos)! ;)*
Alegria não tem lugar, é o além-lugar de ser o mesmo trespasse de sê-lo: talvez por isso, ela logre fazer o que nada mais consegue - pôr todos e tudo a cantar!!
Como será o canto do Nada, ausindo a Alegria que nos co-move a todos? Somos, na verdade, o que quer ser "sempre mais além"... no mais e mais "aqui"!
P.S. Vede, Amigas e Amigos, como dia-logamos sem conversar, e vede quão sublime a maravilha de tal coisa!!
Concedo ao que sentes. E recebo o sorriso. Concedo a tudo o que brota da espontaneidade cândida, como as boninas nos campos. Tu és uma bonina dos campos, é por isso que te acolherei no silêncio e na palavra. Um dia chegarás a Holderlin e perceberás o que penso. Um dia pleno de ventos alegres.
é, e mesmo não conversando, con-versamos. Ah, como os amantes calados. :)
Ventos do Bem,
chegaremos, sim. É isso que o vento (nos) segreda há muito tempo, em silêncio, e cada vez mais claramente.
http://www.youtube.com/watch?v=uTBSBD2w7dg
("espalhei-me no ar"... pelo vento do Amor)
(Lapdrey, já fugi à serenidade! mas é a serenidade, na sua forma exaltada, do Amor - talvez a única que em verdade nos é)
Voltando ao Zeca, L.:
«Senhora do Almortão,
Oh, minha rosa encarnada,
Ao cimo do Alentejo
Chega a vossa nomeada...
Senhora do Almortão,
Flor minha linda raiana,
Virai costas a Castela,
Não queirais ser castelhana,
Não queirais ser castelhana, ahhh...
Nossa Senhora da Póvoa,
Nossa Senhora da Póvoa...
Minha boquinha de riso,
Minha maçã camoesa,
Minha maçã camoesa...
Criada no paraíso,
Criada no paraíso...
Senhora do Almortão,
A vossa capela cheira,
Cheira a cravo, cheira a rosa,
Cheira a flor da laranjeira,
Cheira a flor da laranjeira, ahhh...
Nossa Senhora da Póvoa,
Nossa Senhora da Póvoa...
Minha boquinha de riso,
Minha maçã camoesa,
Minha maçã camoesa...
Criada no paraíso,
Criada no paraíso...»
No Paraíso, o Reino da Alegria.
Muito bonito, este pensamento sobre a serenidade e a alegria. Veio confluir em mim com um pensamento que tive sobre o tempo.
"O tempo não existe, mas nenhum destino se cumpre sem ele. Porque será? O tempo existe, porque o criámos. Para quê? O tempo torna tudo curvo e redondo e esférico, dobra, dobra-nos, obriga-nos a circundar, a circunferenciar, a rodar, a acelerar e a desacelerar. O tempo consome-nos a energia, mata-nos as células, afasta-nos daqueles que amamos, murcha-nos as mãos e devora-nos a alma. Envenena-nos, ilude-nos, escraviza-nos, derrota-nos. O tempo, existe ou não? O que é o tempo, afinal?
O tempo... são mãos, criadoras, educadoras, castigadoras... mãos, que moldam barros, cortam joio, cavam leitos de rio, amassam pão, pisam uvas, fundem metais, desenham artes, dominam o fogo, rasgam sem compaixão os trilhos da nossa vida... mãos. O tempo são as nossas mãos. Delas surgiu o tempo, como da batuta de um maestro, e só se silenciará quando a música der lugar ao deslumbramento."
Cara Madalena, coloquemo-nos a seguinte hipótese: imaginemos que não tínhamos nenhum dos sentidos: não víamos, não ouvíamos, não sentíamos, não provávamos, não cheirávamos!
Que noção teríamos do tempo?
Que noção tem do tempo um louco, uma criança deficiente, um cego, um surdo, um surdo-mudo, um autista, um...?
Nós, creio, necessitamos sempre de distanciar-nos daquilo que interrogamos, para lograrmos eventualmente melhor compreender.
Mas, e, pergunto: sem sentidos, que consciência, que pensamento seria o que teríamos do mundo?
O que seria o mundo para nós?
O que será o mundo para alguém, como há, que tenha faculdades mais subtis
de apreender o mundo (tal como a percepção extra-sensorial, ou outras) na sua vastidão mas por certo de limites muito indefiníveis na sua "realidade"?
A realidade não é o resultado dos dados sentidos, puramente "instrumentais". Ou será? Não creio.
Um abraço de carinho, muito amigo, Madalena.
(temas intermináveis, mas fascinantes)
Sim, Lapdrey. O tempo como o percepcionamos é uma consequência directa dos limites impostos pelos sentidos. Nós, humanos, temos sentidos a menos. Basta pensarmos nos olhos de uma mosca para percebermos isso. A realidade é diferente para cada criatura. Não existe uma única realidade ou uma realidade única. Por vezes gosto de aventurar-me noutras realidades.
Abraço fraterno,
Madalena
Enviar um comentário