terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
Ecos da Holanda
Em resposta à exortação de Lapdrey a que ecoasse aqui o diálogo entre Pessoa e Cioran, publico o início de uma das conferências que recentemente proferi na Universidade de Groningen.
Num alfabarrista da cidade encontrei a tradução neerlandesa do São Jerónimo e a Trovoada, de Pascoaes (1939)! Já em Amesterdão, acabei por não encontrar a casa de Espinosa - disseram-me que ficava um pouco fora da cidade - , mas comovi-me até às lágrimas com a atmosfera da imponente Sinagoga Portuguesa, ainda em funções, em particular ao escutar um concerto de música hebraica com duas vozes masculinas. A comoção prosseguiu diante dos primeiros quadros de Rembrandt, no Rijksmuseum.
Sinto ser a Hora de nos abrirmos a todas as culturas e de sermos verdadeiramente o "Homem de todo o Mundo" de que Vieira falava, falando do português. E, nisso, deixarmos em todo o mundo as sementes da nossa divina loucura. Foi o que tentei fazer, acendendo na Holanda e em novos amigos alemães, polacos e franceses desejos de conhecer Antero, Bruno, Pascoaes, Sá-Carneiro, Pessoa, Raul Leal, Agostinho... Alguns serão colaboradores da "Nova Águia" e, no meio da forte e boa cerveja holandesa, assomou-me a ideia de organizar na Faculdade de Letras um seminário com jovens investigadores estrangeiros sobre Fernando Pessoa. Já tem data marcada: 2 de Junho. Em pequeno estremecia ao passar por pontes e sonhava construí-las. Hoje sinto que nada somos senão ponte, suspensos entre duas margens do que se não sabe, por mais que se pressinta. Ponte-Saudade.
Abraços
Emil Cioran e Fernando Pessoa: salto no absoluto e "fuga para fora de Deus"
Fernando Pessoa e Emil Cioran vivem, de modo diverso, aquela que se pode considerar a mais ousada e radical aventura, a da transcensão de todos os limites do pensamento, da vida e da existência. Pensadores e escritores provenientes da periferia da cultura europeia dominante e agudamente conscientes de viverem um fim de ciclo da civilização dela nascida, a sua força brota também do ímpeto de libertação dos ídolos dessa mesma cultura e civilização, as normas do que se supõe mentalmente correcto, sem que se detenham perante o suposto limite do humano, numa titânica e iconoclasta hybris de superação de tudo, do sujeito e de si mesma, numa nostalgia ou saudade violenta do incondicionado, pressentido e experienciado como instância irredutível à constituição do sujeito no mundo e fundo sem fundo de toda a experiência possível.
Este ímpeto acompanha-se em ambos de uma exuberante mestria literária, que em Pessoa se exerce na tão portuguesmente barroca e poética proliferação de formas de si como outro – os heterónimos - , outros tantos ensaios de fuga à prisão do nascimento, da individuação e à suposta normalidade monopsíquica daí decorrente [1], enquanto em Cioran o génio literário serve um obsessivo, detalhado e minucioso ajuste de contas com todas as ficções da consciência, da história e da cultura, escalpelizadas e reduzidas a cinzas pelo cirúrgico e cáustico bisturi do aforismo e do pensamento incendiado na veemência da insónia, da febre e da blasfémia, mas também do entusiasmo extático e transfigurador.
Não deixa de ser curioso que a comparação entre Pessoa e Cioran possa reconduzir aos contrastes da alma ibérica, pois se no primeiro, sobretudo no ortónimo e em Bernardo Soares, tão diversos da serenidade pensada do “mestre” Caeiro e da melancólica sabedoria da renúncia em Ricardo Reis, predomina a tristeza passiva e dissolvente da saudade que impregna muita da cultura portuguesa, mareada na regressão ao Caos nocturno e oceânico do antes de ser, já no segundo rebenta a paixão sem esperança do “Espanhol que gostaria de ter sido” [2], a explosão de um cinismo místico de cuja excessividade e intensidade apocalíptica só se aproxima, entre os heterónimos pessoanos, o dionisíaco frenesim de “ser e sentir tudo de todas as maneiras”, de Álvaro de Campos.
[1] “Sou um evadido. / Logo que nasci / Fecharam-me em mim, / Ah, mas eu fugi” – Fernando Pessoa, Obras, I, Porto, Lello, 1986, p.316.
[2] “Tour à tour, j’ai adoré et exécré nombre de peuples; - jamais il ne me vint à l’esprit de renier l’Espagnol que j’eusse aimé être…” – Emil Cioran, Syllogismes de l’Amertume, Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.772. Cf. também, entre muitos outros lugares: “Le mérite de l’Espagne est non seulement d’avoir cultivé l’excessif et l’insensé, mais aussi d’avoir démontré que le vertige est le climat normal de l’homme. Quoi de plus naturel que la présence des mystiques chez ce peuple qui a supprimé la distance entre le ciel et la terre?” – Des Larmes et des Saints, Ibid., p. 304.
Num alfabarrista da cidade encontrei a tradução neerlandesa do São Jerónimo e a Trovoada, de Pascoaes (1939)! Já em Amesterdão, acabei por não encontrar a casa de Espinosa - disseram-me que ficava um pouco fora da cidade - , mas comovi-me até às lágrimas com a atmosfera da imponente Sinagoga Portuguesa, ainda em funções, em particular ao escutar um concerto de música hebraica com duas vozes masculinas. A comoção prosseguiu diante dos primeiros quadros de Rembrandt, no Rijksmuseum.
Sinto ser a Hora de nos abrirmos a todas as culturas e de sermos verdadeiramente o "Homem de todo o Mundo" de que Vieira falava, falando do português. E, nisso, deixarmos em todo o mundo as sementes da nossa divina loucura. Foi o que tentei fazer, acendendo na Holanda e em novos amigos alemães, polacos e franceses desejos de conhecer Antero, Bruno, Pascoaes, Sá-Carneiro, Pessoa, Raul Leal, Agostinho... Alguns serão colaboradores da "Nova Águia" e, no meio da forte e boa cerveja holandesa, assomou-me a ideia de organizar na Faculdade de Letras um seminário com jovens investigadores estrangeiros sobre Fernando Pessoa. Já tem data marcada: 2 de Junho. Em pequeno estremecia ao passar por pontes e sonhava construí-las. Hoje sinto que nada somos senão ponte, suspensos entre duas margens do que se não sabe, por mais que se pressinta. Ponte-Saudade.
Abraços
Emil Cioran e Fernando Pessoa: salto no absoluto e "fuga para fora de Deus"
Fernando Pessoa e Emil Cioran vivem, de modo diverso, aquela que se pode considerar a mais ousada e radical aventura, a da transcensão de todos os limites do pensamento, da vida e da existência. Pensadores e escritores provenientes da periferia da cultura europeia dominante e agudamente conscientes de viverem um fim de ciclo da civilização dela nascida, a sua força brota também do ímpeto de libertação dos ídolos dessa mesma cultura e civilização, as normas do que se supõe mentalmente correcto, sem que se detenham perante o suposto limite do humano, numa titânica e iconoclasta hybris de superação de tudo, do sujeito e de si mesma, numa nostalgia ou saudade violenta do incondicionado, pressentido e experienciado como instância irredutível à constituição do sujeito no mundo e fundo sem fundo de toda a experiência possível.
Este ímpeto acompanha-se em ambos de uma exuberante mestria literária, que em Pessoa se exerce na tão portuguesmente barroca e poética proliferação de formas de si como outro – os heterónimos - , outros tantos ensaios de fuga à prisão do nascimento, da individuação e à suposta normalidade monopsíquica daí decorrente [1], enquanto em Cioran o génio literário serve um obsessivo, detalhado e minucioso ajuste de contas com todas as ficções da consciência, da história e da cultura, escalpelizadas e reduzidas a cinzas pelo cirúrgico e cáustico bisturi do aforismo e do pensamento incendiado na veemência da insónia, da febre e da blasfémia, mas também do entusiasmo extático e transfigurador.
Não deixa de ser curioso que a comparação entre Pessoa e Cioran possa reconduzir aos contrastes da alma ibérica, pois se no primeiro, sobretudo no ortónimo e em Bernardo Soares, tão diversos da serenidade pensada do “mestre” Caeiro e da melancólica sabedoria da renúncia em Ricardo Reis, predomina a tristeza passiva e dissolvente da saudade que impregna muita da cultura portuguesa, mareada na regressão ao Caos nocturno e oceânico do antes de ser, já no segundo rebenta a paixão sem esperança do “Espanhol que gostaria de ter sido” [2], a explosão de um cinismo místico de cuja excessividade e intensidade apocalíptica só se aproxima, entre os heterónimos pessoanos, o dionisíaco frenesim de “ser e sentir tudo de todas as maneiras”, de Álvaro de Campos.
[1] “Sou um evadido. / Logo que nasci / Fecharam-me em mim, / Ah, mas eu fugi” – Fernando Pessoa, Obras, I, Porto, Lello, 1986, p.316.
[2] “Tour à tour, j’ai adoré et exécré nombre de peuples; - jamais il ne me vint à l’esprit de renier l’Espagnol que j’eusse aimé être…” – Emil Cioran, Syllogismes de l’Amertume, Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.772. Cf. também, entre muitos outros lugares: “Le mérite de l’Espagne est non seulement d’avoir cultivé l’excessif et l’insensé, mais aussi d’avoir démontré que le vertige est le climat normal de l’homme. Quoi de plus naturel que la présence des mystiques chez ce peuple qui a supprimé la distance entre le ciel et la terre?” – Des Larmes et des Saints, Ibid., p. 304.
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11 comentários:
Ainda antes de Lapdrey (e por isso peço desculpa) agradeço os ecos. Sobretudo de Cioran que conheço muito pouco, mas Paulo, as cores do Rembrandt e o canto da sinagoga deixam-me silenciosa, muda, quieta...tanta altura em terras, dizem, tão baixas...
Um sorriso
A "ponte" está a construir-se...
O texto de abertura da conferência é naturalmente espelho do inconfundível cunho de alta, profunda e vastamente ponderar, pensar e visionar de Paulo Borges.
Porém, dois brevíssimos períodos me estremeceram a superfície da alma lusíada e os abismos da pele lusófona.
Ei-los:
"Sinto ser a Hora de nos abrirmos a todas as culturas e de sermos verdadeiramente o 'Homem de todo o Mundo' de que Vieira falava, falando do português. E, nisso, deixarmos em todo o mundo as sementes da nossa divina loucura."
Bem sabe este meu amigo o transcurso que é diapasão do meu peregrinar pela minha pobre vida.
Não sei eu o que mais valorize em tais e tão díspares veredas e caminhos, mas isso mesmo me mostra que nada devo desvalorizar de quanto haja sido nota, tom e tonalidade de tal viagem.
Talvez por ser o vivente campo de batalha de tal diversidade (que é apenas um singular e pessoal "modus" de querer ser) haja eu sido abalroado por tal vaga tsunâmica e tal convite que desperta o íntimo, o imo e o timo.
Aceitar ser "Homem de todo o Mundo", coloca-nos ao menos, creio, uma ponderação inevitável de encarar. Este Homem é, como é sabido, a um tempo e a cada momento, chegada e partida.
Algum paradigma, então, que não um padrão (pelo mundo os firmámos já, urge agora que os sejamos, viventes) algum paradigma de aprender haveremos de descobrir, ali onde agora, em nós, as descobertas se mais fazem, no Umbigo do Mundo, que será cada lugar onde esteja um lusófono e, sobretudo, haja uma qualquer "lusofania"!
Mãos à obras, em nós!
Forte abraço, Paulo!
Lusofania ou lusolatria?
Há também quem tenha incomodativos acessos "lusorreia" ou "lusobstipação", caro Anónimo!
Acontece é que talvez haja quem não tenha ou não tenha que compreender essa dimensão "holónica" de:
1. "A-ceder" ao ante-mistério de ser alguma coisa, recordando no mesmo esquecer e lembrando-o no próprio não acontecer.
Isso a que chamamos Saudade, e a cuja transcensão de contradição somos segredados, a que a vivamos com toda a fibra do ser e do além dele.
2. Ser (desde o abismo do nada) mistério de ser falante em português - com o riquíssimo feixe de variantes e nuances que tal envolve e implica, na plasmose de comunicar, comungar, contra-dizer, destruir para criar, criar no destruir;
3. Ser alma "sentiente" em português, que é obviamente diverso de o ser em outra língua qualquer. Importa que cada um des-cubra em si o que tal seja e signifique.
4. Ser pensante em português, com seus multivários modos, a rel-acção sin-fónica com o que se apreenda e aceite como realidade de ser permanente vir a ser. Ser pensante é pouco: importa ser sábio, do saber de saborear “tudo de todas as maneiras”.
5. Ser espírito (sopro de ser nada, para poder ser tudo) em português calado ou falado ou silenciado, e deixarmo-nos ser Marão, após termos sido mar e depois deserto e depois desterro e depois ausência e depois emigrância, ou, como diz António Cândido Franco, sermos montanha "sinal 'triangular' do diferenciado, onde o heterogéneo se homgeniza", "depois" de termos sido mar, "sinal 'circular' do indiferenciado, onde o homogéneo se heterogeniza" (in "O Mar e o Marão", João Cabrita Editor, Lisboa, 1989, pág. 39)
Isto, caro Anónimo, pode ser "salada russa" e "maluqueira" - como tudo pode ser uma coisa e outra - ou pode harmónio de sentido para todas a possibilidades de ser: até a de não ser ou de ser nada.
O resto, na verdade, gira em torno de tal radicalidade de transir até a fundamento e firmamento, entre levantar ferro e o lançar âncora - se bem que a viagem (sempre situada no insituável) seja, porventura, mais desde o ancorar-se até ao que não tem fundo, mas só pro-fundura das vastas alturas, que aceitem a âncora, que então já não há, nem nós já seremos ancorados: seremos o além-mar, além-nau, -nave, -âncora, -perdição, -maré, -vaga, -abismo, -tormenta, -calmaria, -ilha, -repouso, … além-além seremos…
Por isso se fala, caro Anónimo, em ser Todos e Ninguém, coisa que não é “invenção” de Paulo Borges, como alguns ingénuos desinformados tendem para supor, mas já José Marinho aflora: a Paulo Borges a honra e a nobreza de ter aceite ser o húmil jardineiro de tal grandeza e de tão fértil semente marinha do Além-Marão.
Ser Todos é o transir de nós em toda a parte; Ser Ninguém, o nenhures que em nós há e em parte alguma se encontra…
Como tão bem diz o mentor deste blogue, essa "pátria-mátria-frátria", é, quanto a mim, esse “além-de todas-as-Índias” que há para lá de toda a voz do vaguejar marítimo de todas as odes e do furioso zunir da ventania maronesa de todas as saudades.
Daí o abísmico apelo de ser 'Homem (de) todo o Mundo': para se ser "Deus (de) Ninguém"...
Isto está a tornar-se um blogue de graxa e de exibicionismo.
Só se nota aquilo que se é, meu caro: o olhar reflecte o modo de olhar: em pres-entia ou abs-entia!
Esclarecido, auto-engraxante?
Quem disse que a frase era dirigida a si? Acabou de se auto-denunciar.
Exprimir um principio genérico é auto-denunciar? Ah ah!
Oráculo:
"Existir é auto-engraxar-se em ex-ibição de todo o vão, labirinto e viés de si."
...E o "Graxa de Ouro" vai para ... LAPDREY!!!
Era de prever!!! (O fulano só pode ter metido cunhas!!!)
(Aplausos, Bravos e Encores frenéticos de todos os Anónimos planetários e cósmicos, em transe blóguico!)
Esta conversa de palhaço já enjoa.
Jogo de espelhos, meu caro!
Your fault, don't you think?
Take your time!
Do your best!
Don't be ashamed.
Be you, getting out from yourself!
Soon or later, you'll find the unexpected!
In an echo from nowhere ... the sound of you...and the silence within...
There... you'll see the clown...in fright: to be safe, you'll see the dead face of you, or you'll see nothing! No thing at all....
Vês como lusofonia nada tem a ver com portugofonia?
Estava a tardar!
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