O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 22 de fevereiro de 2009

Nem Sequer Sou Poeira

Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho

Jorge Luis Borges
in "História da Noite"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

8 comentários:

Anónimo disse...

Eu sou mais uma velha gaiteira!

Luiz Pires dos Reys disse...

"O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho."

Espantosos, estes versos!

Tomara todos pudéssemos dizer o mesmo, de infindas diferentes maneiras...

Sinal seria de que teríamos na face a presença real de nós mesmos, na própria ausência de tudo o que nos apequena.

Muito grato, Liliana!

Unknown disse...

"Nem Sequer Sou Poeira": sou Poeta... (no sentido amplo de criador-a)

Anónimo disse...

Ser poeta: que pena! Antes poeira.

Luiz Pires dos Reys disse...

Ser poeta? Ai que pena!
Antes poeira! Que a eira
é de Anónimos sem beira -
birutas qu'a tudo dizem: Ena!


(Inventa outra, birutinha!)

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Laura disse...

Não conhecia este poema de Borges e achei curioso ele mencionar Amadis e Urganda, personagens do único romance de cavalaria português, Amadis de Gaula, romance que se crê datado de finais do século XIII, pertencente ao ciclo arturiano, de autor desconhecido, mas com fontes que referem que o primeiro autor possa ter sido Vasco de Lobeira, armado cavaleiro na batalha de Aljubarrota.
Obrigada pela partilha, Liliana.

Liliana Gonçalves disse...

Pudéssemos sim Lapdrey, colher em mãos o que Borges nos deixou e renovar gestos.

e Madalena obrigada pela partilha que nos deixou.

uma boa noite