O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Barulho

Tenho de tornar os meus gestos,
Usos pragmáticos, funcionamentos quotidianos
Um pouco mais barulhentos
Um nada mais agressivos
Para não estranhar, ou estranhar menos
(Se bem que sem entranhar, safemo-nos!)
Os ruídos e violências dos outros
Dos burburinhos que vão e que passam
Dos soalhos a ranger, das portas de armários que batem a desoras
Por que farão os vizinhos certos barulhos a certas horas?
Por que cantos, esquecimentos das casas andarão,
A ver de que arranjos, em que bater, que procurar
Tudo, creio eu, tudo sem um nexo, uma precisão
(Apenas para não se haverem com o silêncio, ou com o tempo
ou consigo, apenas para se não baterem, ou amarem, até se irem embora)
Tudo para me atazanar
Nem suspeitam, os demoniozinhos
Que as minhas saudades são ensurdecedoras, mais do que os seus passos,
A sua bricolage ilícita, os seus uivos
Todos são surdos às minhas saudades
Todos são turvos, apenas se me fazem ouvir
Exaustivamente
Ouço tanto que não penso quase
Quase me esqueço de que pertenço
À sociedade secreta da diástole da saudade
Na qual nada se pensa, ou reflecte
Senão uma curta-metragem de eterno retorno
Das tuas sobrancelhas
Das tuas veias
Do teu aperto
Do teu adeus

Vou agora treinar e bater com as portas
Bem sei que não voltas
Mas sempre torturo alguma vizinhança
Nem tudo está perdido!

17 comentários:

Anónimo disse...

Gosto. Gosto sempre da simplicidade das (nas) palavras. "Quanto mais simples mais poderoso"
Sou silenciosamente doméstica. Sofro muitos sobressaltos, sustos e arrepios com os barulhos (alguns tão estranhos!)dos vizinhos. Quanto às saudades, achas que podes enganá-las com burburinho? Boa sorte então!

Anónimo disse...

Nada a fazer não é Maria da Aurora?Nem nadar :)

Anónimo disse...

Podemos sempre criar poemas lindos, uma sinfonia, abraçar alguém, chorar, mergulhar, meditar, fazer barulho,ir até ao mais fundo de nós e encontrar na saudade, quem sabe, como diz o Paulo Borges, uma via de libertação. Não sei. Olha que nadar não é mau pensado!
Saúdo-te!

Luiz Pires dos Reys disse...

Concordo em absoluto, cara Maria da Aurora. Não vá sem resposta. Inscrevi-me, há dias, na "Escola do Verbo Escuro", gerida por uma excelente profissional que dá pelo nome, creio, de Maria do Crepúsculo, para ver se consigo - antes de desencarnar (para uns) e de entregar o espírito (para outros) - aprender a escrever como deve (de) ver (como escrevia, entre outros mestres da língua, Tomaz de Figueiredo, tão, tão esquecido, neste milénio mais dado a certas saragosices bem prematuramente vetustas, como se verá em breve...).
Aprender, então, a escrever como deve de ser é escrever simples, lavadinho e bem. Vamos a isso!

Quanto ao poema da nossa amiga Tamborim, que sempre traz coisas dignas de muito reler, e de novo trouxe, confesso que preciso de ler mais e mais vezes, para ver se me abstraio do..."barulho" de certas escritas mais "castigadas" que por aqui passeiam a longa cauda...
Sobretudo dum tal de (como é mesmo?) Lap de Drey, acho... Será?
Que nome mais abrenúncio, santo Deus!
Ele, há cada um, mais obnóxio!!

Luiz Pires dos Reys disse...

Ah, e vou também aprender a nadar.
Em blogues, claro; porque, na aguinha, já sei.
E vou pedir a Paulo Borges para afixar na página inicial uma placa (no caso, uma caixa de texto) com os dizeres:

"S I L Ê N C I O!

MESTRA MARIA DA AURORA É BEM POSSIVEL QUE ESTEJA NADANDO, OU EM PLENO BORBURINHO! COIMAS PESADAS COBRADAS COM SOBRESSALTOS, SUSTOS E ARREPIOS!!
SOLICITA-SE A MÁXIMA DIVULGAÇÃO, SOBRETUDO PELOS MEANDROS,RECESSOS E CANTÍCULOS ONDE MEDRAM E PULULAM OS SENHORES BARULHOS! A GERÊNCIA BLÓGUICA"

Outro aviso:

"A TODOS OS (DES)INTERESSADOS SE ANUNCIA QUE FOI CRIADO UM MAGNIFICO, UM ESPECTACULAR, UM INDESCRITÍVEL CONCURSO DE POEMAS LINDOS, SINFONIAS ASSIM ASSIM (MAS SÓ UMA),ABRAÇOS EM ALGUÉM COM MAU HÁLITO, CHORO HISTÉRICO E DESCONTROLADO COM BERRATA EM RÉ BEMOL, MERGULHOS NO VAZIO, MEDITAÇÕES TRANS-RASTEIRAS, PROVA DE BARULHOS ESQUISITOS,CONCURSO A VER QUEM VAI MAIS FUNDO NO TACHO DE NÓS, PERDÃO, DO PESSOAL DO BLOGUE.
O PRÉMIO SERÁ ATRIBUÍDO A QUEM ENCONTRAR A SAUDADES, PERDÃO, A QUEM ENCONTRAR UMA VIA PÚBLICA NA SAUDADE DE LIBERTAÇÕES PRIVADAS.
O PRESIDENTE DO JÚRI SERÁ O INEVITÁVEL PROF. PAULO BORGES, A QUEM NÃO LARGAM COM ESTAS PESSEGADAS, QUE ASSIM NÃO TEM OBVIAMENTE TEMPO PARA SE DEDICAR À SUA PRÓPRIA LIBERTAÇÃO POR VIA DAS DÚVIDAS NADA METÓDICAS QUE TODAS ESTAS LIDAM COMPORTAM.
ASSINATURA ILEGÍVEL, COMO CONVÉM"

Anónimo disse...

Tamborim,

Gostei do poema, gosto quase sempre do que apresenta. Nele são bem visíveis os hábitos pouco "saudáveis" e inexplicáveis também das "carpinteirices nocturnas". Gostei da passagem da linguagem do mundanal ruído, para o interior sentido do sentimento saudadoso que, assim colocado entre prosaicas palavras, mais lhe afirma o sentido e a ironia inteligente. Gostei.

Um abraço, Tamborim, pela sua frescura e alegria.

PS. Aquela do 2 de Fevereiro está bem achada!:)

Anónimo disse...

Ai, ai, ai, Lapdrey... 2 de Fevereiro é folia de que "Santa"? ou "Santo"?... Mas chamaste, Lapdreu? Cá estou para concorrer ao segundo AVISO, pois, a Saudades não sabe nadar, Yó!! (Io-Io; Io; No; Oi, Oi...)
Já que estou aqui...
Pois estamos bem humoradinhos, meu amigo!... folgo em sabê-lo, e junto-me à festa, pois claro!
Agora falamos do quê? NADAR, certo! É preciso afixar o cartaz, rápido, antes que, sei lá, não possa ser...enfim...

Está giro, está lindo, está... "Isto aqui está muito bom", "isto aqui está bom demais"... Já não há uma censurazinha, não?

Lavadinho... Sei o que é... simples, hum! sei...

Um abraço, ao "Lapdrónico"; "Obnilapreyco" e pronto(sh)...(risos, muitos)

luizaDunas disse...

Impressionante, Tamborim, como conseguiste desfazer qualquer memória de ruído com esse bater de portas. E em que doce espanto ficou o que nunca se perde com tais saudosas incontidas carícias. Sorrio-te.

Belíssimo.

Luiz Pires dos Reys disse...

Errata de risotas e coriscos:

No segundo aviso (o outro!), onde se lê lidam" deve ler-se "lides".
Agradecido.

Luiz Pires dos Reys disse...

Voltando ao notado pavor de que certa maioria nada silenciosa de certa sub-espécime humana tem face ao simples silêncio (no caso, as desalmadas criaturas que lhe calharam, cara Tamborim, em "sorte" ter por esgatanhudos vizinhos), eu diria que isso me parece ser precisamente a moderna necessidade de tudo "pre-encher" de qualquer maneira, custe o que custar.

Espaço e tempo vazios são como que os "papões" de terror de que certos adultos, na verdade não completamente adulescidos, não querem, nem nunca quiseram enfrentar em si próprios: sobremaneira, o imenso vazio das suas existências, feitas tão-só das referências, dos rastos, dos mandamentos e dos mandados de outrem: elas são, no fundo, espectros, nados-mortos ou mortos-vivos penando tal efeito.
Far-lhes-ia bem serem demoradamente amarrados no olhar a pintura de Paula Rego, como numa janela que dá para si próprios.

Pessoas que jamais quiseram ver ao espelho do simples silêncio a sua aterradora vacuidade de viver.
O verificarem - o que elas no fundo bem sabem, apenas não sabem ou não querem saber o que isso tem de absolutamente incontornável - que, sem uma catrefa de coisas sem utilidade alguma com que povoam e atamancam a sua pasmante rotina quotidiana, elas se veriam (e, pior, vê-lo-iam crua e simplesmente) na dimensão megaliliputiana que é de facto a sua.

Todo o rol de "coisinhas normais" (dizem eles), precisas de serem feitas, tais como "certos barulhos a certas horas","ver de que arranjos, em que bater, que procurar" se hão-de atarefar (sabemos nós "tudo sem um nexo, uma precisão"), os seus passos,
"a sua bricolage ilícita, os seus uivos", apenas para "se não baterem, ou amarem, até se irem embora". Aterradoramente de acordo consigo, amiga!!

E tais almas penadas do quotidiano do eterno retorno diário (em que nem Nietzsche pensou) feito dum chorrilho de inutilidades, enfiada de novelas que apenas ensinam o que não serve para nada ensinar se a vida mesma não ensinar, de talk shows que falam de tudo e não decidem de nada nem adiantam e só atrasam, de concursos da treta para se ver quão buçal é este povo quando confrontado com uns míseros trocos para roer de inveja lá na santa terrinha ou no triste bairro dos subúrbios, de debates que batem em tudo menos no que devem, de noticiários do terror que parece ainda assim não acordarem ninguém do sono acordado em que se encontram, de transmissões directas por tudo e por nada (tudo em directo, menos a vida deles), de comentários de casos de que se não deveria fazer caso algum, bla bla bla, bla bla bla...

CORTAAAAAAAAAAAA!
SILÊNCIOOOOOOOOOOOOO!

............................




(Abraço congraçante nessa "sociedade secreta da diástole da saudade" e na sístole dum eterno agora que nos pro-jecte num não-instante em que tais martírios nos sejam fonte de intérminas gargalhadas à Bodhidharma ...!

Quem sabe... nem tudo esteja perdido...)

platero disse...

claro que nem tudo está perdido
e seria bem pior partir uma perna
ou ser impedida de jogar no euromilhões em semana de Jackpot
No entanto, cuidado. Observar agora um período de nojo muito rigoroso - Cozinha, no Jardim, em Rua onde se executem obras nos telhados das casas, não vá desprender-se alguma telha.
Na cozinha, cuidado com os dedos ao descascar batatas ou ripar a couve para o caldo-verde.
De resto, Tamborim, a vida é mesmo assim:
nem tudo mau
nem tudo ruim.

um beijo pelo poema

Luiz Pires dos Reys disse...

Meu caro Platero,

A vida, por certo, é "mesmo assim: nem tudo mau, nem tudo ruim".
Mas... se nem tudo são montes alentejanos, também nem tudo são bairros degradados em subúrbios de cintura metropolitana.

Mas que dizer, não dos bairros degradados, mas do degradar dos seres que neles vivem, e da degradação que outros, que teriam todas as melhores condições para o não serem, se degradam a si mesmos, conformando-se
precisamente em não serem autênticos, furtando-se ao que sempre, do abismo de si, os espreita?

Se assim não fosse, isto é, se não houvesse ilimitadas nuances nisto de "ser assim mesmo", Dante não se teria dado ao imenso trabalho de escrever quão divina é apesar de tudo a Commedia.

Entre o dar conta de que:

"No meio do caminho da nossa vida
encontrei-me numa selva escura,
que da recta via me eu extraviara.”
(Inferno, canto primeiro, estrofe primeira)

... passando pelo sentido de que:

"Por sulcar melhor água as velas alça
já a frágil barquinha de meu engenho
que mar tão cruel atrás de si abandona;"
(Purgatório, canto primeiro, estrofe primeira)

até notar que:

"A glória daquele que tudo move
o universo penetra e resplende
em uma parte mais, que em outra menos.
(Paraíso, canto primeiro, estrofe primeira)


Gratidão a Tamborim!
Beijo amigo a Saudades
Abraço a Platero!
Borburinhos amigos a Dona Aurora Maria!

Anónimo disse...

Barulho! Tortura! Não, escusado será bater com as portas, ranger soalhos, deixar cair uma peça metálica em telhado de zinco, violentamente trovejar, gritar, partir um carro a 180Km hora... Nem um arrepio, nem um estremecimento! Apenas um olhar fugidio. E se há sons que, atenta, sigo não é por curiosidade nem medo. Apenas porque os sinto como um 'chamamento' ou seja lá o que isso for... e são, justamente, aqueles quase inaudíveis que me despertam e acompanho.
Gostei, Tamborim.

Anónimo disse...

Beijinhos muito gratos à companhia dialogante da Maria da Aurora, ao safado do Lapdrey, com as suas rocambolescas folias (quando sairá o edital?..enfio a carapuça na variante da "meditação trans-rasteira", até porque subscrevo o que o Caetano Veloso diz -aliás com falsa modéstia-de si mesmo: "sou um sub-intelectual de miolo mole"), à querideza gentil da Saudades, à doce fruição da Luísa Dunas,ao vervejante, versejante e vicejante Platero (amei a rima em im a brincar com o meu nome)e à instigante partilha da Maria do Céu.Descubro-me a afeiçoar-me a todos Vós e a outros "escrevinhadores" deste blog. Moderníssimos meios, arroubos de arrobas, vetustíssimos sentimentos!
Só para resgatar alguma verdade sobre o conteúdo do poemeto:tenho vizinhos geralmente muito pacatos, embora já os tenha tido difíceis. À parte isso, por vezes em casa, na rua, nos ares, nos mares, queria um total e absoluto silênciooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo - por vezes chega-se perto.
Abraços da Tambo

platero disse...

Tamborim,
já agora arrisco outra leitura do belíssimo poema:

quando o azar acomete
a gente não tem hipótese
-até o frio do sorvete
lhe afecta os dentes da prótese

É?

Anónimo disse...

ahahhaha
Pletórico Platero

prótese não tenho ainda
mas quando o azar acomete
com mais ou menos sorvete
é fadiga jamais finda!

(poveretto mas muito risonho rsrrsrss)

platero disse...

Tamborim

rendo-me. Ergo daqui meu lenço branco aos Céus