O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 1 de março de 2008

Para acabar com a paz dos cemitérios divinos (com toda a minha gratidão à Isabel Santiago, que me deu a conhecer este autor)

"Um pedaço da maçã originária permaneceu entalado no centro da minha garganta" - Pascal Quignard, Les Ombres Errantes. Dernier royaume I, Paris, Grasset, 2002, p.8.

"Se não abraçamos o abandono e a angústia, a paixão, a noite da agonia, não somos senão imagens infiéis, pedras sem préstimo mal talhadas que já não podem entrar no edifício e que não se podem juntar a nada" - p.19.

"O sermão misterioso do não menos misterioso Leitor de pés nus (Barfusser Lesemeister) começa por estas palavras: Tenebra Deus est. Tenebra in anima post omnem lucem relicta (Deus é uma treva. Ele é a brusca treva que invade a alma após toda a luz)" - p.114.

14 comentários:

Anónimo disse...

«aquele que cai sob o olhar da Medusa transforma-se em pedra, aquele que cai sob o olhar da palavra que falta tem a aparência de uma estátua.»

Quignard, Pascal. Le nom sur le bout de la langue. Paris: Gallimard, 1993

Um poema para o Paulo Borges

Os nossos olhos só vêem/o enfolar das ondas/enão a força que as eleva.//
Raça infeliz/de memória perdida/no imenso cone do tempo.

:)

Anónimo disse...

Beijar-me-ás a boca, Amor, / na hora em que Deus deixe de o ser ? / Beijar-me-ás a boca, Amor, / farás a luz entenebrecer ?

Anónimo disse...

Um poema

Eterna é a noite
a mãe
e o silêncio.

Outro poema

De palavas, sim!
Que o vento espalhe
o que alm reuniu

Pegadas na neve
estrume de silêncio.

Outro poema

Uma mulher que chora
qualquer coisa de pássaro
que ali ficou
em alívio e quietude.

Paulo Borges disse...

Obrigado, Obscuro, pelo poema. Retribuo:

Eternos a noite, a mãe, o silêncio / Sempiterno o grito que os rasga / e nos flore a boca em riso, rosa, asa

Ana Margarida Esteves disse...

Oostende

É invejável a felicidade dos outros
quando vista à distância,
o morno agasalho das verdades adquiridas.

Graciosos os pés que chapinham na orla do mar
(a humidade é cortante)
indiferentes às vagas
e ao alongar do cimento que ofusca a luz solar.

Ansiolítico,
monolítico,
o girar do mundo à volta do mesmo.

Húmido é o bafo
do riso
de Deus
dos anelos
dos homens.

Pois serão sempre os pés pequenos a melhor suportar o embate das ondas.
Será o cinza celeste o que resta das asas de Ícaro?

Ana Margarida Esteves disse...

Setembro

Braços abertos em cruz
sobre a cama vazia.

Espaço
mais amplo
do que o braço consegue alcançar.

Luz da tarde coada pelas cortinas pardas
é musica serena em ondas salgadas,
ritmo da terra,
atonal,
que preenche o espírito
que se esquece a sí mesmo.

Isabel Santiago disse...

0.
Há livros que são como certos cálices abertos. Abrem "durante uma única hora de noite e são rodeados por uma sociedade minúscula de hóspedes alados."
1. Gargantas e gárgulas
É por isso que abrem a boca...e nelas transcorre água do céu. "Não existe falta de matéria, no entanto, a linguagem deve-lhe acrescentar algo ainda mais. Através da sua força mágica, a água deve jorrar de novo, jogando com e sobre estas imagens - uma água que simultaneamente se agita e é transparente."
2. Imgens infiéis, imagens contidas no granito que o pensamento salva da sua solidão enigmática
"Contudo, para o autor é exactamente o retomar do que se acabou de encerrar que assume um valor especial - se apresenta como ocasião rara para apreender a língua sobre um fragmento determinado, em certa medida com o olho do escultor, e trabalhá-la como se fosse um corpo."
4. "Ele é a brusca treva que invade a alma após toda a luz."
Rothko
Infinito
"Ami, en voilà assez. Et si tu veux en lire plus,
Va - et deviens toi-même le livre et l'essence."

P.S. E os outros MIL que empresta, como moradas, à minha ignorância infinita?

Ana Margarida Esteves disse...

Vera Cruz II

Parasitas dormem
enroscados
na cauda de Deus
e impedem-no de avançar.

São adultos em posição fetal.

Anónimo disse...

Ainda essa voz:
Escrever é escrever o perdido, o indizível e a impossibilidade de captar e recuperar as coisas.... a tentativa de recuperar o primeiro grito, não só as coisas em sua novidade, mas o momento do antes, a palavra aquém da linguagem, as coisas que brotam e que são fonte da linguagem. Ou, em outras palavras: "a linguagem afectada pelo silêncio é o ninho. Como o visível afectado pela obscuridade é o sonho.» Excelente esta voz de Pascal Quignhard.
Amo essa voz que me habita em raros momentos, outras vezes, não chega a sair. Fica suspensa na possibilidade...

...
Agora ficou só este silêncio
esta voz que me diz
O que Setembro era.

Anónimo disse...

Perdoem-me. Esqueci-me de agradecer o poema do Paulo Borges: «e nos flore a boca em riso, rosa e asa».

Retribuo:

Tambores calados/ para a festa de ninguém/vêm do vento vestidas de negro/em filas de tinta preta/as mortes que fui/em honra de quem?//

Tenho na minha boca/um grito em forma de oração/já não chama o tempo/ em pancadas secas./Muda-se por dentro.

Obrigado

Paulo Borges disse...

Quando ressuscitaremos de ser deuses ?

Paulo Feitais disse...

:)

Anónimo disse...

Camélia
Pensa-se tanto no "Criador" do mundo e nega-se tanto a sua presença.
O que receamos... de algo superior a nós?

Que ousadia sermos deuses na terra,
Quem somos nós...

Ana Margarida Esteves disse...

Nos, raca humana, nao somos mais que bichinhos reles que tem feito mais mal ao planeta que piokhos, lesmas, baratas ou ate mesmo ratazanas.

Nem sequer somos dos bichos mais bonitos.

Temos esse dom perigoso que e o da razao e do livre arbitrio, que tanto pode ser usado para o supremo bem como para o supremo mal.

Acho que ja sabem que lado tem predominado na accao humana.