O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Não tenhas medo meu bem, as tempestades são só uma brincadeira de Deus com a sua própria sombra. Toda a opacidade tem brechas. A espessura da nuvem cinzenta e a ligeira bruma da alvorada são só véus que uma realidade translúcida utiliza para que seja descoberta a sua nudez fulgurante neste jogo de sedução do mundo em que tudo se desvela na mesma medida que se oculta, se disfarça de noite para se dar em alvorada, escapa para se idealizar mais belo do que seria se tivesse sido possuído, em que o belo engana e o sinistro liberta e o monstro se revela o príncipe e o príncipe o monstro no momento em que os beijamos fundo na boca. Por isso sossega meu bem, sossega, não há lugar nenhum onde chegar. Eu sou o teu sonho que de ti anda perdido. Só não me reconheces porque me enganei na cor dos olhos e no traço da silhueta, ou porque falei quando devia calar. Mas deixa, quando me reconheceres estarás de partida num comboio para outro sonho do qual já não participo por este vício do impossível. Mas se, ainda assim e apesar de tudo, conseguires ouvir a genuína música que desta aparência meio enganosa se desprende, terás a vida como um grande palco sem portas nem janelas onde saberás dançar a céu aberto ao ritmo de todas as possibilidades e onde sozinhos ou acompanhados, com a existência de Deus ou sem ela, mascarados de verdade ou de mentira, tudo será especial sem necessidade de nada que o justifique.

2 comentários:

Ana Margarida Esteves disse...

"(...) em que o belo engana e o sinistro liberta e o monstro se revela o príncipe e o príncipe o monstro no momento em que os beijamos fundo na boca. (...)"

Isto é muito verdade ... Ó se é!

Paulo Borges disse...

Somos o sonho de sermos e o despertar disso, que não é despertar algum, pois os olhos nunca se fecharam nem abriram. Ter olhos é a nossa cegueira. E tudo isto é terrivelmente belo, amargo e doce, tragicómico !