O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 9 de janeiro de 2010

Ode a Maria

Coleccionava todas as frases
Anunciava-se rindo
“sou aquariana – meu corpo é água- noite e dia”
E a dor, Maria?
“Ah, essa faz parte da vida João…”


Maria ficou desempregada antes da crise. Maria ficou só ainda não se tinha divorciado. Maria partiu um dia destes sem que eu tivesse tempo de abraçá-la e desejar que fosse em paz!
Chamaram-me hoje, mal dava as oito da manhã. Maria tinha-me deixado a sua colecção de clichés. Disseram-me ainda com uma voz apressada que eu me despachasse senão o destino do legado seria o lixo. Haverá melhor destino para uma colecção de clichés? Mas Maria era minha amiga do coração e por muito incómodo que me desse não poderia deixar que os seus clichés virassem cinza num aterro qualquer. Alguém na nossa comunidade deveria dar seguimento ao trabalho da nossa amiga querida.
Baixinha, umas vezes gordinha outras menos, mas sempre baixa Maria tinha sempre uma palavra de conforto pa ra quem precisasse.
Um dia perguntei-lhe como ela sabia tanto. Nunca perdia uma boa frase de Fernando Pessoa, nem daqueles outros menos famosos como o poeta Antonio Machado. Maria timidamente contou-me que coleccionava frases, poemas, conselhos, músicas, recados e lamentos.
- Ah, então coleccionas clichés? Perguntei-lhe a brincar.
- Pois deve ser isso, respondeu-me com um misto de vaidade e orgulho. Colecciono clichés desde menina. Mas a colecção cresceu com a internet. Desde então não paro de coleccionar novos clichés. O problema é que antes eu lembrava-me de cor de todos, agora já são tantos que tenho de os catalogar e depois pesquisar. Dá-me tanto trabalho! Parece até que perdi a espontaneidade. Agora quando um amigo aparece triste e sem saber o que fazer do destino, dou-lhe um abraço, depois peço desculpas e discretamente venho para este quartinho onde tenho o meu portátil. Aqui procuro qual a melhor frase para aquele ser que sofre. Com tanta informação a minha memória vai se escapando. Ando a perder-me. Não sei mesmo se fiz bem em coleccionar tantos. Talvez uns 50 bastassem, não achas?
Sem saber o que responder, ainda surpreso perguntei-lhe de onde tinha nascido essa vontade. Maria então sentou-se, sorriu carinhosamente e disse:
- Eu devia ter um 16 anos quando descobri numa gaveta da cómoda dos meus avós, um livro ilustrado sobre o corpo humano. Qualquer coisa como ‘Aprenda a ter uma vida sexual saudável’. Nunca consegui ler o livro até o fim pois minha avó confiscou-o zangada. Como não percebi nunca a razão da zanga, comecei a ler tudo, a copiar para um caderno frases que me aliviassem a dor de não saber nada da vida. Minha avó nunca me contou porque me proibiu um livro saudável!
Maria contou-me ainda que nesse dia ficou tão desnorteada que pediu a Deus que lhe ensinasse o verdadeiro sentido das palavras, mas Deus era mudo e Maria ficou sem saber que a vida é feita de verdades e mentiras, umas vezes mais verdades – aquelas que sempre nos ensinaram serem mentiras, doutras nem uma coisa ou outra. Maria sequer aprendeu que o não dela era sempre sim doutro lado. Maria nunca soube o que era um ponto de vista.
Desde o episódio da avó beata que guardava um livro pouco 'saudável’ na gaveta, como se guardasse um vibrador, Maria ganhou o hábito de coleccionar frases.
Chequei a tempo de cuidar da colecção. A casa estava toda desarrumada. Roupas pelo chão. Pratos com resto de comida. Parece que Maria partiu sem desejar partir – sem tempo para arrumar nada. E no entanto partiu sabendo que partia. Deixou escrito num pedaço de papel, por cima de quase uma resma completa de papel impresso:
“ Esta é a minha colecção de clichés que deixo ao João. Ele saberá o melhor destino a dar a ela. Que sirva para o bem de todos os seres que conheci, e daqueles que não conheci.”
Maria vivia sozinha. Separara-se há poucos anos. Nunca falava muito desse casamento longo – quase 30 anos. De vez quando sorria e dizia:
- “Ele partiu muito tempo antes de ter partido. Estou sozinha há quase 30 anos…”
Os amigos perdoavam. Sabiam que Maria não falava coisa com coisa, a não ser naqueles momentos em que um deles precisasse de um conforto. Então Maria falava palavras que não eram delas e acudiam o amigo em perigo. Nessas horas todas as palavras fazem sentido, para quem dá e recebe. Não chegam ao pescoço, ficam pelo caminho do coração.
Será que Maria levou alguns dos seus clichés para onde partiu? Será que me deixou a colecção completa? O que faço com uma colecção incompleta? Nada que não seja completo tem valor no mercado dos usados. Nem a mais, nem a menos vai-me dizer o comerciante. Acho que vou procurar um editor, afinal tenho aqui uma resma de clichés. Duvido que haja outro coleccionador como Maria. O tema é actual e vendável. Além disso seria uma homenagem a essa mulher. Se fosse um best-seller reverteria para a nossa comunidade – para o bem dos nossos filhos. Os clichés ganhariam todo o sentido de serem clichés.
Resolvi dar uma volta ao quarto de Maria, arrumar a roupa espalhada. Agora que partira cabia-me oferecer suas roupas. Poucas, é verdade. Tamanhos díspares. Nem pareciam ser da mesma pessoa. Sempre a conheci mais para o gordo, mas ela sempre me dissera que tinha sido muito magra. A verdade é que no armário a maioria da roupa era de uma pessoa muito, muito magra. Dava para notar que teriam para lá de 15 anos. Essa mulher viveu os últimos anos com 2 pares de calças do seu tamanho, o resto: vestidos, camisas, cuecas eram somente a memória de um dia.
Numa gaveta encontro um livro encapado com um papel de embrulho velho. Uma etiqueta branca era preenchida por “PROIBIDA A LEITURA”. Abro o livro e reconheço o pecado. “A arte de uma vida sexual saudável”. Folheio o livro e paro no prepúcio – acho que foi onde Maria parou de ler. Por baixo da palavra, em letra firme alguém anotou: El prepúcio es la piel que cubre una parte del glande y cuya extremidad está abierta para permitir quitar la coronilla del glande.
Fico sem saber o que Maria deixou de aprender com este livro. Ficou na gaveta a memória do acaso. Teria lido o resto do livro depois da avó ter penetrado no reino dos céus? Algum livro terá ensinado a Maria a amar o corpo do homem amado?
Sou tão mais novo que ela, que não sei responder. Mas Maria parecia saber muito pouco da vida, a não ser naquela hora em que era necessário um abraço e um cliché encomendado.
Maria não levou o computador, nem sua caneta, nem nenhum papel. Ficou tudo por aqui. Na mesinha de cabeceira um caderno com recortes de clichés em inglês. Li noutro dia que parecem que fazem mais efeito para aqueles que não são crentes. Maria aprendeu inglês coleccionando clichés. Terá ido para a Austrália?
A campainha toca. Corro para abrir a porta, deve ser o senhorio a pedir as rendas atrasadas. Maria nunca conseguiu pagar as dívidas do passado, nem com todas as mudanças conseguiu pagar as dívidas da vida. Mas não, não era o senhorio, nem o porteiro. Era Carlos, o carteiro da nossa comunidade que procurava por mim, com uma carta de um amigo que trabalha no hospital.
“João encontra-se por identificar o corpo de uma mulher com cerca de 50 anos que tem gravado no pulso: Maria, coleccionadora de clichés por toda uma vida”.
A minha amiga morreu.
Na cama da minha amiga um papel rabiscado:

“A vida que se vive para longe dos clichês não tem garantias. É vida apenas.”

11 comentários:

Coelacanto provoca maremoto disse...

Jelw, Jelw manhnai!
Litteras tuas non sine perturbatione accepi et tibi gratias ago.
Rectus vives, Licini, neque altum
Semper urgendo, neque dum procellas
Cautus horrescis nimium premendo
Litus iniquum.
Interdum juvat insanire!

platero disse...

como pode, quem escreve um texto destes, ter lido até ao fim a frouxa descrição de uma aula de ginástica
aquática?

beijinho

Anónimo disse...

Resumindo

Maria não é um nome. Não é uma pessoa. É um cliché. Uma parede de grafittis assinada por poetas e pensadores, gente vulgar e comum… Um ponto de encontro, uma sala de espera, um aeroporto, uma luva, uma pausa, uma vírgula, uma suspensão, um contorno, uma falha de som, um livro em branco. Maria não vale a pena e não se usa.
Maria é feita de Inverno e não tem coração, por isso, ficou sem tamanho para chegar aos morangos. Maria some-se nos dias como serpentes no deserto e aquece as mãos pequenas na lã das ovelhas que a avó tricotou. A única avó que gostava de Maria.
Maria não é. Maria não há. Maria não vai. Porque Maria não é Maria e muito menos Manel.
Há uma consistente inconsistência em Maria porque não escolhe, porque não percebe que o mundo é feito de lados, porque é silvestre e adora andar descalça a correr pelos campos da quinta do avô que foi para o lixo. Maria é um vestido branco sujo e rasgado e goza com as princesas que nunca viram a morte, nem fugiram da tempestade, nem conhecem o vazio do olhar.
Maria foi pelo esgoto porque não havia mais para onde ir e lá morreu.

ethel disse...

:)

Unknown disse...

Espreitei e fui lendo, lendo e lendo e gostei muito. Queria dizer que fiquei a pensar e está a ficar dentro de mim o seu texto. Vou-me tornar leitora...

Mas gosto muito da Fausta, mesmo qaundo não fala latim...fala e pára-me onde estava. Volto a ler...e apetecia-me acompanhar a mão que desliza desta maneira...para dentro da página.


Obrigada às duas.


Platero, por aqui digo que é sempre desarmante, tem uma alma planicie por onde se vê tudo numa manhã clara de verdade! Pudera a humanidade saber despir-se toda da mesma ganga que a veste, como Platero o sabe fazer! Quando escreve, é como a mãe, quando passa a mão pelos nossos cabelos, é tudo tão verdade, é tudo tão verdade (!), como diria o Negreiros.

Um sorriso muito grato.

ethel disse...

Grata pela vossa generosidade

Anónimo disse...

Não sei o que dizer...
Às vezes as palavras viram-se ao contrário e assumem rostos estranhos...

Mas, à primeira leitura, agradeço o gosto, não sei se muito, não sei se minto...

:)

Unknown disse...

Fausta

Ninguém sabe...não faz mal. Não era para agradecer. O gosto é a expressão gratuita do que nem sequer se comunica, devem ser todas tentativas "mentirosas"...mas a Fausta sabe melhor do que eu isto. A sua escrita revela-o.

O sorriso é que é importante retribuir. Deve ser fausto e em abundância.

Anónimo disse...

A minha escrita revela aquele que a lê.

Retribuo o sorriso.

platero disse...

Claro que Fausta
é a melhor manifestação literária
de JCN. Não me venham com quadras nem cantigas

abraço

Anónimo disse...

Não me irrites, Platero. Eu sou EU, um EGO em grande forma. Se escrevo bem melhor do que o JCN? Mas é evidente! Ele só faz sonetos(sons teo) enquanto eu manisfesto e completo a existência em todo o seu decadente esplendor. Eu tenho uma relação épica e transcendental com o Universo através do terceiro olho, valha-nos Deus. Mostra-me o fragmento de uma alma e eu dar-lhe-ei inteireza e significado. Genialidade, meu caro Wat?son!