O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 4 de outubro de 2008


não espero
apenas acrescento às horas uns bocados de ter visto
uns restos de campanários na aldeia em que vivi a infância possível
tudo se acerta por essa vara cravada no chão
que obriga o sol a sangrar uma sombra
que aponta o agora como o que se entranha nas bocas acesas
de querer
amar é um estuque
e as paredes de estar à escuta
abaulam para fora e parece que a perdição engravidou
e vai dar à luz um navio de bruma
de onde os pássaros poderão cruzar as ânsias
e as expectativas
os pássaros dos dedos
unidos em bando nas mãos esquecidas
nuvens os pés
rochedos no peito são uma praia
o mundo todo
o corpo
de onde se evadiu uma alma secreta
mergulho a respiração é toda a atmosfera a iniciar-se
na lonjura de não ser
que sombreia as razões e os recessos da memória
parto
a vida é uma fome a levedar-se para dentro
há bocados de ter sido espalhados por aí
serão pasto das impossibilidades necrófagas

5 comentários:

platero disse...

gostando muito de HH, não podia deixar de gostar deste poema de PF

um abraço, Paulo

rmf disse...

"tudo se acerta por essa vara cravada no chão
que obriga o sol a sangrar uma sombra"

Outra qualquer passagem do seu pensar serviria de desculpa para agraciar o poema mas, esta em especial a sublinho, como forma subtil de dizer Tempo, Espaço, Volume...

Muitas das vezes faltam-nos as palavras certas para "aquela imagem" que a nós diz tudo, dizendo nada ao mesmo tempo. Esta imagem é um exemplo... http://banhosdecinza.blogspot.com/2007/03/so-horas.html. Se assim o desejar, gostaria que fossem as suas palavras, a dar-lhe tudo o que lhe falta, o Volume e o sentido.

Um abraço, subscrevendo na íntegra as palavras do amigo Platero! :)

Anónimo disse...

Parabéns!...Um grande abraço!

Semente disse...

Corpo e alma.

"os pássaros dos dedos
unidos em bando nas mãos esquecidas
nuvens os pés
rochedos no peito"

gosto das metáforas, das imagens, que associam a natureza ao corpo. Gosto e consigo vê-los assim, os dedos, as mãos, os pés, o peito.


"o corpo
de onde se evadiu uma alma secreta"

Esta é a minha frase eleita deste poema, Paulo.
Porque sinto isso diáriamete.
Nem sempre é bom sentir que não estamos em nós,

Ou que, sendo nós, não somos o que vemos, somos outra coisa.
Mas há dias em que corpo e alma se unem. Esses dias de Sol quente e de céu azul onde reconhecemos os dedos, as mãos, os pés e o peito.

:)

Grata estou pela partilha do poema*

luizaDunas disse...

Eu também não espero, caro Paulo, mas aguardo a vista plena do campanário que me dobra como aos sinos e suspende nos céus um rebate e afundamento.