O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 11 de julho de 2009

IFotografia

Eu sou uma função humanística tardia,

aquilo que nunca é,

uma obtusa força esvaziada do passado.

Só na tradição, no incontaminado dialecto,

existe o meu amor, submerso pelo incandescente horror,

sem solução de continuidade até ao final...

Sou certamente o espelho de um organismo social.

Venho das ruínas perdidas no bulício da vida,

na periferia dos dias,

das igrejas dilaceradas por um obscuro escândalo de consciência,

dos retábulos de altar, das desconcertantes e sinceras aldeias esquecidas...

onde viveram os irmãos.

Ando pelo espaço como um doido.

Canto as ilhas do mundo antigo,

as angras da História, a "vida" que resiste...

a qualquer sonho de coisa alguma.

"Inactual" vagueio fiel pelas ruas como um cão sem dono,

estritamente técnico,

assinalando as osmoses entre imagens e versos.

Ou contemplo os crepúsculos, as manhãs,

nas colinas, no mundo,

no que jaz sem ser visto,

como os primeiros actos da Pós-História,

em perpétua comunhão,

em limites espaçados do verbo,

que ressuscito pelo privilégio do registo civil,

da orla extrema de alguma era sepulta.

Venço a atrofia momentânea do "corpo-literatura".

Regenero-o.

Ele está ali. De olhos fixos e costas arqueadas.

Ele e as palavras.

Profiro: - Monstruoso é quem nasceu das vísceras de uma ideia morta.


E eu, feto adulto,

sucumbo ao febril fervilhar, movo-me,

mais moderno que os amados rostos de ontem,

mais moderno do que qualquer moderno,

a buscar os irmãos que já não existem.

Maria Guedes, Junho de 2009

Grato amiga.

6 comentários:

rmf disse...

"Ergue-te na noite, despido de ti e do mundo! E canta uma vitória nua, sem vencidos, nem vencedores, nem testemunhas."


Sem dúvida, sinergia.

Grato Paulo, um abraço.

Paulo Borges disse...

Grato Eu! Belo poema.

Grande abraço.

Aurora disse...

Belo poema, sim, irmã.

na margem disse...

Gosto do poema e admiro esses seres vagos, escanzelados, atrofiados, sem dono, doidos e perdidos. São os únicos de verdade.

Semente disse...

Quando comecei a ler, sabia que no fim ia ver que tinhas sido tu a postar :)

Palavras fantásticas!
Gosto de ler palavras assim... e saber que não fui eu que as escrevi... e saber que há muitos seres, nesta vida, que sentem dessa maneira linda de sentir...
no fundo, saber que não somos únicos, que a similaridade é possível, que o nosso 'ser' tem maneiras de ser que muitas vezes se assemelha a outros 'seres'.

Que bonito!
*

cereal disse...

É tudo tão lindo. Estou comovida. Deveras.