O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

De Docta Ignorantia


De Docta Ignorantia
(À memória de Nicolau de Cusa)

Se não soubermos como é nosso o mundo,
e que sabemos dele apenas o que tivermos feito,
e que fazemos só a morte que não foi em vão,
e que não foi em vão quanto nascer de novo
é o muito que sofremos para descobrir
que a descoberta é recordar sem tempo
o tempo exacto qual medido em vidas –
Se não soubermos que a vida é um salto brusco
do inanimado às vidas que se encontram
na quantidade em que a si mesmas se erguem,
até que ter falado é o ser que nunca fomos,
o ser que não seremos, mas o puro
início de lembrar o igual de tudo –
Se não soubermos que os iguais transformam
em único e mortal o que é sinal de um só
que se conhece e conhecendo esquece
como ter visto é terem outros visto
o que, entretanto, em nós se transmutou –
Se não soubermos, como saberemos?
E como criaremos? Qual eternidade
terá sentido, irá como uma seta
ao fim que não acaba, em que se cumpre
o próprio fundamento, a porta, o tecto,
a constelado céu de acasos conquistados?
Se não soubermos, como não saber?

Jorge de Sena
(in “Fidelidade”, 1958)

13 comentários:

Luiz Pires dos Reys disse...

Deixo-lhe, Paulo, este Cusano em segunda, mas nobre, mão.

Lembro aqui, meu amigo, o que jamais esquece:

"Nada fizemos para ser homens e, por outro lado, tudo quanto fizermos é pouco."(José Marinho)

(Entre fim e começo das sempre incertas referenciais do tempo - que nos serve de mar, de palco e de pano de fundo - aceite a fraterna comunhão no que sabemos... "isso" mesmo que nos sabe, e que nos sabe ao que sabemos... sempre insondável no abismo de mistério de sua face sem rosto.)

Anónimo disse...

Deixo-lhe Lapdrey um sorriso que colho no poema e no Sena, no poeta e no rio, porque hoje estou cheia de águas que me revolvem por ser tão pouco capaz de ser humana e tão cansada estou de apenas o ser. O sorriso, como a palavra, não sei de onde me vem, mas de onde for é bom e torna tudo ponte em mim. Que me perdoe se um dia não conseguir estar à altura do que escreve, mostra e revela. Como, enfim, perdoamos ao tempo que hoje se vira e no mesmo lance nos distancia e aproxima....


Sorriso para além do nome...

Não consigo hoje comentar o poema, estou sem ânimo.

luizaDunas disse...

Lapdrey, Boa Noite

Este irei reler, como quem lê pela primeira vez as vezes que forem necessárias.
Volto. Mesmo que demore, não tardarei.

Luiz Pires dos Reys disse...

Ah, como se vê, amiga, quanto essas pontes nos transitam!
Agora mesmo deixei-lhe, junto às suas palavras a Platero, uns pobres trapos meus.
Se ao menos eu fora douto, mas também ignorante! Nem uma nem outra coisa sou...
Consola-me,ao menos, e como me consola, testemunhar tal revolver de águas como de suas mais íntimas fontes e rios me confia.
Tivesse eu fontes assim, onde dessedentar a secura que me invade o amiúde dos passos, e também eu acharia as margens e depois o rio delas.
Talvez, então, ouvisse por lá o eco de alguma voz daquelas que me pontifica os sentidos todos entre si.
Eles se confundem então, mas, ao fazê-lo, como que de mim fazem bouquet de alma, e assim vejo que a tenho (por vezes, imagino-me irremediavelmente desalmado), e assim tenho o que imaginara perdera: o saber sentir, saber ter rosto para receber a brisa que das lonjuras se vem acoitar nos recantos mais bem guardados de certos jardins, bosques e prados onde meu senhor e rei de mim me chama, e logo eu vou, e logo eu fico.
Lá, sim, consigo escutar as vozes que escutam.
Só ali consigo ser o que me são.
Também eu, nestes fins de ano, sempre fico com uma certa e indefinível angústia dos fins, dessa película que, como lâmina sem espessura, rasga irremediavelmente o antes e o depois de nada: exactamente como eu não quero nem sei viver.
Nada vejo que termine, nada apreendo que comece: apenas sinto e vivo e amo esse fluir que está em mim, e em todos, esse rio em nós em que quanto mais nos afoguemos, tanto mais encontraremos o fundo imarcescível daquilo que mais é o que verdadeiramente somos.
Nessas profundidades, tanto quanto nas alturas das escarpas em mim, e tanto ainda quanto naqueles ortos deleitosos onde certos seres raros amiúde se encontram – aí eu moro, porque aí está a raiz da minha alma e o firmamento do meu ser.
Lá, onde também mora certa leitora que me lê, como não há…
Boa leitura em 2009, amiga tão cara.
Abraço para todo o ano.
...e um eterno aceno de Donis (ao lado de meu peito)...

Luiz Pires dos Reys disse...

Grato, muito, por sua visita, Luiza (mal sabe qual seja meu nome, amiga, de minhas palavras amiga...)

Meu Sena (vejo que nosso Sena), de quem tanto eu respiro a sincopada, enrolada, impertinente "cadenza", o camoniar da medida e o mais, menos talvez aconselhável, qual essa irritável presteza de ser reagente.
Talvez eu tempere com outra especiaria, e isso me livre de não ter salvação.
Obrigado, Luíza.
Volte, sim: sempre já aqui estará, quando chegar...
Abraço.

Paulo Borges disse...

Caro Lapdrey, agradeço-lhe com a perplexidade que me interroga nestas cusanas palavras:

"Quem pode pois compreender como de uma única forma infinita participam diversamente diversas criaturas, enquanto o ser da criatura não pode ser outra coisa senão o seu próprio resplendor [resplendentia], não recebido de uma forma positiva por algo de outro, mas diverso por contingência?" - Nicolau de Cusa, "Da Douta Ignorância".

Feliz Hora instante!

Anónimo disse...

"...a pluralidade, no mundo, vem de Deus estar no nada" - Nicolau de Cusa, "De Docta Ignorantia".

Expliquem-me isto! Não percebo! Expliquem-me isto! Não percebo! Expliquem-me isto! Não percebo!

Luiz Pires dos Reys disse...

A ficar doido não o aconselho. amigo ignorante nada douto, mas se por acaso ficar adequadamente louco, isso não será em si mesmo uma má coisa: em si (si mesmo), é que pode ser.

Meu caro, vou tentar ajudá-lo, se bem que eu não seja um ignorante suficientemente douto, nem um douto convenientemente ignorante.

Se o mundo é, por natureza, plural; se Deus está, de alguma maneira, no mundo, visto que (aceitemo-lo) o criou, ou dele é origem; pode concluir-se que, de algum modo, a pluralidade no mundo vem de Deus, pelo facto de ele, de algum modo, nele estar.

Espero tê-lo auxiliado, meu amigo: agora, vou repor neurónios... coisa, como se sabe, impossível.
Mas eu não desisto: os meus não são cerebrais, são... logo lhe explico.

Anónimo disse...

Continuo sem perceber... O que é Deus estar no nada? Como se pode estar no nada?

Luiz Pires dos Reys disse...

Se aceitarmos que Deus, estando de algum modo presente em todas as coisas, não está nelas nem em nenhuma delas presente, nem em parte nem totalmente - só poderemos (doutamente ignorando) supor que Ele esteja em nada e no Nada, ou até além dele.
D'Aquele de que nada sabemos, tudo quanto d'Ele afirmemos é mera aproximação afirmativa ou negativa.
D'Ele talvez apenas possamos dizer que no oculto Se mostra, tanto quanto se esconde quando Se nos revela.
Mas, nem num nem noutro Ele está, nem no entre um e outro, para que não vamos imaginar que possamos "apanhá-l’O" ali onde encontramos sempre o “lugar”, seja por onde já passou, seja por onde nunca haja passado.
Isso, porém, talvez não signifique que haja lugar onde Ele esteja e depois deixe de estar, esteja sempre ou jamais esteja: significa tão-só que, movendo-nos nós sempre sem remédio, irremediavelmente lograr-se-nos-á todo o intento de prendermos entre as mãos O que está para lá de todo o mover e não mover, aparecer e desaparecer ou não aparecer, e todo o baile de contrários de que é feita a nossa vida, tanto quanto o vivê-la e o pensá-la.
Mas até disto há limite em nós: talvez nós sejamos apenas o próprio limite que para si anseia o ilimite.
Abraço.

(Paulo Borges, por certo, podendo dispor do tempo de que não dispõe, aqui possa ou poderia dar resposta com aparência dela, que não obstusa e canhestra, qual a minha.)

Anónimo disse...

Estar no nada não será não estar?

Luiz Pires dos Reys disse...

Meu caro "bedelho",
Parece-me que estará a confundir nível "ôntico" e "ontológico"...

Por outro lado, o meu amigo pode ter já sentido algum belo dia a cabeça um tanto "vazia", "oca" e ela, no entanto, não estar "de factum" vazia nem oca: terá (assim espero) continuado a ter lá por dentro o "spaghetti" cinzentinho do costume. Certo?
Obrigado.
E faça ao favor de vir cá, sempre que queira, meter o seu bedelhinho.

Paulo Borges disse...

Caro Lapdrey, poderia ceder a tentar comentar as afirmações de Nicolau de Cusa segundo a perspectiva da sua tradição teológico-filosófica, como o faço nas minhas aulas, para meu tormento e dos meus alunos, mas aqui, pois que disso estou livre, limito-me a dizer que na verdade não consigo encontrar um sentido para a afirmação, enquanto algo que tenha como referente uma experiência actual e não uma mera equação mental de conceitos tradicionais de uma dada cultura. Pode ser subjectivismo da minha parte, mas a verdade é que nada sinto ou experiencio que corresponda a "Deus", "pluralidade", "mundo" e "nada" e menos ainda às articulações que o Cusano entre tais conceitos postula. Lamento se o decepciono com a minha decepção perante tão vetustos conceitos e palavras.