sábado, 27 de dezembro de 2008
"É Natal, ninguém leva a mal!" - III (fim)
Se uma estreita relação se mantém, durante toda a Antiguidade e Idade Média, entre “loucos religiosos e profanos”, consoante a crença nos dons espirituais, de clarividência, profecia e cura, do bobo da corte, e se Festas como a dos Loucos, do Burro e dos Inocentes significativamente só persistem, com vitalidade, enquanto permanece intensa a própria vivência religiosa, declinando com o aburguesamento racionalista que visa excluir a loucura da vida espiritual e social, aí onde Brant a exorciza e Erasmo faz o seu irónico elogio, inconscientemente fúnebre, começando o moderno universo concentracionário e correccionário descrito por Michel Foucault na História da Loucura na Idade Clássica - o que, pensando no famoso quadro de Brueghel, resulta numa autêntica vitória da Quaresma clerical e reformadora sobre o Carnaval popular e tradicional - , não é menos verdade que o louco divino excede o cada vez mais funcionalizado e profissionalizado bobo da corte, na exacta medida do excesso da sua liberdade relativamente a todos os poderes instituídos, e que a divina loucura do total descentramento de uma santidade que se oculta e desconhece transcende a mera catártica descompressão das pulsões e dos instintos individuais e colectivos, geralmente destinada a confirmar e reforçar a ordem vigente, sendo terapeuticamente canalizada para uma vivência mais plena da habitual vida religiosa, conforme o elucida o texto justificativo das Festas dos Loucos, em 1444, pela Faculdade de Teologia de Paris: “Os nossos eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque deveria ela ser-nos interdita ? Não festejamos seriamente, mas por pura brincadeira, para nos divertirmos segundo a tradição, para que, ao menos uma vez por ano, nos abandonemos à loucura, que é a nossa segunda natureza e parece ser-nos inata. Os tonéis de vinho rebentariam se não se abrisse de vez em quando o batoque para os arejar. Ora nós somos velhas naves e tonéis mal ajustados que o vinho da sabedoria quebraria se o deixássemos ferver assim por uma devoção contínua ao serviço divino. (...) É por isso que entregamos alguns dias aos jogos e às bobices a fim voltar de seguida com mais alegria e fervor ao estudo e aos exercícios da religião”.
Parece-nos, todavia, que um outro sentido e motivo, mais profundo que o da mera catarse psicossocial, e mais coerente com a radicalização da louca irrisão de si e do mundo, que encontrámos nos loucos por amor de Deus, se encerra tradicionalmente nestas práticas, porventura já inconscientemente vivido ou quiçá dispensador da necessidade da consciência para que seja operativamente eficaz. Conforme apontámos a propósito de Mestre Eckhart, perguntamo-nos se nesta cáustica e caótica violação e suspensão de todos os respeitos, por ocasião e no seio da própria liturgia religiosa, não se tratará de estender ao sagrado e ao divino, às coisas tidas por mais sacrossantas, aquele libertador iconoclasmo do espírito que se recusa a aceitar como digno de veneração e culto tudo o que se lhe depare, quer como exterior e extrínseco, quer como princípio, fundamento e estrutura de uma ordem de formas, determinações, medidas e limites, e que não possa transcender e reintegrar infinitamente na sua própria auto-transcensão como sujeito de um mundo de representações e objectos que, na exacta medida da sua apresentação como sagrados e divinos, se constituem como os mais dissimulados ídolos que acima de tudo importa reconhecer e desconstruir. Quer por via negativa, na inversão e suspensão do mundo religiosa, moral e socialmente correcto, quer por via positiva, na experiência de uma liberdade face a toda a determinação divina, humana ou outra do ser, emergente na possibilidade da carnavalesca mutação das formas e das aparências, e na orgiástica abolição de todas as fronteiras entre sagrado e profano, céu e terra, masculino e feminino, indivíduo e mundo, homem e Deus, aquilo que surge como um sacrilégio pode veicular uma libertação que, noutro sentido, pode ser vista como a mais elevada forma de cumprimento do sentido da religião e de experiência do sagrado, enquanto vivência do Infinito que abole todas as mediações. Isto com a condição de começar e terminar por destituir a idolatria do egocentrismo, não se detendo numa mera prática do irrespeito e da licença por um sujeito que se ria de tudo sem nunca haver rido de si, supondo que no seu iconoclasmo se está efectivamente a libertar de algo que não das suas próprias e ilusórias projecções e representações, a começar pela da sua suposta solidez e autarquia ontológica.
E, se porventura estamos aqui perante uma dessas manifestações da verdade que excede as possibilidades comuns do entendimento e, sobretudo, da vivência, convém declararmos que estas são, antes de mais, e obviamente, as nossas...
- "Da Loucura da Cruz à Festa dos Loucos. Loucura, sabedoria e santidade no cristianismo", in Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp.154-156 (as notas de rodapé foram suprimidas).
Parece-nos, todavia, que um outro sentido e motivo, mais profundo que o da mera catarse psicossocial, e mais coerente com a radicalização da louca irrisão de si e do mundo, que encontrámos nos loucos por amor de Deus, se encerra tradicionalmente nestas práticas, porventura já inconscientemente vivido ou quiçá dispensador da necessidade da consciência para que seja operativamente eficaz. Conforme apontámos a propósito de Mestre Eckhart, perguntamo-nos se nesta cáustica e caótica violação e suspensão de todos os respeitos, por ocasião e no seio da própria liturgia religiosa, não se tratará de estender ao sagrado e ao divino, às coisas tidas por mais sacrossantas, aquele libertador iconoclasmo do espírito que se recusa a aceitar como digno de veneração e culto tudo o que se lhe depare, quer como exterior e extrínseco, quer como princípio, fundamento e estrutura de uma ordem de formas, determinações, medidas e limites, e que não possa transcender e reintegrar infinitamente na sua própria auto-transcensão como sujeito de um mundo de representações e objectos que, na exacta medida da sua apresentação como sagrados e divinos, se constituem como os mais dissimulados ídolos que acima de tudo importa reconhecer e desconstruir. Quer por via negativa, na inversão e suspensão do mundo religiosa, moral e socialmente correcto, quer por via positiva, na experiência de uma liberdade face a toda a determinação divina, humana ou outra do ser, emergente na possibilidade da carnavalesca mutação das formas e das aparências, e na orgiástica abolição de todas as fronteiras entre sagrado e profano, céu e terra, masculino e feminino, indivíduo e mundo, homem e Deus, aquilo que surge como um sacrilégio pode veicular uma libertação que, noutro sentido, pode ser vista como a mais elevada forma de cumprimento do sentido da religião e de experiência do sagrado, enquanto vivência do Infinito que abole todas as mediações. Isto com a condição de começar e terminar por destituir a idolatria do egocentrismo, não se detendo numa mera prática do irrespeito e da licença por um sujeito que se ria de tudo sem nunca haver rido de si, supondo que no seu iconoclasmo se está efectivamente a libertar de algo que não das suas próprias e ilusórias projecções e representações, a começar pela da sua suposta solidez e autarquia ontológica.
E, se porventura estamos aqui perante uma dessas manifestações da verdade que excede as possibilidades comuns do entendimento e, sobretudo, da vivência, convém declararmos que estas são, antes de mais, e obviamente, as nossas...
- "Da Loucura da Cruz à Festa dos Loucos. Loucura, sabedoria e santidade no cristianismo", in Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp.154-156 (as notas de rodapé foram suprimidas).
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6 comentários:
Acabaram-se as Festas dos Loucos porque vivemos na total indiferença a tudo e todos: somos uma civilização anestesiada, pronta para o matadouro.
A celebração dos loucos" é infinda, caro "Anónimo"...
Certos "tres-loucos" anónimos é que não se cansam de assistir (passiva e activamente) a esta festa.
Bem-vindo,"Sem nome", que a cada palavra mais se nomeia!
A propósito: pronto para o matadouro, também, meu velho? ...
Óptimo! Sempre é mais um ou... menos um...
"É Natal, ninguém leva a mal!"
(só quem, eventualmente, esteja já "mal"...)
Esta questão da “sagração da loucura”, da “loucura sagrada”, da “divina loucura”, ou até mesmo da simples “loucura criadora” tem ramificações de sentido por múltiplas sizígias.
Diz Gregório de Nissa (in "A Vida de Moisés", PG 44, 377 B, citado por Paul Evdokimov, in “Présence de l’Esprit Saint dans la tradition orthodoxe”, Paris, Éditions du Cerf, 1977, pág. 24) :
« Os conceitos criam os ídolos de Deus, apenas o espanto logra alcançar algo”.
Analogicamente, talvez pudessemos dizer que sentimentos, pensamentos, hábitos, ritos e rotinas são os ídolos com que a nossa capacidade de discriminação da (nossa) realidade e a lucidez, com que lhe conferimos tal ou tal sentido, constroem o que seja o (mais ou menos elevado) nível de consciência dela, em nós emergente.
(Esta temática, caro Paulo - ambos o sabemos - constitui um vasto âmbito-charneira em que o feixe de um conjunto de questões se entrecruzam e potenciam, mas que haverá sempre que dilucidar, quanto o saibamos.)
Será que o espanto alcança ou suspende o querer alcançar, próprio do "conceito", que etimologicamente remete para a apreensão, o agarrar, o capturar (cf. o con+capio latino e o Begriff germânico)? Mas compreende-se o que o profundo S. Gregório de Nissa indica.
Pondo tal espanto em mim (só por mim posso falar), eu diria que o "deslumbramento" de tal espanto perante a presença profunda (silente/falante) de tudo, mais instaura um "estado", uma "condição", um "fluxo" de consciência compreensiva do que apreensiva. Mas ...
(As próprias aspas que me vejo "obrigado" a apor denunciam a dificuldade do dizer o que se mais a isso furta.)
Sim, é isso que penso, ou, melhor, vivo no espanto, caro Lapdrey.
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