terça-feira, 16 de dezembro de 2008
Morte e apetite de vida
"É o amor que gera o objecto amado. "O objecto do amor, qualquer que seja, não preexiste ao amor, mas é por ele criado" (Gentile). Nesta ordem de ideias, portanto, no mundo apareceria como o correlato projectivo de nosso amor natural, do nosso sistema de impulsos que dilataria diante de nós o contínuo empírico. "Nichts ist, das dich bewegt, du selber bist das Rad, das aus sich selbsten läuft und keine Ruhe hat" [Nada há que te mova, tu próprio és a roda, que por si mesma corre e nenhum repouso conhece] (Angelus Silesius). A doutrina platónica do corcel indócil que, pesando sobre o carro da alma, o arrasta para a terra relaciona-se a esta mesma tese que vê em nossa constituição apetitiva a instância responsável pelo nosso nascimento na carne. Nosso corpo e o complexo de seus órgãos tais como se manifestam no espaço seriam a exteriorização dos nossos impulsos, uma espécie de transposição espacial de nossa concupiscência ontológica. Isto já nos disse Schopenhauer: "O corpo com todas as suas mudanças e actos não é mais do que a Vontade objectivada, isto é, transposta em representação". O corpo como símbolo de nossa devoção, de nossa militância, é um documento vivo de nosso assentimento ao jogo da vida; a presença corporal já é um índice dessa escolha metafísica que nos põe como dilectores mundi [amantes do mundo]. Na menor parcela de tecido vivo, enquanto a vida se alça como um ramo para o céu, subsiste esse profundo e radical assentimento. O reino dos vivos se definiria, portanto, como a assembleia daqueles que, pela determinação do seu amor e do seu zelo, pelo sentido prospectivo de seu cuidado, gerariam sempre mundo ao seu redor. É justamente essa comunidade de libido e de cuidado que o evento da morte vem interromper, destruindo o vínculo exteriorizado dessa comparticipação" - Vicente Ferreira da Silva, "Meditação sobre a morte", in Dialéctica das Consciências e outros ensaios, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2002, p.45.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
9 comentários:
Hoje, é o nosso dia! O meu e o teu!
Parabéns, Serpente Emplumada!
Também ao Paulo Borges e a Cioran que assistiram ao parto!
Na verdade fazemos hoje anos! É impressionante como há alguém tão atento! Eu próprio não recordava exactamente o dia!
Parabéns a todos e que o voo e a Folia continuem!
Esta "vida" que a morte vem interromper não será uma mais profunda e esquecida morte? Não será o mundo um cemitério? Não será a chamada "morte" uma oportunidade de reassunção da vida perdida com o nascimento? Não estará esta oportunidade sempre presente, em "vida", sem antecipar ou esperar pela extinção do corpo? Quem morre na minha vida? Quem vive na minha morte?
Porque é que tu, que me lês, ou seja, eu mesmo, te sentes tão perturbado perante estas interrogações e te furtas tanto a elas? Porque não deixas que todo o teu ser por elas se converta num imenso "?"
Esta roda que a si mesma se move sem descanso, a nossa própria mente, é a raiz da "mobilização infinita" que, para Peter Sloterdijk, caracteriza a mundialização da civilizaçao ocidental.
E como parar esta roda? E o que acontece se a pararmos?
A incontornável triangulação mundo | vida | morte que o excerto de Vicente Ferreira da Silva aflora com aguda pertinência, melhor do que qualquer comentário que me ocorrera fazer, tem, creio, excelente paralelo e contraponto nas palavras de um igualmente profundo homem de pensar, Vergílio Ferreira:
“Há uma distância infinita entre a aparição da verdade, a imediata evidência de seja o que for, e até mesmo o seu “reconhecimento” [aspo aqui o que está, no original, em itálico]: quando olhamos a evidência pela segunda vez, já ela está alinhada, classificada, endurecida entre as coisas que nos cercam. Eis porque nós ignoramos ou esquecemos depressa a face do que há de estranho nos factos mais banais: no da vida, da morte. Assim nos surpreendemos até ao absurdo, até à incredibilidade, quando nos morre um parente, um conhecido, ou seja, de algum modo, uma fracção de nós; e só admitimos que ele tenha de facto morrido quando definitivamente se afastou para o passado, saiu do nosso mundo, deste mundo estável, harmónico, regular, e faz já parte das sombras indistintas de outrora, é, em suma, uma ficção: só entendemos a morte quando a sabemos de cor, quando ela não significa já a aniquilação de uma vida como a nossa, mas é apenas as margens desta vida e que a prolongam, o nada que nunca a ela pode aceder, a pode pôr em causa, quando ela é o contorno que lhe não altera a sua (nossa) perenidade.
O mistério e o seu alarme são o tecido de tudo. Mas como o ignoramos! Estamos instalados na vida como se nós próprios não existíssemos, como se fôssemos o próprio mundo que existe, a própria realidade que é, a sua presença absoluta de estar sendo. E a simples reflexão de que é o mundo que depende de nós, de que a sua maravilha está suspensa, para nós, do nosso olhar, dá-nos vertigens”.(Vergílio Ferreira, “Carta ao Futuro”, Lisboa, Bertrand, 1981, págs. 24-26)
Assim como alguém se perguntou se uma folha, ao cair numa floresta, fará algum ruído se lá não estiver um ouvido humano para quem tal seja audível, aqui se perguntam Vergílio e Vicente, nas multívias linhas que tal problemática por certo comporta, se quando outro ser humano cai morto, isso não será para nós senão “importante” quando e enquanto (temporariamente) tal nos afecte …
Que valor tem então a vida, e terá a morte: o valor que têm? Ou “apenas” aquele que lhes conferimos ao, uma e outra, nos serem ou doces ou amargas…!? E não será isso o mesmo, por apenas para o homem e sua circunstância ter valor o valor?
Deus, vida, morte e o mais - nada disso tem valor, senão o que lhe demos, pois se há homens que os prezam acima de si mesmos, outros há para quem vida, morte ou Deus são desprezíveis por eles mesmos não terem valores, ou não terem valores que os contemplem, ou não quererem que tenham o valor que tenham: em tudo isso tem ainda razão Vergílio Ferreira quando escreve, mais adiante, no mesmo texto (págs. 29): “a uma interrogação só responde a evidência que se não sabe senão quando já nos possui”.
“Morrei antes de morrer !” – hâdith islâmico
“Sterben wird’ich, um zu leben !”
[“Morrerei, para viver !”]
- Coro, Sinfonia nº 2, "Ressurreição", de Gustav Mahler
"O objecto do amor, qualquer que seja, não preexiste ao amor, mas é por ele criado" (Gentile).
Como serias tu
desalinhado?
Como serias tu
Amando-me?
Brilhariamos os dois
Enlaçados?
E se eu sonhar contigo
Serás real?
Enviar um comentário