quinta-feira, 25 de dezembro de 2008
apostamos tudo
às vezes tu levantas-te de manhã da cama e pensas,
não vou fazê-lo, mas ris por dentro
lembrando todas as vezes que te sentiste assim, e
caminhas para a casa de banho, lavas-te, vês essa cara
ao espelho, ai ai ai, mas penteias-te na mesma,
vestes a roupa de sair à rua, dás de comer aos gatos, apanhas
o jornal dos horrores, coloca-lo em cima da mesa da cozinha, beijas
a tua mulher, e recuas o carro para a vida,
como milhões de outros que entram na arena mais uma vez.
agora estás na auto-estrada passando por entre o trânsito,
caminhas ao encontro de algo e de rigorosamente nada enquanto
ligas o rádio e apanhas Mozart, o que é algo, e de alguma maneira
consegues atravessar os dias lentos e os dias cheios de trabalho e os dias
aborrecidos e os dias horríveis e os dias raros, todos ao mesmo tempo bons
e ao mesmo tempo maus porque
somos ao mesmo tempo diferentes e iguais.
encontras a saída, conduzes pela zona mais perigosa
da cidade, sentindo-te momentaneamente bem enquanto Mozart
atravessa o teu cérebro e percorre os teus ossos e
sai pelos teus sapatos.
tem valido a pena lutar esta luta desigual
enquanto todos conduzimos
e apostamos num próximo dia.
(poema de Charles Bukowski)
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10 comentários:
Grato, Liliana, por este Bukowski. Por alguma razão, aqui me ocorre este "auto-epitáfio n.2", de José Paulo Paes:
para quem pediu sempre
/tão pouco
o nada é positivamente
/um exagero.
O nada é tudo, será por isso que é um exagero?
Não sei se concordo por inteiro, amiga "rapinolivresca".
O nada não é, parece-me, o contrário do tudo, é talvez o contrário de tudo: mas é sobretudo o que se furta a tal dualidade.
O contrário de tudo é, quanto a mim, coisa nenhuma.
O contrário de alguma coisa é, por seu lado, nenhuma coisa.
Eu creio, aliás, que esta subtileza que a língua portuguesa tem de ser capaz de diferenciar tão subtis nuances de sentido mediante a mera inversão da ordem entre substantivo e adjectivo, é algo muito de valorizar e estudar, tanto mais atendendo a esta "paradoxia crónica" que reincidimos em visitar.
Mas, voltando, há o exagero da demasia e o exagero da carestia: uma e outra se roçam, ali onde a náusea de uma toca o desespero da outra, e se chocam assim na surdez dum grito que só pode envergonhar-nos se já não formos verdadeiramente humanos.
Lapdrey,
Bukowski tem a magia de nos prender e levar de encontro a outros pensamentos.
Este de José Paulo Paes....
suscitou ma troca de palavras com A rapariga que roubava livros, onde com muito interesse me sentei a ler as palavras
"há o exagero da demasia e o exagero da carestia: uma e outra se roçam, ali onde a náusea de uma toca o desespero da outra, e se chocam assim na surdez dum grito que só pode envergonhar-nos se já não formos verdadeiramente humanos."
e algures prolongou-se em mim o efeito Bukowski
Liliana, se deixássemos de apostar num próximo dia, se perdêssemos o medo de perder os hábitos, se sepultássemos a esperança de que um belo dia, sem os perdermos, tudo será diferente, as nossas vidas explodiam e o universo agradecia-nos.
Grato pelo "efeito Bukowski" e longa vida, não ao desespero, mas à não-esperança!
gárgula,
o prisma assim colocado reflecte uma luz diferente
e, em boa verdade, mais próxima à não-esperança.
Assim o espero.
Gárgula,
Quem não tem esperança já não espera! Então? Que é isso?
Uma recaída, foi?
Houve ali quase uma chispa de um achado de génio, mas o raio do verbo "perder" é que o perdeu, meu amigo: "e perdêssemos o medo de perder os hábitos (...)sem os perdermos"(???)
Não estou a entender muito bem... Mas deve ser coisa minha. O meu biorritmo hoje está assim-assim: estão os valores todos abaixo dos 50%.
Olha! 50%? Achei uma...
Vejam: Há aquele rapper 50cent, certo?
Malta, eu sou o lusófono 50percent!
Cá me parece que estou é a ficar vesgo do entendimento, meu caro, e ... um amigo dum gárgula vesgo, bem... enfim...
Vá-se mas é embora, que eu não levo a mal!
Caro Lapdrey, experimente ler melhor, sem precipitações... E seja sensível à ironia.
Caro Gárgula,
Devo-lhe um pedido de desculpa.
Concordo com o que deixou dito à Liliana e, consigo, eu concordarei em quanto aqui me encontrar concordante no seguinte:
"Se deixássemos de apostar num próximo dia", cada dia seria sempre dia inaugural, de tudo, em tudo ou quase tudo novo.
O não planear-se o que venha, deixa sempre o que vem com o devir fresco como se fosse a primeiríssima vez que tal acontecesse ou a primeira coisa que "houvesse" acontecido no universo: o que em parte, num ponto de vista mais "quântico", é talvez mais próximo do que possa ser a "verdade".
Parêntese:
(Se tivessemos telescópios suficientemente "potentes", tanto recuaríamos no tempo, fotografando o que “em si” é já passado que, um belo dia, chegaríamos ao tal "momento" do Big Bang. Aí, outro problema se nos depararia: talvez verificássemos que o cosmos é uma espécie de “uroboros”, que começa onde acaba, e acaba onde começa - como tudo afinal talvez seja. Resultado: ficaríamos em certo sentido na mesma, precisamente porque o "sentido" de tudo isto não ter sentido à vista é que ele, muito provavelmente, não é encontrável "ad intra" do universo (deste, ou de todos os eventualmente restantes)... Nisto tudo, o tempo mostrar-se-ia - como disse alguém cujo nome aqui me não ocorre - "Deus ‘criou’ o tempo para que as coisas não se passassem todas ao mesmo tempo": eu tenho para mim que se passam, sim, roçando embora sempre a "eternidade" que as ancora em fundamento e firmamento de toda a dualidade aí soluta...)
"Se perdêssemos o medo de perder os hábitos", as rotinas, ritos e rituais pulverizar-se-iam a si mesmos, o que com isso apenas traria ganho: mais "novidade", e menos "entropia".
"Se sepultássemos a esperança de que um belo dia, sem os perdermos, tudo será diferente, as nossas vidas explodiam e o universo agradecia-nos".
Aqui foram os tempos dos verbos que me rasteiraram, caro Gárgula: onde o meu amigo futurou, eu teria condicionado; onde imperfez o pretérito, eu de novo teria condicionado.
"Longa vida, não ao desespero, mas à não-esperança!"
Aqui, lá me vejo eu positivamente "esticado" entre a "semi-certeza" ou "quase-certeza" da "esperança", e a evidente vantagem da "não-esperança", no sentido em que a "esperança" porventura pode (talvez sempre o faça) agrilhoar-nos ao que há-de vir (se tal ou tal houver de haver, obviamente).
O ponto, para mim, é este: por definição, nunca poderá existir uma "esperança" absolutamente focada e nítida: se assim fora, desde logo ela transmutar-se-ia em certeza. O que a aniquilaria.
Onde acabe a “quase-certeza” e comece a “não-esperança”, ou onde e como elas se sobreponham - eis a questão, parece-me.
Talvez aqui tenhamos de dilucidar-nos mais um tanto.
Grato pela gargúlea paciência para com a minha rasteirada (in-)compreensão.
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