O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 12 de março de 2008

O Incrível e incomparável Nasrudim

Para um galego a apresentação do Mullah Nasrudim é quase inevitável. A figura do parvo-louco-sábio tem muito da nossa Galiza. De facto muitas das suas histórias já as tinha ouvido dos lábios do meu avô mas tendo como protagonista ao inefával e saudoso Pir-i-Lampo, um protótipo de ares celtas e gaitas ao vento. Quiçá a única diferença seja certo quixotismo meigo do nosso Pir, algo ensonhador demais e com certas teimas metafísicas que ele próprio se encarrega de boicotear à beira de um copo de vinho Amandi e uma lareira perdida nas montanhas do Courel. Lá, perto d’O Cebreiro (onde se diz que está escondido ainda o Santo Graal) ouvi as suas sentenças e flechas enquanto encenava para mim umas anedotas vestido à moda dos bobos da corte medievais. Mas, enfim, essa é uma história que algum dia contarei, mas é agora outra história e deve deixar-nos aqui. Vejamos algumas das iluminadas histórias do INCRÍVEL E IMCOMPARÁVEL MULLAH NASRUDIM que segundo me contaram anda pelo Brasil e de lá não quere sair. Enfim, como ele diz: “Desfruta ou tenta aprender, chatearás alguém. Não o faças e chatearás alguém”


Como Nasrudim criou a verdade

"Estas leis não tornam melhores as pessoas", disse Nasrudim ao Rei; "elas devem praticar certas coisas de forma a sintonizarem-se com a verdade interior, que se assemelha apenas levemente à verdade aparente."

O Rei decidiu que poderia fazer que as pessoas observassem a verdade – e o faria. Ele poderia faze-las praticar a autenticidade. O acesso a sua cidade era feito por uma ponte, sobre a qual o Rei ordenou que fosse construída uma forca. Quando os portões foram abertos ao alvorecer do dia seguinte, o Capitão da Guarda estava postado à frente de um pelotão para averiguar todos os que ali entrassem. Um édito foi proclamado: "Todos serão interrogados. Aquele que falar a verdade terá seu ingresso permitido. Se mentir, será enforcado."

Nasrudim deu um passo à frente.

"Aonde vai?"

"Estou a caminho da forca", respondeu Nasrudim calmamente.

"Não acreditamos em você!"

"Muito bem, se estiver mentindo, enforquem-me!"

"Mas se o enforcarmos por mentir, faremos com que aquilo que disse seja verdade!"
"Isso mesmo: agora sabem o que é a verdade: a sua verdade!"


O Tolo que era Sábio

Todos os dias o Mullah Nasrudin ia esmolar na feira, e as pessoas adoravam vê-lo fazendo o papel de tolo, com o seguinte truque: mostravam duas moedas, uma valendo dez vezes mais que a outra. Nasrudin sempre escolhia a menor. A história correu pelo condado. Dia após dia, grupos de homens e mulheres mostravam as duas moedas, e Nasrudin sempre ficava com a menor. Até que apareceu um senhor generoso, cansado de ver Nasrudin sendo ridicularizado daquela maneira. Chamando-o a um canto da praça, disse:

Sempre que lhe oferecerem duas moedas, escolha a maior. Assim terá mais dinheiro e não será considerado idiota pelos outros.

O senhor parece ter razão, mas se eu escolher a moeda maior, as pessoas vão deixar de me oferecer dinheiro, para provar que sou mais idiota que elas. O senhor não sabe quanto dinheiro já ganhei, usando este truque. Não há nada de errado em se passar por tolo, se na verdade o que você está fazendo é inteligente. Às vezes, é de muita sabedoria se passar por tolo e é muito melhor passar por tolo e ser inteligente do que ter inteligência e usar fazendo tolices.

"Os sábios não dizem o que sabem, os tolos não sabem o que dizem!"

Afastando tigres

Certo dia ele estava jogando migalhas de pão em torno de sua casa. Um vizinho que passava perguntou:
Mullah, porque você está fazendo isso?

Ah, eu faço isso para manter os tigres afastados, explicou Nasrudim.

Mas não há tigres nesta região!

Eficaz, não é? Conclui Nasrudim."


Casamento


Nasrudim estava proseando com um conhecido , que lhe indagou:

Mullah, responda-me, você nunca pensou em se casar?

Sim, claro que já. Quando eu era jovem, determinei-me a achar o meu par perfeito. Cruzei o deserto, cheguei em Damasco, e conheci uma mulher belíssima e espiritualmente muito evoluída; mas as coisas triviais, do dia a dia, a atrapalhavam.

Mudei de rumo e lá estava eu, em Isfahan; ali pude conhecer uma mulher com dom para as coisas materiais, da vida caseira, e além disso se mostrou muito espiritualizada. Porém, carecia de beleza física. Pensei: o que fazer?

E resolvi ir ao Cairo. Lá cheguei e logo fui apresentado a uma linda jovem, que também era religiosa, boa cozinheira e conhecedora dos afazeres do lar. Ali estava a minha mulher ideal.

Entretanto você não se casou com ela. Porquê?

- Ah, meu amigo. Entretanto ela buscava o seu homem ideal.




O anúncio

Nasrudim postou-se na praça do mercado e dirigiu-se à multidão:

Ó povo deste lugar! Querem conhecimento sem dificuldade, verdade sem falsidade, realização sem esforço, progresso sem sacrifício?

Logo juntou-se um grande número de pessoas, com todo mundo gritando:
- Queremos, queremos!

Excelente! Era só para saber. Podem confiar em mim, que lhes contarei tudo a respeito, caso algum dia descubra algo assim.


O sermão de Nasrudim

Certo dia, os moradores do vilarejo quiseram pregar uma peça em Nasrudim. Já que era considerado uma espécie meio indefinível de homem santo, pediram-lhe para fazer um sermão na mesquita. Ele concordou. Chegado o tal dia, Nasrudim subiu ao púlpito e falou:

Ó fiéis! Sabem o que vou lhes dizer?

Não, não sabemos

Enquanto não saibam, não poderei falar nada. Gente muito ignorante, isso é o que vocês são. Assim não dá para começarmos o que quer que seja - disse o Mulla, profundamente indignado por aquele povo ignorante fazê-lo perder seu tempo.

Desceu do púlpito e foi para casa. Um tanto vexados, seguiram em comissão para, mais uma vez, pedir a Nasrudim fazer um sermão na Sexta-feira seguinte, dia de oração.

Nasrudim começou a pregação com a mesma pergunta de antes. Desta vez, a congregação respondeu numa única voz:

Sim, sabemos

Neste caso não há porque prendê-los aqui por mais tempo. Podem ir embora.
E voltou para casa. Por fim, conseguiram persuadi-lo a realizar o sermão da Sexta-feira seguinte, que começou com a mesma pergunta de antes.

Sabem ou não sabem?

A congregação estava preparada.

Alguns sabem, outros não.

Excelente - disse Nasrudim - então, aqueles que sabem transmitam seus conhecimento para àqueles que não sabem.

E foi para casa.



O barco e o homem letrado

Em dada ocasião, Nasrudim estava em um barco com um homem letrado, quando o Mullá disse algo que contrariava as regras gramaticais:

Você nunca estudou gramática? - perguntou o estudioso.

Não, nunca - respondeu Nasrudim.

Nesse caso, metade de sua vida se perdeu - retrucou outro.

Nasrudim ficou em silêncio durante algum tempo, quando finalmente falou:

Você nunca aprendeu a nadar? - disse o Mullá ao homem letrado.

Não, nunca - este respondeu.

Então, nesse caso, toda a sua vida se perdeu. Estamos afundando.







11 comentários:

Anónimo disse...

É.

Ana Margarida Esteves disse...

Estas piadas so Mullah Nasrudin sao umas autenticas perolas;).

Deveria haver um curso em todas os cursos de todas os liceus e universidades so dedicado ao estudo da obra do Mullah Nasrudin.

O problema e que isso poderia levar muito psicoterapeuta e muito catedratico ao desemprego;) ...

Anónimo disse...

Mais um episódio desse herói da Pérsia:

Desejos


«A festa reuniu todos os discípulos de Nasrudin. Comeram e beberam durante muitas horas, sempre a conversar sobre a origem das estrelas e dos propósitos da vida. Quando já era quase de madrugada, preparavam-se todos para voltar para as suas casas. Restava um belo prato de doces sobre a mesa. Nasrudin obrigou os seus discípulos a comê-lo. Um deles, porém, recusou:
- O mestre está-nos a testar. Quer ver se conseguimos controlar os nossos desejos.
- Estás enganado. A melhor maneira de dominar um desejo, é vê-lo satisfeito. Prefiro que vocês fiquem com o doce no estômago do que no pensamento, que deve ser usado para coisas mais nobres.»

«É.»

Anónimo disse...

Desculpem lá só mais esta:

Nasrudin e o Ovo


Certa manhã, Nasrudin colocou um ovo embrulhado num lenço, foi para o meio da praça da sua cidade, e chamou aqueles que estavam ali.
- Hoje vamos ter um importante concurso! A quem descobrir o que está embrulhado neste lenço eu dou de presente o ovo que está dentro!
As pessoas se olharam, intrigadas, e responderam:
- Como podemos saber? Ninguém aqui é capaz de fazer esse tipo de previsões!
Nasrudin insistiu:
- O que está neste lenço tem um centro que é amarelo como uma gema, cercado de um líquido da cor da clara, que por sua vez está contido dentro de uma casca que se parte facilmente. É um símbolo de fertilidade, e lembra-nos dos pássaros que voam para seus ninhos. Então, quem é que me pode dizer o que está aqui escondido?
Todos os habitantes pensavam que Nasrudin tinha nas suas mãos um ovo, mas a resposta era tão óbvia, que ninguém resolveu passar vergonha diante dos outros. E se não fosse um ovo, mas algo muito importante, produto da fértil imaginação mística dos sufis? Um centro amarelo podia significar algo do sol, o líquido em seu redor talvez fosse um preparado alquímico. Não, aquele louco estava a querer fazer alguém passar por ridículo. Nasrudin perguntou mais duas vezes, e ninguém respondeu.

José António Lozano disse...

Acho que é bom que o humor não nos seja retirado pelos nossos debates. As pessoas ficamos um pouco alterados às vezes e o nosso "eu" embarulha-se consigo próprio. Para além de isso, são histórias muito "iluminadoras". Há técnicas de estudo do sufismo baseadas na assimilação destas histórias. E até são utilizadas para explicar conceitos na física quântica. Nasrudim é muito Nasrudim.
Somos amigos e os nossos egos são os nossos inimigos, não o esqueçamos.
Por certo, gostei muito das considerações sobre o "amor fati" de Isabel Santiago.
Um abraço do vosso amigo, amigos.

Paulo Borges disse...

Chiqui, talvez tenha sido gralha, mas acho deliciosa a ideia do "eu" se "embarulhar" consigo próprio... Um Abraço !

Anónimo disse...

Na verdade é isso: andamos todos "embarulhados" connosco próprios ! Magnífico: uma mistura de embaralhados, embrulhados e cheios de barulho (ruído, conflito e confusão)... A Luz vem da Galiza, ó José Lozano !

Isabel Santiago disse...

A partir de hoje adoptarei "embarulhar" no discurso. Aliás, já aqui à minha volta se está a embarulhar tudo e todos! A palavra é LINDA! Tem assim ar de palavra tecida na imaginação de Mia Couto, mas essa fusão de embaralhar e ruído, essa sim, é mesmo muito bem conseguida. Por exemplo, a realidade à minha volta neste momento é embarulhada, mas ter descoberto esta palavra é já, José António, um raminho bem dourado para o dia. Obrigada!Para além do Amor que haja humor! Sempre...

Ana Moreira disse...

Só agora encontrei esta pérola:
Não há nada como rir, obrigada José!
Também sou uma grande apreciadora da criatividade linguística... ainda que hoje em dia não a exerça. Viva o verbo embarulhar!

José António Lozano disse...

Na verdade Paulo, não foi gralha por embrulhar. Ia escrever "emaranhar" e finalmente mudei de opinião. Mas achei muita graça ao neologismo involuntário (acho que são galegadas do Nasrudim). Em galego existe barulho como figuração de embrulho. A palavra existe em castelhano por empréstimo do galego. Emfim!

O descobrimento de Portugal desde a Galiza foi na minha adolescência uma revelação. So posso dizer que como galego sinto por Portugal uma gratidão impagável. É mágoa que na Galiza não se ensinem Gil Vicente, Camões, Sá de Miranda, Pessoa como clássicos do galego. Lembro como li um conto de Eça de Queiroz à minha avó e ela percebia tudo, sem problemas.
A mina outra avó traduzia directamente os jornais portugueses ao espanhol sem problema algum.

Um forte abraço a todos!

Ana Margarida Esteves disse...

amigo Jose, o seu amor por Portugal honra-nos muito.

Um forte abraco.