O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 24 de julho de 2009

Diálogos IV, A Pena de Holderlin

Rui Fernandes, "Sailing", 2007


A leitora não sabe como acordou no deserto. Os que chegam ao deserto nunca sabem como lá chegaram. O deserto, num certo sentido, é o não-lugar. Os que lá chegam desfiguram-se e desnorteiam-se. Na mão, a leitora tem “O Louco” e tem uma vaga lembrança de L. deitada junto ao rio a receber as ninfas que se enrolavam nos seus cabelos. Sem nunca ter estado no deserto, Hölderlin é dos homens mais desérticos que poderia ter conduzido a leitora ao seu não-lugar. Foi o deserto como não-lugar que o tornou um vate, um profeta da Grécia por haver. O poeta, [como o João], procurava e dirigia-se para uma Grécia mais perto do seu orion. Foi no deserto que a leitora encontrou dispersos os ecos dos poemas desfragmentados do último Hölderlin que, desencantado e louco, lhe segredou enigmas que a sua paciência descobriria na conjuntura e num mesmo fio de luz e sombra. No deserto não há norte. Não há início nem retorno. É um invulgar lugar do irretornável. A última poisagem. O lugar por onde já nem os flamingos, nem as corças, nem os corvos, nem as outras aves e animais da arca ou da realidade inútil passam ou fazem caminho, ou se cruzam no olhar da leitora. No deserto, a leitora torna-se cega porque as páginas, as paisagens, não têm margens e são rasgos alucinados de memória. O que se lê, no deserto, não está escrito, nem inscrito, nem gravado, nem preso a caracteres ou frases. O que se lê não se encontra ou se procura; encontra-nos, procura-nos, como a voz de Deus aos profetas. O lido elege-nos para uma desorientação que deixa de atormentar, o lido é uma desorientação vital para a alma de quem leu os poetas e quer com eles alcançar os píncaros da Vida (Pascoaes, “O Poeta”).
Nesses instantes de irreprimível afluxo e influxo de imagens, metáforas e analogias, remissões e contrições – a leitora caminha de cabeça baixa e arrasta os pés pelo deserto, perde os passos como quem larga penas, os passos são asas cansadas e desritmadas - alma sente-se um altar onde repousam ideias como aves aguardadas da Distância do tempo. O que se lê está algures disperso, perdido, flutuante, tacteante, gaguejante, hesitante entre o corpo do texto e o incorpóreo de um som que se solta das cordas da harpa que o sol desenha para ser tocado pelos olhos de um cego que não o quer conhecer mas se quer iluminar. Na leitora do deserto não são os olhos que lêem o Dito, são os ouvidos que escutam: a iluminação é um estado de escuta ardente, cadente. As palavras formam constelações e ardem onde antes o corpo sentia frio. As palavras são pontos de luz que irradiam na noite interior, na noite escura e nela florescem clareiras de som, não de sentido. O iluminado ouve o que não entende, mas o som crepita como o fogo que tem o nome irrepetível, o único que, livre do sentido, o chama e o abençoa. A leitora, cega, abraça Hölderlin. Reconhece a sua melodia e repete os nomes ilegíveis com que ele conversou por fim num quarto que era mais interior do que aparentava ser. O seu quarto chamava-se deserto. O deserto é, num sentido certo, o oposto do Jardim ou do Éden. Não há nomes nem tarefa adâmica para cumprir. No deserto a alma tem a tarefa ética de obliterar o que existe do nome, de libertar a alma do legível. Libertar os nomes do peso e do sentido. Tornar o que existe, o que resiste, ilegível, sem nome. Devolver o nome ao silêncio. No deserto, os nomes devem ser removidos no vento. A boca deve fechar-se, os olhos esbranquecerem. As travessias do deserto não servem para chamar Deus ou para ver Deus. A leitora não é eleita pela palavra de Deus, mas pelo seu silêncio. No deserto está o posfácio da criação. O livro ilegível do silêncio divino. Sabendo isso, a leitora sente uma beatitude que lhe foge, mas a envolve como uma túnica de Lázaro que se enrola e desenrola no vento que dedilha os seus dedos nos fios de sol e do peito constrangido. O peito range um sonido, a leitora sabe tocar a harpa solar que aquece os que a vida arrefece no medo e no esquecimento. O deserto empresta-lhe uma suavidade que gera consolo. O vento conversa com ela e Hölderlin ri. As penas aquecem-lhe os pés e ele, com fome de bondade, pensa que são penas de pelicano. Mas não se lembra da bondade do pelicano e da sua lenda. Os nomes dão lugar aos sons do seu canto de anjo caído.

Os cegos, relembrava Ernst Junger, dirigiam-se para estes lugares. Os lugares da luz, mas os lugares da luz são os lugares da sombra. Onde ela é também mais extensa e mais intensa. A sombra, como o bastão do cego, orienta não os que se afastam do mundo, mas do imundo em que a alma combate com o outro o que ela deveria combater com o seu duplo, o seu daimon. Há muitos anos a leitora foi colhida numa tempestade de areia, tinha nas mãos a arca vazia do passado e ainda assim, no corrupio dos ventos, na sua movimentação de dervixe, as saias dos ventos recolheram o vazio e espalharam-no nas páginas abertas do livro do deserto. A leitora vislumbrou linhas de aves invisíveis e perscrutou o imperceptível que atravessa a vida. As aves soletravam e cantavam o hino à vida que nenhum humano soube entoar. Ela admirou o seu bailado em fundo azul. E leu com o coração, de cor, nas páginas sem margens e plenas de memória das areias do deserto, para que aves raras conhecessem a melodia do mundo antigo, os versos do último Hölderlin. Essa memória era o convento onde fechara os sonhos para se entregar às vertigens. A leitura era um voo e os livros o peito aberto do pelicano que alimentou os pobres de espírito. Misturando a sua voz à dos versos ininteligíveis com a dos pássaros sem nome, a leitora recebeu Messiaen no céu do deserto. De um lado tinha o rosto de Hölderlin e do outro a música de Messiaen. O inexistente oitavo livro dos pássaros era Hölderlin a cantar os seus próprios versos, cego no indireccionado do bailado das aves. Acolhido o milagre, como a revelação a que toda a leitura conduz, a leitora prosternou-se diante dos seus pés, dos pés do poeta da escrita iluminada. O da escrita iluminada, caminhou pela sombra e o único bastão que levou na mão foi a pena dos pássaros que com ele fizeram corona sua derradeira experiência trágica da música e da poesia. Esta foi a pena que a leitora encontrou na areia sem rasto por onde, na sombra do poeta, a leitora fez a mais densa experiência da leitura. Ler o que não se vê, mas a memória sabe na sua cegueira de Tirésias, é esquecer a liturgia e receber o que é divino. O deserto transfigura a voz da leitora em sons de harpa divina. Ler com o coração é ler mais do que ler com a inteligência. A voz aquecida nos fios da harpa solar, tocados pelo vento desértico, faz a leitora pronunciar a verdade sem o nome e ler o mundo como composição musical, mesmo quando ele é ruído e devastação.
Para o João Beato que tem uma pena escondida nas mãos e vive com o olhar direccionado para o deserto da Índia.

18 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo!

Paulo Borges disse...

Finalmente, Isabel, a ressurreição transfigurada! Desculpe não ter tempo para melhor comentário.

baal disse...

prometo que não comento

espectadora disse...

então e porquê, Baal? Vá lá... quero ouvir-te

redefinições disse...

Ninguém sabe como acorda no deserto. Mas o deserto é um lugar real apesar da sua aparente inutilidade e inconsistência constitutiva. Um dia, todos lá chegarão, sem mãos de afago, lendo a própria loucura a horas mortas e sem visitas no olhar. Todos chegarão a esse lugar inscrito no tempo como uma promessa divina de encontro a sós com o desnorte e talvez repararão que, afinal, sempre aí estiveram. Perceberão a solidão das palavras que ofereceram a outros em cálices de ouro desertos de Deus e de deuses e beberão tudo até ao fim na voz do amor ditado pelos ventos nos píncaros de montanhas iluminadas. A lira gaguejará sons ancestrais gravados na memória dos poemas e as sílabas juntarão frases de todas as aves do universo invocando o Senhor do Trovão que arrastará o frio pela inóspita noite, há muito, morta de estrelas. Não mais haverá bondade nas penas dos versos misturados pela areia, nem fragmentos à procura de concordância, nem búzios de mar no coração do silêncio. Tudo se quedará na desolação badalada do relógio.

Anónimo disse...

O meu coração agradece o teu texto, Isabel. As saudades que eu tinha dele! Agora pergunto, Isabel? Há flores no deserto? Há penas que Holderlin espalhou pelo não lugar em que o silêncio deixou numa última poisagem para o irretornável. Nesse deserto sem corças, nem flamingos, nem girassóis que nascem, enquanto caminhamos para lá e para cá do rio, onde o mar espera o tempo se silenciar-se também no deserto, haverá a voz de Iabel a cantar um canto que lembra vagamente um "não lugar" ajardinado e com torres que há muito ruiram no desnorte dos nomes. Agradeço esse chá de jasmim no deserto onde entramos por caminhos que conhecemos de memória. nele não escreveremos nem pensaremos nos deuses e no seu infortunío. Ouviremos, no deserto, as vozes dos profetas nascidas da boca de deus, e uma ilha jamais será a espera. Porque no deserto não há lugar para a espera e não se chega lá por caminhos do mundo.
Temos que seguir as pisadas dos poetas-profetas; escutar nas águas e nos lírios as saudades de Deus que em cada grão do vasto deserto nos encontra, mesmo que não procuremos. Há silêncio no deserto, Iabel? Há flores de sal e rosas. Rosas do deserto, petrificarão o nosso olhar. E a dança do pó levantará o vento dos nossos vestidos, chegaremos ao deserto quando lá estivermos sem o saber. Por agora oiço-te falar do deserto e o meu ouvido é uma boca de alegria a beijar o teu texto.
Agradeço-te o teres trazido o deserto e a pena de Holderlin para o "não-lugar" do texto que nos vê com o olhar cego do deserto.

Um beijo de gratidão.

no canto disse...

Sim Saudades, há flores no deserto. Cactos enormes de espinhos enterrados nas profundezas ardentes de areias divinas suplicando a sombra de oásis perdidos no tempo em que eu era feliz; flores feitas de água carnívora que secam todos os seres da poisagem tornando-os irretornáveis, como a tua pena, label, repetindo-se nas voltas redondas desse chá de jasmim, simplesmente porque não há colher… Não há colher. Os jardins que invento desvanecem-se na incandescência do teu olhar e devolvem à boca o sol primordial dos sons com que te vestes, princesa encantada de arabescos tombados em tapetes vermelhos de rosas por florir. Danço-me no deserto do beijo impossível, sem ilhas de espera, sem procura de mar, escrava do vento, nas mãos do silêncio eu me devoto e renasço em cada texto que me ama.

De cantil ena, disse...

Fui comprar colheres. Volto já.

Cinda disse...

Isabel, até no deserto és compulsiva. Atravessa-lo com cavalos brancos e trazes os versos de Hölderlin. Mas os versos do “poeta iluminado” vêm do bosque. E os teus bosques já são desertos e os desertos também são bosques. E eu quero ir contigo ao bosque mas intimida-me a tua escrita, não a tua companhia! Que me dirias no bosque?

baal disse...

afinal comento.
isabel os teus textos são um barómetro para as minhas ressacas. passo a explicar: levanto-me, aproximo-me, se perceber a beleza intrínseca saio para o mundo, senão resto na casa.
abraço

Rui Fernandes disse...

Querida amiga,

Prestes a desfraldar as velas e levantar a âncora, só posso dizer que é belo, muito belo.

Obrigado

... e assim partimos para o céu estrelado do "deserto" de túlipas ;-)

Beijo, grande e pleno de fios dourados, dos dois

mimo disse...

No bosque, diria:
Para sentir a Música temos de copiar quem a faz e quem a dança. Não é uma limitação. É uma forma de tentar perceber...
Observemos uma pista de dançarinos. Todos se contorcem em diferentes movimentos perante a mesma música. Tentemos imitar cada um deles. Se o conseguirmos fazer, conseguiremos aprender quase todas as nuances da música na sua imaterialidade...

Isabel Santiago disse...

Conversando um pouco com cada um e todos diria:

Redefinições: redefino-me consigo; que belo texto na forma e no conteúdo! Gostei muito do que me foi dado a ler e sentir. Muito e muito obrigada.

Canto: que eloquência melodiosa também, mesmo na dor e na saudade! Canto para a ver dançar sempre com esta forma e para me inspirar textos. Espero que haja textos que a amem. Uma sensibilidade como a sua merece ser tocada pelo imperecível dos sons e dos sentidos.

De Cantil ena: também consigo beber já sem açúcar... Um sorriso cúmplice.

Cinda/Mimo: Cinda não sei se diria o que de verdadeiro e belo Mimo te respondeu. Há dançarinos que nunca foram convidados para dançar e a imitação, ou pelo menos a vontade irreprimível dela, só nasce quando o corpo se sente um botão a florir no corpo e nas palavras de quem convida, como quando se lê. Precisamos, diria Canto, de se ser amado pelos textos para que, quer a vontade de ler quer a de escrever, nos façam aprender todas as nuances. O mesmo para dançar. Um par sem o seu par, não imita. Sofre. Depois respondo com o que está em falta. Obrigada às duas pelo diálogo, o V.

Baal: em primeiro lugar o abraço, depois a expectativa, que tenhas saído para o mundo...muitos risos. Desculpa quando a minha escrita não é inteligível. Mas se nunca ficares em casa nunca me poderás ler!! Um sorriso franco e aberto.

Rui e Dora: boas férias para os dois! E que tragas muitas fotografias...e um céu estrelado...muito estrelado! Um abraço a cada um e saudades.

Paulo: não sei se me transfiguro ou desfiguro...logo se verá. Finalmente se verá...Um sorriso amigo.

Saudades:há flores no deserto e torres que ruiram. Mas, lembras-te, Saudades, que a beleza se guarda mais perto da origem na ruína? É aí que a vemos rebrilhar nos cristais de ouro das areias do deserto, nas penas perdidas das gaivotas que nas e das torres fizeram a sua morada e a sua morada em nós nas ameias fortificadas na nossa memória?! A beleza não pertence a este mundo, mas a outro de que se tem, precisamente, saudades. A um mundo que a memória, que é desejo, recupera e projecta como a antecipação que nos chama. A memória é também um vento profético e é sobretudo silêncio e canto. Uma "cantografia" lamentativa que é em nós vontade irreprivível de beijar o/a/s ausente/s.

Um beijo lançado como pomba nas mãos abertas para cada um. E para o anónimo que me acolheu com generosidade e carinho.

Memória da TMN disse...

Mimo era um telemóvel da TMN...

muito carente disse...

receber Mimo é bom...

Calem-se! disse...

respeitem os sons de harpa divina

Isabel Santiago disse...

...
...
...
...
...
um sorriso para "Calem-se!" Um rosto calado desenhado na harpa, como em Magritte. Uma harpa com o meu sorriso para si.Em silêncio, lado a lado.

Cinda disse...

Mimo, gostei do que respondeste...
Mas depreendo que és especialmente dotado para a dança. Não queres dançar para mim e para a Isabel, para te imitarmos e assim aprendermos todas as nuances, da dança, no bosque ou no deserto?