O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 28 de dezembro de 2008

Salto sem rede

"A que se reduzem todos os nossos tormentos senão ao remorso de não se ser Deus?"

- E. M. Cioran, "Le Livre des Leurres", in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.212.

40 comentários:

guvidu disse...

Deus..é Poder, Ideal de todos os ideais (Verdade, Liberdade, Sabedoria, Luz, Paz, Justiça, Beleza...), infinito, inefável, transcendente que nos (re)toca na nossa (in)finitide, feita de condicionantes ontológico-biológico-culturais.

Sim, aspiramos à divindade; uns na senda do Bem, outros, não...

A questão do "remorso" é uma questão pertinente, advém no contexto do autor do pecado original? (ainda não fui ao oráculo virtual, entenda-se, google rs).

guvidu disse...

aposto q a Mª da Conceição não resiste a este post :)

Feliz Natal, amiga!rs

guvidu disse...

salto sem rede...o precipício...o abismo de nós próprios em confronto permanente, da nossa própria inquietude, solidão, e impotencia...

Luiz Pires dos Reys disse...

A propósito de remorso, lembrei-me deste do injustamente esquecido Vitorino Nemésio:


“Cólofon”

"A noite isenta o homem e punge-o.
A mão de Deus desenha a verdade no
escuro e a alma se fez clara como a lã cardada à neve.
Veio o dia e apagou este fulgor secreto,
Veio a noite e no váculo tudo se repôs e deu.
Quando na imagem fria outra vez me sei menino? Quanto mudei?
Do que fui não restava senão o pano encardido. Hoje me remoço e lavo.
Irei pedir aos velhos o sabor de suas palavras, aos ungidos o óleo de seus gestos, às virgens o sossego de seus seios:
Mas de todo o emprestado que tirarei eu limpo?
A brasa do remorso já não me cresta a carne: meu coração tornou-se como o pé do leproso,
que não sente a água quente.
Virão do Oriente as espadas em fogo, do Norte as setas geladas, do Sul o vento salino:
A ver se arranco o ferro à minha tristeza torpe, à dor bruta e chorada, ao calmo desespero que julga que pensando se usurpa:
E se me levam anjos de rastos pelas sarças dos sofridos, anjos severos e piedosos com os que fogem à guarda,
Anjos duros de rémige porque no fechar do voo entregam a Deus o grão gerado limpo e seco!"

(in “Nem toda a noite a vida”, 1953)


(Isto me emudece de quanto houvesse eu para dizer...)

Anónimo disse...

Um dia seremos Deus. Quando nos lembrarmos de quem somos.
Ou poderemos ser um Sol, ou até dois sois numa galáxia distante. Responsáveis por um universo.

Agora
Sou muito pequenina,
Do tamanhão do meu Ego.

Agora
Ser mais o coração. Despir os receios que o vestem.
Ser mais o encontro. A simplicidade.

guvidu disse...

excelente citação!

adorei este excerto:
"Veio o dia e apagou este fulgor secreto,
Veio a noite e no váculo tudo se repôs e deu.
Quando na imagem fria outra vez me sei menino? Quanto mudei?
Do que fui não restava senão o pano encardido. Hoje me remoço e lavo."

Anónimo disse...

A mim também, caro Lapdrey, e minha mãe sabia-o de cor, que é como sabe, muito melhor do que eu...


correm-me lágrimas para a beleza pura do poema e neva dentro de mim.

"A ver se arranco o ferro à minha tristeza torpe, à dor bruta e chorada, (...)"

E fecho as duas mãos com a força deste agradecimento...talvez despontem flores puras para outros jardins.

Unknown disse...

É fascinante, Lapdrey.

Luiz Pires dos Reys disse...

Cara Anónima,
“Sereis como deuses”. “Sereis como Deus”: duas subtis nuances de um ímpar e único destino de sermos o que havemos de ser, se o quisermos.
"Ser como deuses" é sermos divinos como eles, se bem que esculpidos pelas em cada um de nós variegadas im-perfeições.
Porém, a medida de perfeição que cada um tenha é a perfeição à sua medida.
Um copo cheio é sempre um copo cheio, se bem que possa ser do tamanho adequado a vinho ou a água. E ainda assim, entre os copos para água entre si, e os copos para vinho entre eles, existem diferenças de tamanho e formato. Mas todos são perfeitos no cumprirem o serem para ser copos, e como tal servirem.

"Ser como Deus" é ser deificado (theosis, no grego), ser por Ele inundado, transfigurado, transmutado de vil metal vital em precioso e luminoso ouro, luz incarnada do Espírito, santificando e sagrando o mais fundo abismo da matéria.

Aí, sim, amiga anónima (mas não de anónima amizade), creio que aí então nos recordaremos inteiramente d’“o que” somos e isso casaremos com o “quem” somos.

Deixe-me citá-la, porém, nesta maravilha que me tocou fundíssimo:

“Agora
Ser mais o coração. Despir os receios que o vestem.
Ser mais o encontro. A simplicidade.”

Isto é programa de vida permanente para qualquer um.
Para mim o é. Obrigado.


Isabel,
Quão grato é, e será sempre, vê-la aqui também, e mais amiúde... aqui, onde posso falar directamente consigo.

(Sempre sabe onde encontrar-me e como contactar-me quem o queira fazer por outro meio: no meu perfil há como fazê-lo)

Como sempre, suas palavras de ouro são perfeitas adagas de luz que cumprem o ofício de comungar o mais alto com o mais fundo de quanto nos cabe e nos chama.
Grato como sempre.
Nessas lágrimas corre, em quem elas corram, a seiva de vida da alma quando viva, quando divina, isto é, quando sumamente humana...
…Em flor vivamos, pois.
Como flores, as flores, sim: flores de um outro jardim...


Anita,
Concordo em que seja um imenso deslumbre, este poema de Vitorino Nemésio.

Quanto a quem haja tido memória viva e pessoal dele, enquanto professor, aqui deixo, com a vossa licença, o testemunho emocionado de certa senhora (digo senhora, sim, como já raro hoje se vê, com tal trato qual ela o tinha), minha professora de Português no antigo Secundário - a quem devo eternamente (pasme-se) a iniciação profunda em Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé – e que, comparando os dois “titãs” catedráticos em Letras, na altura (Vitorino Nemésio e Rodrigues Lapa) - estava-se na década de setenta do século passado (faz um tempo) - dizia relativamente a isso algo assim:

“As aulas de Rodrigues Lapa, de um rigor e detalhe imensos e duma densidade eruditíssima, eram de difícil acompanhar, mas nós sentíamos (imaginávamos nós) que muito havíamos aprendido após cada aula, e havíamo-lo, de facto, aprendido.
Por seu lado, as aulas de Vitorino Nemésio eram deslumbrantes e estimulantes como nenhumas, a gente ficava do principio ao fim de orelha colada na boca do sábio professor mas, depois de termos feitos uma imensa viagem por quase todas as áreas do saber e da sabedoria humanas, sentíamos que talvez nada houvéssemos aprendido que tivesse a ver com a matéria.

Porém, pese embora o que devemos a Lapa, é sobretudo o que de modo tão apaixonado, ainda que algo dispersantemente, nos transmitiu Nemésio, que encontramos as melhores raízes daquilo que foi mais decisivamente importante para cada um de nós ter podido vir a ser aquilo que veio a ser no futuro da vida.
Podemos dizer que se Rodrigues Lapa nos deu os materiais para levantar as paredes da casa de vida que estávamos a construir, foi porém Nemésio quem nos mostrou o que poderia ser e o que poderíamos colocar no seu espaço interior.”
Jamais esqueci estas palavras.


Amiga Fragmentus,
É exaltante sentir o quanto exulta a sua alma com um texto com a riqueza deste de Nemésio.
Poeta assim sente poeta...

A propósito: parece que a nossa Maria da Conceição afinal conseguiu resistir a este post... Ou então talvez esteja para outras bandas, quem sabe?
Se eu quisesse ironizar diria: Hum... talvez a Maria da Conceição já seja Deus, ou esteja em Deus!
(Eu não disse isto, ok? Ela ainda me excomunga!)


Interessantíssimo é notar como a cada um de nós tocou mais fundo uma diferente passagem do poema.
A mim, foi mais abísmica aquela (acho eu irrespondível) pergunta, ainda que isso me não impeça de me questionar na mesma: “De todo o emprestado que tirarei eu limpo?

Porém, mais importa agora não perdermos de vista a questão inicial deste post, a pergunta de Cioran, citada por Paulo Borges:

“A que se reduzem todos os nossos tormentos senão ao remorso de não se ser Deus?"

A lide continua, amigos ...

Unknown disse...

Mas se nem Zeus parece poder controlar a sua Balança...

Unknown disse...

Para quem crê que o seu único possível fim é em Deus, talvez remorso não lhe diga muito... mas uma insana ânsia por 'ainda não' "...ser Deus", acompanhada de uma (aparente) inútil consciência de que não poderia ser distinto do que é.

Para os que não o crêem poderá ter então lugar o remorso...

Anónimo disse...

«Crente é pouco sê-te Deus
e para o nada que é tudo
inventa caminhos teus»
(Agostinho da Silva)

Anónimo disse...

Só vejo nestes comentários saltos com rede... O costume.

guvidu disse...

hahaha apareceu,Mªda Conceição!

afinal até gosta de nós...

guvidu disse...

lisonjeada pelas suas palavras,Lapdrey e sempre atenta ao que escreve :)

Luiz Pires dos Reys disse...

Grato, amiga Maria da Conceição, pela minha promoção a trapezista (com rede): um dia, quando eu for grande, ainda hei-de saltar sem rede... e sem salto também (qual se arte de arqueiro zen me convertesse em lusófono).

Luiz Pires dos Reys disse...

Na verdade, Anita, sempre importa bem distinguir remorso e arrependimento.
Eu vejo o remorso mais como um peso agudamente focado, relativamente ao qual tudo se faz para lograr libertação, ao passo que arrependimento é mais um movimento tensional interior que tende para levar a alma a uma condição propícia ao desejo de aceitar o perdão.
Nem um nem outro têm, é claro, necessariamente que ver com religião ou espiritualidade.

Unknown disse...

A minha relação com o significado das palavras é bem mais primária que a sua, Lapdrey.
Remorso continua a não me fazer sentido, mas é possível que seja afinal o meu sentido que não tenha, aqui, sentido...

Agradecida!

Luiz Pires dos Reys disse...

Anita,
A linguagem é um rio comum onde todos nos "banhamos" de acordo com as nossas necessidades e como queiramos.
Há quem molhe apenas os pés, quem atire a si mesmo apenas uns simples salpicos e há quem mergulhe fundo no leito.
Não importa!
O grande rio é de todos, por igual direito.
E nem há modo melhor ou pior de utilizar o rio...

Anónimo disse...

Grata pela sua Generosidade, Lapdrey.
E pelo seu ímpeto poético criador de imagens cruas e vivas.
Já aprendi consigo.

A amiga anónima

Luiz Pires dos Reys disse...

Salamaleque matinal,amiga Anónima!

Grato embora pelo que disse, enjeito o ensinar, que nada ensina quem nada sabe de certo, mas por certo não podemos impedir-nos de sempre aprender com tudo, e com os outros sobretudo.
É quanto cuido de fazer.

Quanto ao "ímpeto poético": é o que é, é o que seja, que for.

Quanto, finalmente, a generosidade.
É-se generoso de forma, parece-me, sempre "interesseira": a melhor maneira de ser generoso é ser verdadeiro.
Até!

Unknown disse...

O que é para si mergulhar fundo no leito desse rio? (se lhe apetecer, verdadeiramente, responder)

Unknown disse...

Pessoalmente, não faço por mergulhar muito fundo no rio, prefiro simplesmente que ele me conduza... a um seu outro fundo... o mar.

Mas é (muito) provável que a cada um o rio o conduza de modo distinto, para um semelhante destino.

Anónimo disse...

O meu maior remorso é não ser a amante de Deus.

Anónimo disse...

Caro Lapdrey

"Ensinas melhor o que mais precisas de aprender."

"Ilusões", Richard Bach

Alguém me disse entusiasmado há uns dias: "Nada esqueças de ensinar".

Anónimo disse...

"O remorso é a voz da solidão. Quem murmura nesta voz? Tudo o que em nós já não é homem"

Anónimo disse...

"O Paraíso geme no fundo da consciência, enquanto a memória chora. E é assim que pensamos no sentido metafísico das lágrimas e na vida como desenrolar de um remorso" - "Des Larmes et des Saints".

Anónimo disse...

"A metafísica é o remorso do homem da culpa de haver nascido" - "O Brasil Mental".

Anónimo disse...

Lapdrey é um excelente contributo aqui na Serpente!

fragmentus

Marta Rema disse...

e quando se encontra o amor, ao que se reduzem os nossos tormentos?

Unknown disse...

Maísha, eis que falas do fulcro de tudo.

Uma achega quanto ao tema...
«Não é amante quem morre porque amou, senão quem amou para morrer.»
Padre António Vieira

Unknown disse...

Quem nos matará de amor?
Por quem morreremos nós de amor?
Por quem viveremos nós a morte?
Por quem nasceremos nós para a Vida?

(Ah tudo o resto são meras vias adjacentes.)

Fá-lo-emos por nós mesmos? Por esse outro?
Senão pelo que eu e o outro, em conjunto, somos.

Deus.

Unknown disse...

Maísha, suponho não ter ainda respondido...

"quando se encontra o amor, ao que se reduzem os nossos tormentos?"

... ao que nós nos reduzimos. Reduzimo-nos ao que somos.
Ao que não conhece remorso, nem tormento... pois a isso tudo precede.

Anónimo disse...

Se o amor é relação, a nada pode preceder. Se for união, relação é ainda. O amor não pode jamais ser primordial, embora possa manifestar o que é primordial.

O que é primordial? Não se diz, porque não é, nem não é.

guvidu disse...

olha, se baixares o salto, conseguirás...é necessário q não estejas tão elevada, matrerialmente, nem te sintas superior a...humildade, visão horizonte fazem de ti a amante ideal (ou quase)de Deus.

pssttt MConceição, diga lá se não é assim, anda sempre rasa, e só aqui se eleva pelo dogmatismo?!...
(vou levar c/algum sapato...rs)

guvidu disse...

visão horizontal (rectifico)

Unknown disse...

Gárgula,

isso que diz o meu coração não reconhece, nem os meus olhos... nem o que mais haja em mim.

O primordial não se diz pois o Amor não se diz.
O Amor é e não é, nele se encontram todos os opostos reunidos.

Unknown disse...

(certamente, o Amor também não é, nem não é... mas isto é para mim.)

Anónimo disse...

Isso mostra que não falas do Amor, mas apenas de ti.

Unknown disse...

terminando apenas... para mim, que mesmo cega apenas vejo Amor.

"Isso mostra que não falas do Amor, mas apenas de ti."

Como se pudesse eu falar do que fosse senão pelo Amor... do Amor.

Ahh como se não fosse eu apenas ele. Ahh como se só ele não existisse. Como se só ele não fosse o que é.

Sim, falo de mim. Só de mim.
Ai do meu Amor, que és tu, que sou eu.