O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

À margem dum certo solilóquio a várias vozes, e alguma desafinação ...

À margem ainda daquele particular "diálogo-debate" como lhe chamou benevolamente a Inês (eu chamar-lhe -ia antes, de melhor grado, solilóquio a várias vozes, e alguma desafinação) à volta do vídeo “God is a DJ”: interrompido apenas, o íntimo monólogo do único com o Único é na verdade interminável, ou está sempre a ponto de realmente (re)começar.
Depende porventura de ancorarmos o “ponto” de vista, ou nos fins ou nos princípios ...
A interrupção do "debate", essa, decorreu da táctica, e não da estratégia, entenda-se.
De facto, o que se mostra “inútil” curso de coisas (o que amiúde ocorre em certos blogs, e em toda a parte também) não parece, ao menos por isso, percurso viável, mas tão-só desviante ou, no mínimo, enviesante do caminhar, qual ele seja ou haja.
Entenda-se também que quando digo inútil, quero significar o in-útil, coisa que tem sempre como referencial algo que há ou se tenha ou tivesse em vista e que, se bem que não haja de ser limitante, delimitante deverá ser, para não resultar errática nem ínvia.
Concordo com a Inês, em que é “a partir do inefável que (brotam) as mais belas, rigorosas e comunicantes palavras”. Tanto mais que o inefável se me afigura algo que roça a raiz do mito.
Ocorre citar aqui Ananda Coomaraswamy que chama ao Mito “verdade penúltima, de que toda a experiência é reflexo temporal”, e o diz por exemplo a propósito do “ no principio...”, da “geração eterna” do Cristo ou até do “Era uma vez...”, dos contos tradicionais.
Diz ele, interessantemente, que esta habitual expressão de começo das narrativas tradicionais ou dos contos “não quer dizer ‘uma vez apenas’, mas ‘uma vez por todas’".
Quanto a “berechith ”, palavra hebraica vulgo traduzida por “No princípio”, certa tradição da Qabbalah decompõe-na em duas outras dela constituintes, a saber, “berith” (aliança) e “esch” (fogo), resultando assim interpretativamente em que o que chamamos “criação” é, presumivelmente, antes uma “aliança de fogo”, vínculo que, entre o Divino “innefabilis” e o criado “efabilis”, ou já efabulante, assim se estabelece.
Se, retornando a A. Coomaraswamy, atentarmos em que ele escreve logo a seguir ao citado acima (“Neste começo eterno [nota minha: se em português traduzíssemos por “eterno começo”, teríamos um sentido bem diverso mas, porventura, não ilícito], não há senão a Identidade Suprema d’ “Esse Um” , sem distinção de ser e não-ser, de luz e de trevas, ou ainda sem separação do céu e da terra”), veríamos que afinal Deus poderia, num certo sentido, ser um DJ que "manipula" o disco ("ondulado", segundo mais recentemente e defendido pela M Theory), pois cada instante é, de novo, começo eterno e eterno começo de tudo, no nada, neste tudo nada que é o estarmos aqui a falar disto, tendo eventualmente coisa melhor para fazer...
Neste universo (e falo aqui para a Joana), - nos outros universos, paralelos ou nem por isso, desconheço como seja - a metáfora ainda é livre! Haja Deus!
Ups… De pronto corrijo: Com Deus ou sem Ele...

5 comentários:

Anónimo disse...

"A natureza da Ilusão (Mâyâ) é representada pelo número um" ("Eka shabdâtmika mâyâ") - citado in Alain Daniélou, "Mythes et Dieux de l’Inde. Le polythéisme hindou", Flammarion, 1994, p.25.

Com o devido respeito, creio que a obsessão do Um, do Uno, do Único, do Absoluto, de Deus, do Ser, do Nada, do Vazio, do Inefável, do Eu, do Não-Eu, etc., é a mais perigosa e doentia obsessão da humanidade e a responsável por todas as suas doenças espirituais, que nascem desta idolatria de uma Entidade maiusculada e musculada que não existe senão na mente insulada no seu solilóquio tautológico e alucinatório. O monoteísmo, o monoinefabilismo e o monopsiquismo acompanham-se no mesmo deserto sem oásis. Perante eles sempre brilhará como Primavera eterna o esplendor da sabedoria politeísta e polipsíquica, pois a glória do sem nome é a infinidade e metamorfose dos nomes e das formas, perdida no monomorfismo monolítico das religiões e das filosofias obsessivas.

Anónimo disse...

Tanta gente convencida de possuir a verdade!... Perante este espectáculo, não será o agnosticismo mais são?

Luiz Pires dos Reys disse...

Concedo, e não faço esforço algum em concordar em que objectivar (de que lucidamente falava já Berdiaev) e coisar (que tanto salientou Leonardo Coimbra) são “doenças” da intelecção auto-iludente que se não vigia devidamente. Coisas que certas correntes actuais da Magia (ou Magick), como a Magia do Caos, parecem querer fazer, às avessas do avesso.
Mais não fazem do que pontificar entre o antiquíssimo saber operativo e as mais sibilinamente matemáticas teorias tendentes a explicar a “origem” do universo: quer-me parecer que mais rápido lá chegam os devotos do “dikhr” muçulmano, do “japa” hindu, do “nembutsu” budista ou do “hesicasmo” cristão - não interessando, de todo, saber se olham ou não tais homens para o umbigo de si ou do cosmos…
Mas, meu caro Polus, para que nos não extrememos até no não nos extremarmos, para que nos não “obsequemos” nem “deslumbremos” com o (igual) esplendor da “sabedoria politeísta e polipsíquica”, ou outra, importa sempre que não vejamos o “Todo” pela meia-parte.
Ocorre-me aqui, a propósito, a questão das “almas-gémeas”. Assim como me parece relativamente absurdo e, creio, desde logo votado ao fracasso, o intento de encontrar um gémeo/a da alma (não nos basta, e nos não dá suficiente trabalho, a reflexão ou a refracção de nós ou em nós?), também me parece relativamente inglório dividir ao meio o indivisível ou ver individido o que nem sequer tem unidade que o congregue.
Ignoro, voltando ao ponto, se aqui “seria a emenda melhor que o soneto”, ou o inverso, mas o que sei é que sempre nos cabe ter o sapientíssimo equilíbrio entre catáfase e apófase, qual nomeadamente o praticou e no-lo ensina Dionísio Areopagita, entre a designação "segredante" dos Nomes Divinos e o Silêncio inominável da “mystérica” Teologia que "ascende" pela negativa.
É, afigura-se-me, na “paradoxia”, que está para além e para aquém de ambas, que havemos porventura de re-solver (num infindo “solve et coagula”) tais extremações, perigos, maleitas, doenças, cegueiras, idolatrias, endeusamentos, mas também fanatismos, dogmatismos, e até os sincretismos e outras democracias da errância, filhas da anarquia.
Concluindo: para falarmos, havemos de sempre assumir um modo de ver (que é sempre apenas um e um só, dos infindos possíveis, ou de nenhum) e uma determinada fala que o nomeia e, logo, denomina.
Vivemos atolados no ilimitado limite, tendendo quiçá para a limitação do Ilimitado. Mas um e outra são meros caminhos, veredas, instrumentos e ferramentas, cada vez menos deficiente do que outra coisa...
Se isso não perdermos de vista, não perderemos de vista o que se não vê, por não caber dito.
(Grato pelo excelente comentário!)

N.B. Quanto ao agnosticimo, caro Senhor Exclamação Interrogativa, sempre me pareceu coisa do tipo daquelas pessoas (toda a gente as conhece) que, tendo presenciado um acidente, por lá ficam tempos infinitos, mas depois se furtam à cívica responsabilidade de testemunharem o que viram.
Será que "realmente" viram? Ou acharam mais "são" dizerem que "não viram" o que viram?
Tem a palavra o companheiro agnóstico!

Paulo Borges disse...

Caro Lapdrey, infinitamente saúdo e agradeço a sua - por fim! - entrada neste blogue, pelo enriquecimento e elevação que lhe traz e que está a suscitar!

Bem haja!

Luiz Pires dos Reys disse...

Suprema semeadura, o mando (raiz adamantina da mais extreme liberdade e libertação de ser o que se é) - de quem ou quê, suma sabedoria, para sempre o ignoramos - é quanto faz que brote em nós o que em nós há-de ser "eternação" plena: flor de lys ou de lótus, do tempo que passa por nós que por ele passamos, e nos devolve a pomba, essa núncia inefável de toda a melhor boa-nova da mais sã insana folia.
O mando é convite que o tempo desconhece, o desmando seu extremo atentado, o Amado o imperador que sobre nós adeja em toda a feição e rosto algum: É todos e é ninguém – qual certa “Língua de Fogo” que, em nós reinando como trono de nós feito, sobre nós progride sem outro regresso que não o de sempre estar regressando.
Era a hora, Paulo caríssimo, será o que for…