quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
À margem de “Fado de Alexandria: o paradigma”, de João Read Beato, aqui publicado, e de algumas perplexidades por ele suscitadas
Quanto à possibilidade ou “desejabilidade”, algures neste blog levantadas, de a Lusofonia poder “vir a desempenhar, em alguns aspectos essenciais, um papel semelhante ao da cultura helenística”, designadamente em Alexandria, eu diria que isso me não repugna, mas permita-se-me embora duas salvaguardas a tal concordância de princípio.
Primeira, a de me parecer (ponto prévio) que aquilo que o nome “Lusofonia” almeja consignar algo ganharia em ser alterado para “Lusofania”, para alçar de vez (perdoe-se-me a tão chã franqueza) - o que assim mais refém me parece poder ficar dum mero contexto “linguístico-político-cultural”, pró-estático portanto -, aquilo que tem antes, como diria José Marinho, “razão e destino” muito para lá disso.
Destarte exalçar-se-ia, como convém, a matriz e pulsão carregadas da necessária “dynamis” e das “virtus” dela correlatas (eu diria, a um tempo, genesíacas e apocalípticas) que em muito caracterizam aquilo de que falamos, e aqui “lusofonando” porventura almejamos, algures entre uma dimensão ainda restritivamente “lusófona” e o paradigma mais (sobre)pujantemente “lusofânico”.
Se se trata apenas de promover e permitir que tenham voz e se congregem “criacionalmente” todas as mais diversas florações da semeadura “lusíada”, mesmo lá onde a si mesmas ainda sobremaneira se desconheçam, não se vê motivo ponderoso para alguns assinalados diferendos aqui roçados.
Porém, se o que nos chama, e nos é chama, é antes algo que a todo o momento pede para manifestar-se e vir à flor da tessitura mais fímbria de quanto em nós confira mutação de mais extrema e situável valia, ao mesmo tempo que nos ancora e mantém no marco firme e inamovível de quanto não sofre alteração alguma, então, eu diria que “lusofania” é porventura, de longe, designação mais adequada ao que se intenta.
Quanto à analogia alexandrina, vem aqui, a propósito, aquilo que Terence McKenna designava por “ressonância temporal”, expressão a que ele chega após a análise algorítmica da sequência de ordenação fixada pelo Rei Wen para os hexagramas do I Ching - se bem que, como é sabido, exista uma outra, bem mais antiga, atribuída a Fu Hsi, figura mais mítica do que histórica.
Seja como for, analisando os padrões matemáticos daquela sequência, partindo de duas constatações simples (a de que, no I Ching, é altamente desenvolvida a experiência do tempo “como uma série de elementos identificáveis em fluxo”, e a de ali o tempo ser de alguma maneira entendido como um “número finito de elementos distintos e irredutíveis, do mesmo modo que os elementos químicos que compõem o mundo da matéria”), Mckenna aplica tais sequências e seus padrões algorítmicos à “cronometria” do tempo naquilo em que ele é passível de registo quantificável (dias, ciclos lunares, anos solares, etc.), utilizando para isso certas correspondências de cálculo, a saber:
64 hexagramas x 6 linhas em cada hexagrama = 384 dias
384 dias x 64 hexagramas (na sequência do Rei Wen) = 67 anos solares
e assim, sucessivamente, até chegar a 25.836 anos solares, que correspondem a uma precessão (ou seja, segundo o belíssimo Houaiss, o “movimento retrógrado do nodo de uma órbita sobre um plano de referência móvel”) completa dos equinócios.
Como, na projecção em gráfico da sequência dos hexagramas pelo Rei Wen se verificava que a linha do gráfico era igual no início e no final da sequência total dos hexagramas, independentemente de começar-se de trás para a frente ou na ordem inversa, e tendo verificado que um mês lunar (29,53 dias) multiplicado por 13 (o número de lunações anuais) dá 383,89 dias (o que, sensivelmente, equivale a 384), e assim constatando também a curiosa e intrigante “co-incidência” de tal valor com o valor acima referido (64 hexagramas x 6 linhas em cada hexagrama = 384 dias), McKenna decidiu tentar aplicar o algoritmo daí resultante a sequências históricas específicas.
Chegou assim à conclusão curiosíssima de que tal algoritmo se verifica, sim, reincidentemente, mas não numa correspondência biunívoca constante em termos de igual intervalo de tempo comparativo.
Identificou, deste modo, períodos em que a aplicação do algoritmo resultava em gráficos semelhantes, mas em que o número de anos do ciclo em que ele se verificava era diferente.
Assim, por exemplo, o mesmo gráfico se aplicava ao período entre Outubro de 1986 e Dezembro de 1990 (4,2 anos) e entre A.D. 340 e 609 (269 anos); um outro padrão semelhante entre 42.226 a.C. e 7.775 a.C. (34,45 milénios); ou outro ainda, este de número de anos praticamente igual, entre 1425 e 1560, e entre 1878 e 2012 - esta última data, curiosamente, o tão falado ano final do Calendário Maia, que indicaria, segundo este sábio povo, o fim dum ciclo de tempo e o início de outro.
Isso (regressando ao nosso tema) pode indicar que, havendo embora padrões sequenciais replicantes de cadência temporal, a sua expressão no plano da temporalidade plasmada ao nível da “cronometria” dos acontecimentos ditos concretos (ou melhor, de assinalável “ressonância” histórica) é passível de sofrer variações na acção de “extensão” ou “compressão” da sua fixação detectável em eventos identificáveis no tempo propriamente “histórico”.
Isto, para o que aqui nos interessa, parece-me relevante, visto permitir-nos (creio) melhor ponderar, e a partir daí mais devidamente pensar, onde esteja a real intervenção e “interferência” do homem na aceleração ou distensão do fluxo (predefinido?) dos ritmos do heraclítico rio do tempo “de fundo” dos acontecimentos.
Então, a questão relativa a algum ressonante “paralelismo” que porventura se replique entre o helenismo alexandrino que houve e a lusofonia a haver, fica de algum modo repassado de expectativa pela eventual transversalidade que tais ritmos advindos de fluxos recorrentes do tempo.
Melhor atendendo, em tudo o que fica dito, ao que manifesta o “secreto e patente”, conforme a mais adequada, aqui quase apofática, linguagem de José Marinho, aqui lembro que o nosso filósofo garantiu que "nem no que se move nem no que se não move está a verdade, nem no patente, nem no secreto; nem no crente está a verdade, nem no ateu, nem no que simboliza e imagina, nem no que pensa e argumenta; nem na certeza está a verdade nem na incerteza, as quais ambas assinalam a verdade distante; nem no justo nem no injusto está alguma garantia, nem no bem, nem na relação de bem e mal, nem em nenhuma verdade humana ou divina”(“Teoria do Ser e da Verdade”, 1961, pág.109).
Assim parece tudo mais uma vez remeter-nos para o instante, ponto de uma outra geometria, em tudo insituável, pois como aqui bem a propósito vinca Nietzsche, em suas “Considerações Intempestivas”:
“Quem não se instalar no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa da vitória, sem vertigem e sem medo, nunca saberá o que seja a felicidade e, pior ainda, jamais fará algo que torne os outros felizes... Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante àquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas da ruminação sempre repetida. Portanto: é possível viver quase sem lembrança, e ainda assim ser feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver. Ou, para explicar-me de forma ainda mais simples sobre o meu tema: há um grau de insónia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por fim se arruína, seja ele um homem, um povo ou uma civilização".
Quanto à possibilidade ou “desejabilidade”, algures neste blog levantadas, de a Lusofonia poder “vir a desempenhar, em alguns aspectos essenciais, um papel semelhante ao da cultura helenística”, designadamente em Alexandria, eu diria que isso me não repugna, mas permita-se-me embora duas salvaguardas a tal concordância de princípio.
Primeira, a de me parecer (ponto prévio) que aquilo que o nome “Lusofonia” almeja consignar algo ganharia em ser alterado para “Lusofania”, para alçar de vez (perdoe-se-me a tão chã franqueza) - o que assim mais refém me parece poder ficar dum mero contexto “linguístico-político-cultural”, pró-estático portanto -, aquilo que tem antes, como diria José Marinho, “razão e destino” muito para lá disso.
Destarte exalçar-se-ia, como convém, a matriz e pulsão carregadas da necessária “dynamis” e das “virtus” dela correlatas (eu diria, a um tempo, genesíacas e apocalípticas) que em muito caracterizam aquilo de que falamos, e aqui “lusofonando” porventura almejamos, algures entre uma dimensão ainda restritivamente “lusófona” e o paradigma mais (sobre)pujantemente “lusofânico”.
Se se trata apenas de promover e permitir que tenham voz e se congregem “criacionalmente” todas as mais diversas florações da semeadura “lusíada”, mesmo lá onde a si mesmas ainda sobremaneira se desconheçam, não se vê motivo ponderoso para alguns assinalados diferendos aqui roçados.
Porém, se o que nos chama, e nos é chama, é antes algo que a todo o momento pede para manifestar-se e vir à flor da tessitura mais fímbria de quanto em nós confira mutação de mais extrema e situável valia, ao mesmo tempo que nos ancora e mantém no marco firme e inamovível de quanto não sofre alteração alguma, então, eu diria que “lusofania” é porventura, de longe, designação mais adequada ao que se intenta.
Quanto à analogia alexandrina, vem aqui, a propósito, aquilo que Terence McKenna designava por “ressonância temporal”, expressão a que ele chega após a análise algorítmica da sequência de ordenação fixada pelo Rei Wen para os hexagramas do I Ching - se bem que, como é sabido, exista uma outra, bem mais antiga, atribuída a Fu Hsi, figura mais mítica do que histórica.
Seja como for, analisando os padrões matemáticos daquela sequência, partindo de duas constatações simples (a de que, no I Ching, é altamente desenvolvida a experiência do tempo “como uma série de elementos identificáveis em fluxo”, e a de ali o tempo ser de alguma maneira entendido como um “número finito de elementos distintos e irredutíveis, do mesmo modo que os elementos químicos que compõem o mundo da matéria”), Mckenna aplica tais sequências e seus padrões algorítmicos à “cronometria” do tempo naquilo em que ele é passível de registo quantificável (dias, ciclos lunares, anos solares, etc.), utilizando para isso certas correspondências de cálculo, a saber:
64 hexagramas x 6 linhas em cada hexagrama = 384 dias
384 dias x 64 hexagramas (na sequência do Rei Wen) = 67 anos solares
e assim, sucessivamente, até chegar a 25.836 anos solares, que correspondem a uma precessão (ou seja, segundo o belíssimo Houaiss, o “movimento retrógrado do nodo de uma órbita sobre um plano de referência móvel”) completa dos equinócios.
Como, na projecção em gráfico da sequência dos hexagramas pelo Rei Wen se verificava que a linha do gráfico era igual no início e no final da sequência total dos hexagramas, independentemente de começar-se de trás para a frente ou na ordem inversa, e tendo verificado que um mês lunar (29,53 dias) multiplicado por 13 (o número de lunações anuais) dá 383,89 dias (o que, sensivelmente, equivale a 384), e assim constatando também a curiosa e intrigante “co-incidência” de tal valor com o valor acima referido (64 hexagramas x 6 linhas em cada hexagrama = 384 dias), McKenna decidiu tentar aplicar o algoritmo daí resultante a sequências históricas específicas.
Chegou assim à conclusão curiosíssima de que tal algoritmo se verifica, sim, reincidentemente, mas não numa correspondência biunívoca constante em termos de igual intervalo de tempo comparativo.
Identificou, deste modo, períodos em que a aplicação do algoritmo resultava em gráficos semelhantes, mas em que o número de anos do ciclo em que ele se verificava era diferente.
Assim, por exemplo, o mesmo gráfico se aplicava ao período entre Outubro de 1986 e Dezembro de 1990 (4,2 anos) e entre A.D. 340 e 609 (269 anos); um outro padrão semelhante entre 42.226 a.C. e 7.775 a.C. (34,45 milénios); ou outro ainda, este de número de anos praticamente igual, entre 1425 e 1560, e entre 1878 e 2012 - esta última data, curiosamente, o tão falado ano final do Calendário Maia, que indicaria, segundo este sábio povo, o fim dum ciclo de tempo e o início de outro.
Isso (regressando ao nosso tema) pode indicar que, havendo embora padrões sequenciais replicantes de cadência temporal, a sua expressão no plano da temporalidade plasmada ao nível da “cronometria” dos acontecimentos ditos concretos (ou melhor, de assinalável “ressonância” histórica) é passível de sofrer variações na acção de “extensão” ou “compressão” da sua fixação detectável em eventos identificáveis no tempo propriamente “histórico”.
Isto, para o que aqui nos interessa, parece-me relevante, visto permitir-nos (creio) melhor ponderar, e a partir daí mais devidamente pensar, onde esteja a real intervenção e “interferência” do homem na aceleração ou distensão do fluxo (predefinido?) dos ritmos do heraclítico rio do tempo “de fundo” dos acontecimentos.
Então, a questão relativa a algum ressonante “paralelismo” que porventura se replique entre o helenismo alexandrino que houve e a lusofonia a haver, fica de algum modo repassado de expectativa pela eventual transversalidade que tais ritmos advindos de fluxos recorrentes do tempo.
Melhor atendendo, em tudo o que fica dito, ao que manifesta o “secreto e patente”, conforme a mais adequada, aqui quase apofática, linguagem de José Marinho, aqui lembro que o nosso filósofo garantiu que "nem no que se move nem no que se não move está a verdade, nem no patente, nem no secreto; nem no crente está a verdade, nem no ateu, nem no que simboliza e imagina, nem no que pensa e argumenta; nem na certeza está a verdade nem na incerteza, as quais ambas assinalam a verdade distante; nem no justo nem no injusto está alguma garantia, nem no bem, nem na relação de bem e mal, nem em nenhuma verdade humana ou divina”(“Teoria do Ser e da Verdade”, 1961, pág.109).
Assim parece tudo mais uma vez remeter-nos para o instante, ponto de uma outra geometria, em tudo insituável, pois como aqui bem a propósito vinca Nietzsche, em suas “Considerações Intempestivas”:
“Quem não se instalar no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa da vitória, sem vertigem e sem medo, nunca saberá o que seja a felicidade e, pior ainda, jamais fará algo que torne os outros felizes... Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante àquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas da ruminação sempre repetida. Portanto: é possível viver quase sem lembrança, e ainda assim ser feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver. Ou, para explicar-me de forma ainda mais simples sobre o meu tema: há um grau de insónia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por fim se arruína, seja ele um homem, um povo ou uma civilização".
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10 comentários:
Lapdrey, quem é você? Um anjo barroco amarado ou amarinado nas lusas e dementes águas?
E o MacKenna, é aquele freak que queria chegar a Deus pelas drogas?
Aparece de tudo neste blogue, até eu...
O tal de "MacKenna", de que fala, não sei quem seja; já um certo Mckenna, sei sim. E talvez fosse esse tal "freak", sim... (olha, vou até reler o Kerouac e o Ginsberg: mostram-se assaz “proféticos”, mais hoje do que então. Isto há coisas…)
Ah, meu amigo, será que ainda não percebeu que até o que "vo(ssa mer)cê" (para usar a mesma expressão que utilizou) e eu comemos (nas variadas acepções da palavra) onde quer que seja, está mais que provavelmente inquinado por químicos de vária ordem, e outras "lesmas" da mais subtil e inimaginável ciência aplicada, que (porventura) nos “drogam” e "programam" mais despudoradamente do que essas tais do “freak” do Mckenna, aquelas muito mais perigosas do que estas, e para muito mais específicos e precisos propósitos de muito concretos e específicos senhores, ou grupos de senhores, que, ao que bem parece, mantêm e intentam manter o controle do governo “alucinogénico” deste mundo alucinado em que vivemos e da "realidade", tais quais os apreendemos ?(Aquela coisa chamada filme e chamada "Matrix" focava isso um pouco ao de leve)
Pense bem no assunto, pesquise umas coisas, compare outras, pondere todas e veja (não é com os olhinhos, é com...) a que conclusões chega.
Se chegar a alguma, Stan (permita-me a familiaridade “blóguica”), espante-nos aqui com alguma tirada "stanislâudica", com amaradice ou amarinice, tanto faz, e pode ser sem anjinho barroco que, pelos vistos já tem dono.
O que não "tanto faz" é a zonzeira "soi-disant" (in)consciente da mansa "dis-tracção" global em que possa, cada um de nós, querer manter-se, e ir mantendo em si, da (essa, sim, realmente perigosa) droga variegada (em bonito embrulho consumista)que nos chega pelo lixo de toda a ordem, e que nos cerca, na maioria, sem que de tal sequer nos apercebamos), se não nos precavermos em discernimento, lucidez e vigilância: tudo virtudes aplicáveis quando e onde quer que seja de necessidade.
Terence Mckenna, por seu lado - entre outras coisas relativamente estimulantes (já não digo fascinantes, por certas denotações de sentido, menos apropriadas) para a lucidez do pensar e do agir - Mckenna o que pretendia era demonstrar como os padrões, de toda a ordem, de que nos cercamos e munimos para (tão-só quotidianamente) vivermos passam muito facilmente a funcionar como um “sistema operativo” segundo o qual corre a nossa “programação” e, logo, a apreendemos a realidade e nos “prendemos” em tal apreender. É, nessa linha de coerência, que ele fala, de resto, da “cultura como sistema operativo” ou da muito possível vantagem de criarmos o nosso próprio “reality show” pessoal.
Realmente, meu caro, aparece de tudo neste blogue, até nós...
(Seja como for, apreciei a sua sucinta acutilância).
Caro Lapdrey, apreciei bastante este seu comentário. Aceitaria que "a realidade é um estado alterado de consciência" e que "agredimos a realidade com o conceito de a haver", como escrevi em "A Cada Instante Estamos a Tempo de Nunca Haver Nascido", porventura num estado alterado de consciência?
Permita-me, caro Paulo Borges, que a um tempo concorde e discorde do que sugere, em sentidos (num e noutro caso) diferentes mas não necessariamente divergentes.
Concordo, em separado, com cada uma das frases aforismáticas que propõe, mas levantam-se-me algumas dificuldades na correlação entre elas.
A dificuldade suscita-se-me sobretudo em relação ao que em cada caso devamos entender por “realidade”, e o que num e outro seja porventura diferente, semelhante ou idêntico.
Com efeito, se "a realidade é um estado alterado de consciência", o que me parece que seja, isso pressupõe que ela seja a multivária ocorrência alterada de alguma coisa (os “dados” exteriores dos sentidos ou do “sentido” interior) relativamente a algo (os sucessivos “estados” de consciência) em relação aos quais a consciência “ela mesma” (isto é, aquilo de que a consciência “alterada” é pura manifestação) se vai diversamente alterando.
Assim, dos dados dos sentidos ou do sentido, pelos estados de consciência, à consciência disso congregante, vai a mesma diferença correlativa modal que há entre fonte original (a consciência em si mesma), nascente principial (os dados dos sentidos) e curso efluente (a sucessão de estados de consciência) até à foz insituável (a consciência “desperta” ou “absoluta”)
Porém, se por outro lado dizemos que "agredimos a realidade com o conceito de a haver", a “realidade” de que aqui se fala implica, creio, primeiro, a intrínseca dualidade (dialéctica ou outra) que leva à mediação conceptual a que haja lugar em cada caso e, em segundo, implica que haja vontade de fazê-lo.
Desprover a “realidade” do “conceito de a haver” remove-lhe quer os efeitos da agressão, quer o sentido de agredir.
Se bem, é certo, que apreensão seja coisa diversa de compreensão, creio que será mediante o persistente e vigiado curso e recurso entre ambas, apreensão “catafática” e compreensão “apofática”, que a aporia que aqui se nos configura pode ser resolvida sem renúncia alguma ao equilíbrio dos seus termos.
Assim, entre “realidade” impassível e “realidade” agredida pende a perplexidade do ser consciente quando intente dar sentido “real” ao que, do exterior, pelos sentidos ou, do interior, pelo sentido, se lhe apresente.
Sabemos hoje, em mais detalhado pormenor e maior extensão cinestésica, como o cérebro (órgão que importa ainda muito dilucidar que cariz e raiz tenha), recebendo os dados dos sentidos, os intelige, processa e “normaliza” em vista de uma nossa relação mais compreensiva do mundo.
Mas sabemos também como tais padrões não são mais que meros âmbitos “normalizados” de balizas entre as quais determinadas frequências de onda electromagnéticas se manifestam e circunscrevem no possível equilíbrio de apreender sensivelmente.
Sendo em si mesmas moventes e evolutivas, como a antropologia e a psicologia hoje nos bem mostram nas pontes estabelecidas com outras disciplinas, nada há, com efeito, de mais movente e movediço que a linguagem, a mesma que fixa, transmite e delimita decisivamente a apreensão daquilo a que, por pura ingenuidade ou mera comodidade, designamos por “realidade”.
O que a linguagem nomeia delimita e, provavelmente, circunscreve, o “real”, porque “real” é, segundo concordamos, toda a alteração "significativa" do estado de consciência, sempre que “agredimos a realidade” com a presunção “de a haver”.
Transcendendo, porém, o homem tal agressão a si mesmo e ao que chamamos “real”, não mais "apreenderá" o “real”: “sê-lo-á”! - presença, para todo o sempre, de toda a ausência; ausência definitiva de todo o ausente!
(Abraço de admiração)
Lapdrey,
Será Vossa Mercê o Encoberto
que vem a cavalo mui desperto
com um olho fechado e outro aberto?
Ou apenas mais um fala-só
a semear palavras no deserto
e a vadiar nu a céu aberto?
Louvado seja Deus!
Então não querem lá ver que é o meu caríssimo, o meu queridíssimo, o meu profetíssimo “Gonçalo Annes”, príncipe trovador das “Trovas” em Trancoso, restante Portugal e mais lusófonas partes existentes pelo orbe?
Que êxtase, e que felicidade!
Quatrocentos e cinquenta e dois anos volvidos… (tenho de ir analisar já isto cabalisticamente…)
Ah, ecoam de novo em mim tuas trovas, nobre sapateiro, já de novo ouço teu martelo, dos dois modos a pregar!...
Ouço falar da inveja e outras desvianças do desumano carácter, que peitos depauperados por aqui mina:
“Também lá naquela altura
Está um lobo uivando,
E no meio da espessura,
Um bufo está bufando,
E um mocho está cantando,
E André está sentindo
Não bailar como Fernando.”
Ouço a pergunta do surpreso estrangeiro:
“Em que vos hei ofendido
E de mim sois enojado?”
E escuta meu ouvir falar de quem, justo, por injusto padece:
“Armar-lhe-ão nas passadas
Trampas, cepos de azeiros,
Atalaias nas estradas.
E bestas nas ameijoadas
Com tiros muito ligeiros”
E logo mais vem tua voz, excelso Gonçalo, em seu doído lamento:
“Oh, que dor do coração!
Oh! Que dor! Oh, que pesar!
Oh, que grão tribulação!
Arredemos a paixão,
Pois se não pode cobrar.”
E até (meu povo, pasme-se!), profetar de quanto em lusos blogues se há-de passar:
“Todo já tendes contado,
Do vacum achamos menos:
Um touro esmadrigado,
E um fuso, que era rosado;
Do ovelhum nada sabemos.
“Ajunte-se o vacum
Aqui neste verde prado,
E também o ovelhum,
E conte o seu cada um,
Ver-se-á a quem falta gado.”
Lembro aqui, irmãos (para melhor vos aclarardes quanto a esta perplexidade vacum), que no sânscrito védico, também a mesma palavra que nomeia vaca, significa outrossim luz. Vedes quão sábio?
Fala ainda até, pasme-se, da lusófona e excelsa coisa e do nobre e sábio mentor que em blogue, com seus pares e ímpares, ao longe a propala (ah, enorme Bandarra!):
“Tanja-se a frauta maior
Ajunte-se todo o rebanho,
E eu como vosso Pastor,
Com mui grão sobra de amor
Vamos partir o ganho.”
E, finalmente mas não por fim, tuas mesmas palavras, meu bravo, agora em honra de ti mesmo:
“Por honra de tal memória
Não haja aqui mais tristura,
Antes cantemos com glória,
Que fiquemos sempre em memória
Aprovando a Escritura.”
Ah,só de mim se não fala, ai de mim ... Adeus, Gonçalo Annes!
(Até uma próxima, “Bandarra”!)
Deixo-vos uma trova, ai, minha, para que vejais quão alta seja a altura de Bandarra, e térrea minha baixura:
Até à vinda do que 'speramos,
está coberto em nossa vida,
o encoberto n'alma nossa,
como o 'sperado que brote divino
em todo o coração humanado.
É assim mesmo, Lapdrey! Resposta sempre pronta na ponta da língua...
Fazes-me rir... Gosto de ti.
Tenho a impressão que o Lapdrey é o bobo da corte e do corte...
Caso o meu caro Stanislau não saiba - os estanislautas, "tal como as pessoas", não são obrigados a tudo saberem – apenas ao bobo era, na corte (não sei se no corte: isso, parece-me, era mais coisa para certa clerezia relativamente mais pejada dos mais baixos instintos, para a mais velhaca e desonrada nobreza e, claro, para as concubinas maiormente entediadas), apenas ao bobo era permitido tudo dizer abertamente, à boca escancarada e na cara de quem merecesse o escancaro, ainda que tal fosse o próprio Rei.
Bons tempos (em que não havia gabinetes de imprensa nem de imagem, para filtrar, gerir e dosear o que há-de dar-se por ouvido e o que haja, e se haja, de ser dito) e em que não havia primeiros, segundos ou terceiros ministros que se exaltassem muito, e esganiçassem ou angelicassem a voz, por “haver” a tal coisa (que verdadeiramente não há) da liberdade de imprensa.
O que claramente vai muito havendo é a liberdade de exprimir cada vez menos a liberdade de expressão, também a muito conveniente liberdade para controlar e não ser controlado, isto, é claro, de preferência sem que o bom do cidadão dê pela coisa antes de ser tarde demais, visto que quando dê por ela já está refém da teia e das peias da, nem só por isso, lá muito angelical “democracia” filha da Abrilada.
Bons tempos, em que a alguém podia ser permitido ser bobo: hoje, querer sê-lo é, desde logo, visto como coisa de um ser claramente alienígena, dum tipo assim a modos que doido ou então já muito vovô e bem bastamente senil.
É até muito pouco provável, que nesse rol escape essa criatura mais recente, o lusófono, e todos os seus respectivos troncos ascendentes e ramos descendentes. Está mal.
Que óptimo, entretanto (até quando?), que nesta “res publica” da Blogopólis ainda se vá podendo dizer algumas verdadas, ainda que a propósitos de inverdades; se cale mentiras sobretudo porque sejam mentira; se contradigam erros, ainda quando mais se aceite que se erre do que esses tais; ou se fale a propósito de algum despropósito, ainda que o maior propósito não seja nada disso.
Se com rapidez na resposta, ou menos celeridade na riposta – o que importa aqui (e alhures) é que a liberdade de ser inteiro sempre aconteça...
Querida Serpente,
Feliz Aniversário!
Saúde!
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