O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 25 de março de 2008

Pensei em escrever isto como comentário ...

... mas o meu fantasma não parava de dizer para o colocar como post.

Grande texto o da Sibila!

Lembrou-me exactamente aquilo que mais me irrita no "New Age" e noutras correntes espirituais e pseudo-espirituais: A distorção da ideia de "aceitação".

"Aceite, querida, aceite toda a injustiça, toda a dor que você vê à sua volta. Se tentar ajudar quem sofre, só estará prejudicando essa pessoa, que precisa de viver as lições kármicas que tem de retirar do seu sofrimento. Por isso aceite o mundo tal como ele é e pense em você. Deixe de desperdiçar a sua energia em política. Já agora, precisa de um shiatsu? São XX Reais."

Disse-me uma vez uma terapeuta holística que conhecí no Brasil. Sim, o mundo é como é, não temos outro e toda a bondade e todo o horror que vemos no mundo são reflexos da bondade de horror que existe em nós mesmos. Sim, nós somos cúmplices de tudo o que existe. Mas será isso desculpa para passarmos o resto da vida a olhar para o nosso umbigo, a gastar rios de dinheiro a aperfeiçoar o nosso "potencial humano" e a nos banharmos no líquido amniótico do nosso privilégio (sim, pois nós ainda não nascemos)?

Muito pelo contrário. Acho que é razão para sermos o mais activos possíveis, para desincrustar toda a ignorância, miséria e sofrimento que existe em nós e no Outro, pois não há separação, não há dualidade entre nós e o resto da "realidade". Isto mantendo sempre uma lucidêz meditativa para que a nossa acção "regeneradora" não se torne em mais uma armadilha do ego.

Que nos olhemos sempre ao espelho, não para nos fixarmos na imagem que este reflecte, mas para a deconstruirmos.

23 comentários:

Anónimo disse...

Para ti, Ana Margarida, que sei que gostas do mar:)

Só para ouvir o rumor antiquíssimo do mar
Dei por ganha a viagem e o naufrágio.
Perdido, nunca estive tão perto de saber
Que nunca é a mesma água,
Nem o rio retrocede ou a flor volta ao ramo.
Ouvimos outro som quando julgamos
Atravessar as pontes com outros barcos em baixo
E outras viagens por dentro da nossa viagem

Só para saber da mudança estamos vivos,
Que o mesmo mar não bate duas vezes a mesma onda
Na hora em que dormimos na amurada
Como um peso de corpo na tábua molhada
Acordamos mais cedo do que os nossos gestos,
E tudo já mudou em nós e na paisagem.
Não podemos dizer à nuvem que contrarie o vento
Nem mudarmos a vida que sempre foi a nossa.

E por não o sabermos é que vamos na amurada
Como um embrulho ali deixado pelos deuses.

Ana Margarida Esteves disse...

Lindo poema, obscuro, muito obrigada:-)!

Faz-me lembrar um livro muito interessante, desinquietador, que li nestas férias de Natal: "A Balada do Marinheiro-de-estrada". Conheces?

Sendo a grande amante do mar que eu sou, e sendo ainda mais amante de partilhar coisas que gosto, dedico-te este poema:

Praias

Vento de iodo,
formas bojudas
de ar e de areia.

Vento revolto
rodopiando nos céus.

Vento de iodo,
melopeia, assobio,
girando no espaço
em gotinhas de nuvem
furonas, rebeldes,
moldando o sonho
de forma tomar.

Vento revolto
redondezas de Eros.

Vento de iodo,
adolescente cabeludo
de rosto torcido,
espumando de raiva
nas ondas, nos cães.

Vento revolto,
sua forma encobre
a essência que é una
à energia que anima
as praias, as gentes.

Um abraço!
Muita ternura!
Muita Paz:)!

Anónimo disse...

Ana Margarida,

Ainda não tive oportunidade de ler Miguel Gullander, mas despertas-te-me a vontade de o ler. Parece ser uma viagem interessante, a de um escritor viajante por terras de África e Oriente. Quando puder, vou lê-lo. Também para perceber como é a visão de uma mistura nórdica e portuguesa...
Quanto ao poema que me dedicas, comoveu-me bastante. Obrigado
um sorriso:)
muita paz

Obs.: O Inglês é uma lacuna na minha formação... Mas, se bem compreendi o artigo que referes no teu último post é escrito por um americano... De qualquer modo, não há política inocente...

Ana Margarida Esteves disse...

Olá obscuro,

Este é o único poema sobre o mar que escrevi até agora, mas hei de escrever outros para te dedicar.

Relativamente à "Balada de um Marinheiro-de-estrada": É a crónica de um processo interior vivido durante uma viagem de carro entre Lisboa e Estocolmo. Processo este que é escrito pela mediação da filosofia zen ... Se queres encontrar referências mais directas à África, ao Oriente (Índia) e à cosmologia Nórdica, creio que irás gostar do "Perdido de Volta", que já foi editado no Brasil e que chegará a Portugal em Maio.

Relativamente à visão de uma mistura Nórdica e Portuguesa: Não és tu que tem cinco runas e uma serpente a engolir o Universo desenhadas no teu pátio? Queres melhor síntese da mistura entre as duas visões;-)?

Dizes que o Inglês é uma lacuna na tua formação. No entanto, pareces ser bom conhecedor de anglicismos.

Já agora (e desculpa mais uma vez a minha curiosidade;-) ) falas ou escreves alguma língua estrangeira?

um sorriso e muita ternura:)!

Anónimo disse...

Olá, Ana Margarida,

Quando decidi aparecer neste ventre "sepentíneo", ocorreu-me um nome «Obscuro», porque algum tinha de ser... mas podia muito bem ter sido apenas "voz". Era pela voz poética, pelo seu diálogo necessário com a Filosofia...e, se possível, pela beleza que nos toca a todos e, em especial, à Isabel Santiago (ela que me desculpe ter referido o seu nome sem a conhecer), que tanto aprecia a "beleza iluminada"...É claro que não foi por acaso que escolhi a "Serpente Emplumada"... Não tenho qualquer prática em "bloguismo", daí que, por vezes, a surpresa e a estupefacção me batam nos sentidos e me deixem sem jeito.
O que acontece é que a mudança faz-se a si mesma... e o que era só voz teve que se transformar em pessoa. Pessoa que eu não quis ser, intencionalmente, para ser voz e para ser o menos possível «eu».
Na dimensão da relação, por hábito, e porque é assim, o "ASSIM" que eu era já não pôde ser, e a voz começou a ter "boca".
Nos momentos em que sentimos que "Tudo é Nada" e "Nada é Tudo", não nos importamos, porque sabemos que não tem mesmo importância. Mas não nos conformamos... Mesmo sabendo isso, o meu contributo desvirtuou, degradou, se assim podemos dizer (Daqui saúdo o Paulo Borges que o soube ver e sentir?!...) em diálogos "joaninos" ou "donjuanistas" que não têm nada a ver com nada...
As expectativas e curiosidades que uma "voz" sem "boca" desperta não são um fenómeno que nos surpreenda. Daí ter havido "degradação" da ideia inicial. Essa é que valia!... Mas somos humanos, terráqueos que não se livram dessa condição que lhes é natural.
Cheguei a algumas conclusões, mas como todas as conclusões e muito mais as certezas, elas são provisórias. Nós não estamos preparados para falar com vozes. As experiências mais místicas que vivemos são irrelatáveis e incomunicáveis na nossa linguagem, (daí a importância da linguagem poética como mediadora dos “dois mundos” – lá estamos nós a unir e a separar … Esse é o processo individual que faz de cada um de nós seres únicos, mas que simultaneamente nos aproxima do outro e de tudo. «MEA CULPA! MEA CULPA!» não ter sabido "gerir" (que palavra horrível!...) essa aproximação. As simpatias humanas, as emoções, os apegos e outros “eões” seguiram o seu caminho.
Este “prelambório” todo para dizer que me interessa muito mais ser voz… Se isto continua… lá tenho que apresentar as credenciais, o Cartão Único, as literacias e as academias…dizer se sou louro ou moreno, azul ou branco, homem ou mulher… Se às vezes pareço que tenho rosto… são apenas fraquezas… traições à ideia inicial…
Desculpa aí a extensão da não resposta às tuas perguntas.

Às vezes também sinto heteronímicas vozes a escreverem por mim. Ai, ai...

Muita ternura
Um sorriso:)
Muita paz

Ana Margarida Esteves disse...

Querido obscuro,

Respeito então o teu desejo de seres apenas voz. Acredita que estou a aprender imenso contigo e com esse processo de diálogo.

Não voltarei a fazer perguntas acerca da pessoa que és, principalmente porque gosto muito da voz que aqui fala:-)!

Mas espero que compreendas que, trabalhando numa universidade, vivo num meio desencarnado, em que a voz, a palavra e os conceitos imperam.

É um mundo que se torna frio, desumano à custa de tanto se valorizar a voz, a palavra e o conceito.

Experiência esta que me leva a valorizar o concreto, a condição humana na sua fraqueza e grandeza, nos seus apegos, nas suas emoções, no seu sofrimento, no seu ridículo, no seu êxtase.

Dou-me conta a cada dia que passa que o Absoluto nos fala no que há de mais transitório, de mais concreto e individual que, paradoxalmente, nos a ponta o caminho para o que não tem limites nem identidade.

Não consigo nem quero deixar de ser humana nem de ter sentimentos. Sei que preciso de viver a minha humanidade até aos limites para a poder transcender.

Recuso a "viver" só na minha cabeça e a comunicar só através do verbo, principalmente por já ter vivido várias situações em que o direito (e o dever) de viver e fruir intensamente da humanidade me foi negado de uma forma extremamente cruel.

Várias vezes fui obrigada a viver sem rosto, sem carne, sem sangues, sem sentimentos.

Várias vezes me foi negado o direito de ser mais do que um mero cérebro com pernas ou uma voz que servia para legitimar o sistema e engrandecer o ego dos que me rodeavam. Negado o direito de sentir, de emocionar-me, de amar. Expressões estas que eram ridicularizadas e usadas como "boomerangues" par ame ferir.

É por isso que tenho curiosidade de saber quem são as pessoas que se escondem por detrás das belas palavras publicadas neste blogue. Pois a palavra, quando escolhida, é um refugio doce que se pode transformar numa prisão muito pior do que a ilusória realidade material.

Pior ainda é quando somos proibidos de comunicar e interagir de outra forma que não seja através da palavra.

Quando a palavra nos é forcada como o único meio permitido de comunicação, torna-se uma camisa-de-forças.

Não acredito que o mero acto de dizer quem somos nos obrigue a nos aprisionarmos na nossa dita "identidade". Eu também escrevo em heterónimos neste blogue;-) (só não te vou dizer quais são, senão deixa de ter piada).

No entanto, acima de tudo, e pela ternura, simpatia e amizade que sinto por todos, respeito o direito de cada um de se mostrar na forma em que se sente mais comfortável e em que se exprime melhor.

Continua então, obscuro, a presentear-nos com a tua linda voz e os teus belos poemas:-)!

Um forte abraço
muita ternura:-)
muita Paz

Anónimo disse...

Ana Margarida,

Cá está uma situação que prova como, sem intenção de magoar, ferimos aqueles de quem gostamos.
Estou triste... e, por agora,não digo mais nada. Não me saem palavras, só sentimentos... Desculpa é o que posso dizer.

Ana Margarida Esteves disse...

Querido obscuro,

Não precisas de pedir desculpa.

"sem intenção de magoar, ferimos aqueles de quem gostamos"

Como é que me podes ferir se de mim só conheces as palavras e o que elas te fazem sentir?

Anónimo disse...

Acabaste de responder à pergunta.
Respondo. Porque são transparências da alma e não opacidade;
Porque são impermanentes, vão e vêm e não se fixam…;
Perigosas, se não forem manuseadas com cuidado ou se ouvidas
por ouvidos que as não entendem;
“ilusórias”, se nos jogos de razão e conceptualização …
Por isso o silêncio lhes ganha, por ser mais produtivo…
Ou a poesia, por nela as palavras serem e não serem
Espelho a boiar no espelho do rio;
Reflexo do reflexo
Como tudo...
Como nada...

Ana Margarida Esteves disse...

Eu quero abrir o meu peito em grinaldas

Quero borrar nesta aguarela
os tons pasteis com que colorimos
as nossas vidas.

Quero pintar de vermelho e malva
as cores suaves que vestimos
para manter nossas clientelas.

Eu quero sentir sem obstáculos.

Eu quero colorir o espaço.

Eu quero preencher o vácuo.

Eu quero esquecer minhas fronteiras.

Eu quero abrir o meu peito em grinaldas.

Quero ao menos um toque,
um sinal de humanidade.

Ana Margarida Esteves disse...

Geometria Sagrada

Longe de nós estavam

As paternais
sobrancelhas
dos barbudos de toda a espécie,

A acariciante
tirania
das culturas organizacionais,

A suave
violência
dos que vampirizam a esperança alheia,

A doce
chatagem
dos paineis publicitários,

Os gritantes
silêncios
de quem preza em demasia
as boas maneiras,

A untuosa
caridade
de quem oleia a máquina que empanturra
a nossa sede.

Mais longe da nossa vontade
do que dos nossos calcanhares mordidos.

Foi então

Que bebemos o Mistério
nas fontes despidas de tudo o que nos separa,

Que respirámos o Mistério
na poeira que cicatriza os nossos pés feridos,

Que saboreámos o Mistério
nos beijos que o Sol plantou na tua face,

Que representámos o Mistério
nas danças que nasceram do chão aberto
pelos nossos passos,

Que vimos o Mistério
nos círculos que formaram as nossoas canções,
círculos de um brilhar de olhos,
de um estremecer de flores,
de um sussurar de orações.

Anónimo disse...

«Que representamos o Mistério/
das danças que nasceram do chão aberto/pelos nossos pasos...

Como a água se move
É um mistério lento,
Um sibilar de vento
Na cintura caiada dos quintais.
...

Anónimo disse...

«De um sussurrar de orações»
...
Depois que tudo é quieto
Em seu sossego íntimo
Dai à imagem o sangue necessário:
Rubras papoilas a coroar um seio,
Humanos olhos
E no peito, um pássaro.
...

Anónimo disse...

Margarida, ainda aí estás?
...
«Que bebemos o Mistério
nas fontes despidas de tudo o que nos separa,»...

Posso gritar que lá estive
Ou em silêncio amar
Cada esquina adormecida,
Cada veio de mármore,
Cada rosto que a memória
Reconhece como seu:
Vestígio, sinal, itinerário raro
Da lua, em seu arco secreto,
Em sua luz.

Anónimo disse...

Ana Margarida,

Recebo os poemas, como se mais do que um ramo de rosas se tratasse:

“A estrada é tua. Tu és a estrada. Vive-a enquanto podes”

Miguel Gullander

Um abraço

Anónimo disse...

Não sabia que podíamos trocar de nomes... Afinal há aqui várias pessoas a postar com o nome de Oriana! Posso saber qual é o objectivo?

Anónimo disse...

Estou contigo Oriana !

Fizeram o mesmo comigo ...

Adeus !

Anónimo disse...

Que estranho! Quem teria sido? Somos tantos em cada um de nós!

Afinal a quem devo agradecer os poemas? A ti, Margarida? Oriana? Inquieta?

Ana Margarida Esteves disse...

Não seria mais justo se agradecesses às musas que comunicam através de cada uma de nós pelas palavras e à opacidade que cada uma de nós é pelo sentimento e o calor que elas transmitem?

Anónimo disse...

Juro que isso tem tratamento!
Essa promiscuidade de musas opacas cheias de calor...

Mas isto sou eu a pensar! Não sei o que pensa o obscuro...

Ana Margarida Esteves disse...

"Essa promiscuidade de musas opacas cheias de calor..."

Desculpe, Dr. Phil., mas esta sua frase parece um tanto ou quanto hermética demais para a nossa "camionete".

Poderia fazer o favor de decifrar esta frase e de nos receitar o tratamento para este "problema"?

Ficaremos muito agradecidos por partilhar conosco a sua sabedoria, desde que a conta não seja mandada para nenhuma seguradora Norte-americana.

Ana Margarida Esteves disse...

"Essa promiscuidade de musas opacas cheias de calor..."

Novamente o fetichismo da palavra ...

Não sei o que será pior e mais artificial:

O anular quase completo do ser, em nome da reificação da palavra, a favor do gozo mental de quem a escreve e quem a lê, mediado por um computador

ou

o anular quase completo do ser, da parte de um anarca Alemão que uma vez conheci, em nome da reificação do seu gozo físico, também mediado por um computador, e da teoria de Deleuze e Guattari do ser humano como "máquina produtiva e desejante"?

A proscrição ao silêncio de todas e quaisquer palavras, de todas e quaisquer opiniões, de todos e quaisquer sentimentos, de todas e quaisquer acções que não tivessem como único objectivo o de facilitar a sua estimulação genital?

Digam-me, meus amigos:

Qual destas formas de fetichismo é a mais masturbatória?

a mais alienante?

a mais violenta?

Anónimo disse...

O Obscuro não existe.