O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 10 de junho de 2010

troco a minha rua pela tua


Era um sonho daqueles de menino pequeno. Menino que brinca na rua como se esta fosse a sua casa desde sempre. E era.

A rua era a sua casa. E o seu sonho o de ter uma casa a sério.

Naquele dia trocámos algumas palavras, à conta de uma bola que veio parar aos meus pés.

- Senhor, a bola…?

- Aqui tens, desculpa. – Disse-lhe.

- Eu é que peço desculpas, distraí-me. Acho sempre que a rua é completamente minha.

- E não é? – Perguntei . O estranho aqui sou eu. Turista. De visita, de passagem.

- Eu acho que a rua é minha. E é aqui que vivo, passo os meus dias quando não estou na escola. Gosto de aprender as coisas da escola, mas na rua também se aprende muito. – Respondeu-me.

Eu já lhe tinha entregue a bola. E ele conversava comigo, lançando a bola de uma mão para outra. Um movimento pendular tão hipnotizante quando o brilho dos seus olhos.

- Diz-me uma coisa que tenhas aprendido na rua.

- Eu? Eu cá aprendi a crescer. A deixar de ser criança. Só quando brinco com os meus amigos – e virou-se para apontar o grupo que o esperava – é que consigo ser um bocado criança e brincar sem pensar muito nisso. De resto, viver na rua é coisa de gente grande. E eu tive que crescer. Não em altura, mas para sobreviver.

Sorriu. Disse-me adeus, acenando com a bola na mão. Voltou para o grupo de amigos e nem olhou para trás. Fiquei a observá-los durante algum tempo, a observar a magia de ser criança «sem pensar».

No dia seguinte, voltei ao mesmo sítio, na esperança que a bola o encaminhasse de novo para mim. Mas as férias acabaram sem que o voltasse a ver. Enfim, também eu tive que deixar de ser «criança» para voltar a pensar em muitas coisas, no meu regresso aos dias de todos os dias. Nesses dias, lembro-me daquele pequeno, para quem a rua era o palco do seu crescer. Aqui os meus palcos são outros.

Comprei uma bola igual ao do pequeno. Guardo-a na gaveta do meu escritório, que é a «minha rua», onde «aprendi a crescer».




texto de Joana Sousa | fotografia de João Sousa
projecto Olhar a Palavra [em olharapalavra.com]

1 comentário:

platero disse...

coisa linda

ternurenta.Só agora li.
beijo