O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 18 de junho de 2010

despedida




















Seguindo até ao âmago do inteligível o gesto platónico, o belo em si não é belo, é a excessividade pura que torna a beleza sensível possível. Horrível a consciência aprofundada disto. A consciência levada à anulação de si. À sua superação.

O belo atira-nos de chofre no poço escuríssimo da perdição. Nas águas negras de nada ter sentido em si, para si e para além de si.

Nascidos para nos perdermos no tempo e do tempo, a tempo de nos vermos totais, perdemos o tempo com a ninharia de sermos uma cristaleira repleta de porcelanas e cristais que não usamos com medo que se partam. Guardamo-los para as visitas, se forem de cerimónia. O resto da plebe contenta-se com os copos de plástico e as canecas já quase sem estampado de tanto irem à máquina de lavar.

Todos os nossos actos deveriam ser sagrados, mas não é por isso que valerá a pena comprar papel higiénico colorido, hoje tanto na moda. A sacralidade da vida simples, a sacramentalidade de cada momento, isso deve bastar-nos. Não deveríamos precisar de mais nada para além da precisão que há em termos nascido quando nascemos. Ainda não há um pronto-a-nascer. Temos a vida que nos serve, muito mais larga que o XXL e com o tamanho pequeno que nos corresponde, se, em vez de crescer, pusermos todo o nosso empenho em minguar.

No dia de hoje, por exemplo, neste dia preciso (só na desatenção com que o vivemos poderemos achá-lo igual aos outros...) onde e quando nos visitou a beleza? E como a recebemos? E será que já percebemos que a beleza não tem que ser bonita? O feio muitas vezes é o não vermos a beleza no seu estado puro ou impuro, a própria pureza não tem que ser pura. A cristaleira é que gera a ideia errada de que a vida comum é sem cerimónia. O cerimonial é que muitas vezes é sem vida. Caiados por fora, os sepulcros têm uma forma bonita de apresentar o que é putrefacto.

Mas mesmo isso é acreditar na permanência do que é eterno.

Hoje José Saramago partiu deste mundo. Penso que contribuiu para que mais pessoas possam ver a beleza. E isso não é pouco. Serviu com nobreza o ofício de escritor. E agora, sem o peso do ego, que a sua obra frutifique (não me refiro especificamente ao autor, mas a todos nós).


2 comentários:

platero disse...

UM ABRAÇO

de solidariedade a todos os que gostam de Saramago.
já disse por aqui que me agradava que ele fosse morar de vez para ANDRÓMEDA

Laura disse...

"Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma. " José Saramago, entrevista à Revista do Expresso, 11 de Outubro de 2008