O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 3 de junho de 2010

Ressurreição

Gemem nos infernos da terra desolada
As árvores secas negras e queimadas
Assim gememos nós
Defuntos infantes de uma Terra Pura
Errantes no limbo da saudade
Do que nunca foi nem pode ser
Mas instante cresce e vem
Com o irreprimível fulgor do inadiável

As suas raízes são as nossas
Febris veias sinuosas
Afundando-se e alastrando silenciosas
Nas auroras negras que há por dentro das coisas
A revolver o íntimo do mundo em insónias e espantos
Espectros lentos que sobem à tona
Chamas surdas que crepitam e crescem
A lavrar o íntimo da imensidão
Que tarda em amanhecer
Ó turba que adias o despertar
Da rumorejante noite do haver

Sepultos no âmago dos mundos
Alucinados assomamos aos berços aos afagos e aos rostos
Ao riso e às lágrimas
Da faminta aurora do existir
Aos sepulcros caiados do que parece
Ao delírio do nascer e morrer
E assim rondamos na roda do desejo
Que a própria boca outra sempre beija
E o alucinado devir sem fim renova

Mas o que agora, ó Irmãos, vem
Por entre este murmurante e tépido renovar do mundo
Por entre este amoroso halo que às coisas nimba
Por entre estas ridentes e floridas núpcias de tudo
Por entre estas danças cantos coroas e grinaldas
É outra coisa
É a vera verdade prima
Primavera do despertar que nunca conheceu sono
O eterno vivente na orla sem margens do existir
O que ressuma da ânsia da terra queimada
E do silente gemido das vidas e das coisas
O que cresce do fundo de o não haver
E em cada um de nós se faz alento e carne
No súbito espanto de tudo

O que agora se celebra e canta, ó Irmãos
É mistério maior que o haver mundo
Mistério maior que o haver
Tal qual maior que todo o mistério
É o jamais termos sido possíveis
É o jamais ter havido alguma coisa
E sequer a ideia de haver
O que agora se celebra e canta, ó Irmãos
É a eterna e instante Ressurreição
De nada jamais ter início
E assim, mas de outro modo
Oblíquo, fulgurante e maravilhoso
Tudo ser afinal e sempre possível

O que agora se celebra e canta é este prodígio natural
De nada ser um
Esta revoada de corpos
Que, ígneas pombas bravas, do imo de cada poro
Em adamantinos ímpetos se nos elevam
E súbito se transmudam em miríades de vidas várias loucas e impossíveis
A multiplicarem-se ébrias das infinitas possibilidades que há nas infinitas possibilidades que há nas infinitas possibilidades que há no esplendoroso vazio de tudo
Ó turbamulta cascata vertigem abismo
De tudo quanto passado presente futuro
Se viveu vive viverá
E aqui agora simultaneamente se vive imagina pensa sente
De tudo quanto sem acontecer ocorre
De tudo o que se agita raiva e revolve
Em dor júbilo medo esperança
No fundo sem fundo
Da terrível e fantástica inconsciência disso

É esse o grande tumulto que aqui agora
Neste e em todos os cantos
Neste e em todos os poemas
Dos fundos da terra queimada desponta
O grande clamor das árvores mirradas retorcidas sedentas
O grande clamor dos mortos desatentos esquecidos
Rompendo eras mundos infernos
em rebentos viços e seivas novas
Das árvores nossos corpos amotinados insubmissos amantes
Estendendo grandes ramos
Vigorosos braços pulsantes
Em filigrana ao espaço cingidos
Nossos corpos uns aos outros abraçados enxertados fundidos
Multiplicados em folhas flores frutos
Espontaneamente jovens e maduros
Explosivos de tão plenos tão frementes tão puros

E neles todos os nossos sonhos as nossas alucinações a nossa loucura
Todas as vidas todas as mortes
Todas as lágrimas todas as fezes todo o sangue
Todo o furor toda a impotência
Toda a fome toda a sede todo o cio
Todos os encontros todas as perdas todas as despedidas
Todo o ranger de dentes todo o tactear às escuras
Todas as alegrias todos os pasmos todos os júbilos
Todas as esperanças todos os desenganos
Todo o vício toda a virtude
Todos os crimes todas as expiações
Todos os infernos todos os mundos todos os céus todos os paraísos
Tudo isso e o seu rotundo nada
O seu imenso vazio a sua prodigiosa evanescência
Em cada fruto brilhante e pleno que da miríade de nossos ramos pende
Imperioso e súbito se avoluma até eclipsar o espaço
E neste mesmo instante em torrencial vertigem de luz explode

Branco

Vermelho

Negro

.........................................


Agora pode enfim haver mundo
Sonho eternamente livre de o ser
Todos os seres infantes sem nome sem pais sem pátria sem casa
Todos os fenómenos danças cantos hinos jogos
Todos os sons poesia muda
Todos os pensamentos invisíveis asas
Omnipresentes no infinito do espaço que não há
Todas as coisas
Ressurreição de as haver

Todas as coisas

Ressurreição

De a haver

11 comentários:

platero disse...

magnífico. desconhecia esta competência - poética

ou é prosa esotérica, de muita qualidade, com forma gráfica de poema?

abraço

Anónimo disse...

Isso é que é fôlego e respiração ampla!!

Parabéns.

Um abraço, Paulo, e o meu agradecimento por ser meu Amigo
:))

Anaedera disse...

"Branco,
Vermelho,
Negro"

Um início,
Ressuscitado.

Nuno Maltez disse...

Esplêndido, fulgoroso, mas um pouco longo para se ler de uma vez, de uma assentada. Um compacto do mundo e do algo mais que o mundo que trazemos dentro de nós, mais que tudo menos que tudo, igual e não igual a tudo. Isso.

Paulo Borges disse...

Grato pelo vosso apreço. O que comecei por escrever e publicar foi poesia e o que queria era ser músico. Afinal ficou a filosofia e o amor à Musa.

Abraços amigos

Nuno Maltez disse...

E este poema dá uma excelente letra para uma canção, ler o poema ao som de uma canção.

rmf disse...

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior

Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...

Alberto Caeiro

Espero que goste.
Abraço-vos também.

luizaDunas disse...

Li agora a Ressurreição em voz alta. Infernal e celestial e... bardo :"Ressurreição de a haver"

Belíssimo!

rmf disse...

Luíza,
como é fascinante saber que ainda há quem leia em voz alta! É muito importante. Assim, e só assim, os pensamentos se libertam do absurdo que as palavras são quando a elas é reconhecido esse poder do ocluso silêncio que as reveste, só assim essas ideias aprisionadas na matriz da grafia se libertam da sua inclusa e multi-significante natureza evolando-se no etéreo ao sabor da, também ela, livre vocalização, sopro gesto ou pontuação, pausando o silêncio dentro entre e por fora delas.

É um poema para ser lido em voz alta, certamente, como todos aqueles poemas que já libertados desse silêncio se vêem agora por fora da inanidade.

E tem música, e uma extrema e muito desafiante musicalidade.

É um poema brilhante!

Chegados aqui, grato pelo vosso tempo.

Abraços...
como naqueles em que se abraça quem nos abraça também :)

Anónimo disse...

Conncordo que é um poema para ser lido em voz alta... Luíz e Rui. Tem aquela cadência que atecece dizer... Como ficaria belo nas vossas vozes?
Oiço-o e também o leio em voz alta.
...

Um bom abraço para todos.

Anónimo disse...

Luíza, era o que queria dizer.
Um abraço daqui para o Luíz esse grande Amigo e Poeta também que aqui foi "chamado" de forma espontânea pela Amizade de todos nós, creio. Um imenso abraço para ele!
Saúde, irmão!