O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 10 de março de 2010

Que me ceguem as tardes
Que me roubem a alegria ao subir da estrada
Ou que todos os bichos me visitem quando estiver a fazer amor
Se esse amor não tiver contornos de uma rosa

Eu amo uma mulher
Uma epopeia de ventos e sóis
Uma árvore que cresce no sentido dos meus pulmões

Pergunto:
Tenho a janela aberta, será que dói?
Quem tem gramática para compreender o implacável silêncio?

Aqui estou de frente ao tempo invisível
A dar-lhe palha por uma fechadura
Multiplicando abelhas para sermos muitos mais que um Desejo

Que a minha loucura seja tabaco de enrolar
Que a solidão seja o espelho em que me olho e não veja porra nenhuma!
Amo as coisas que se formam no precipício da carne
Os azuis tão inocentes de um nada
A claridade que bate e perfura o mais íntimo de nós

Eu digo: a minha cabeça é um rebanho de ovelhas
O meu corpo: o pastor que se perdeu no pasto
Pena é que a lucidez não se beba por um copo
Nem que a verdade aceite fiado
O amor é aqui e agora: pele contra pele
E não sequer pensar que futuro é
Para a semana que vem

Amo sem nunca ter assinado contrato
Sem nunca ter ido a uma biblioteca
Ou escutado a dor em greve de fome
Crio o vazio e nele creio
Como creio na libertação das minhas mãos
No barro que moldo as manhãs primordiais

Amo o analfabetismo do meu sangue
Amo os insectos que me esperam no caminho
Amo o cansaço com que me deito
Amo e sou feliz nessa contradição

Posso até ser a morte viva
Um lápis à espera de ser aparado
Mas amo! Amo!
Amo e canto a serenata no hall do silêncio
E faço sexo com o meu nariz!

5 comentários:

platero disse...

Deve ser bom escrever um poema belo como este.
Também não é mau identificá-lo às primeiras palavras.
Talvez esta a diferença entre o autor e o crítico.
Eu sou nem um
nem outro

abraço

Anaedera disse...

Bom será,
amar assim, concerteza!

"aqui e agora compreendendo o implacável silêncio"

Pois verdadeiro amor nasce realmente assim, no silêncio do nada, só na pura realidade de "tocar o coração das coisas".

Muito bonito!

rmf disse...

"Uma árvore que cresce no sentido dos meus pulmões" prova inequívoca de quem tem "gramática para compreender o implacável silêncio"

Abraço

Anónimo disse...

É isso mesmo. É uma gramática de que particularmente gosto e com a qual sinto grande afinidade, simpatia e empatia. Gosto do que escreve. É visível a entrega total a essa gramática do silêncio, a esse povoamento de vozes silentes.

Gostei muito do que li. Serei leitora de uma escreita assim, entrada na gramática do olhar, como árvore.

ethel disse...

bonito. muito bonito