Só hoje descobri um facto curioso, embora talvez nem seja um facto, mas antes uma impressão subjectiva, uma quimera da minha imaginação. Ao observar o sorriso duma bebé de nove meses, filha dum amigo meu, descobri que o brilho intenso dos seus olhos era o mesmo que eu vira nos olhos do meu avô materno na véspera do dia em que ele partiu deste mundo. Um brilho que ficou por mais de vinte anos a aguardar que eu lhe descobrisse a possibilidade de se tornar significante.
Um velho de 86 anos, no ocaso da vida, que recuperara alguma da sua lucidez, num momento de reanimação da vivacidade perdia, “as melhoras da morte” como lhe chama o povo, com dois olhos que se afundavam para dentro… os seus olhos brilhavam duma forma límpida, como se a sua mente fosse um cântaro cheio da água da fonte da sua aldeia, fresca, irrequieta, com o aroma primaveril da terra da nascente…
Essa presença categórica duma vida que vê, uma vida que no ver se compraz, um ver sem depois, apenas luz que se encontra com o seu entorno, tem uma pureza desarmante. Uma criança de 9 meses e um velho de 86 anos, ou melhor: duas mentes que repousam na paz do acontecer. Mentes que não se entregam ao cálculo das vantagens e das desvantagens, ou a um jogo semelhante ao que eu gostava de jogar com o meu avô no tabuleiro das damas: o ‘perde-ganha’. Se perdermos a pureza, ganhamos a riqueza; se perdermos a infância, ganhamos com a ganância; se perdermos a vergonha, ganhamos com a ronha…
Cada vez mais me apetece o contacto com essa pureza essencial. A vida sem o enredo do egotismo. É difícil jogar ao perde-ganha com o ego. O meu avô ganhava sempre e dizia que eu tinha que aprender a não querer ganhar, «essa é que é essa!», aí é que está a chave da solução para o problema: quem não gosta de se sentir apreciado, de ser aplaudido, de ter sucesso, uma vida despreocupada, estatuto e aceitação social? Mas fazer o inverso, levar uma vida de renunciante, pode ser uma das mais acutilantes investidas do ego: «sou melhor do que os outros porque prescindo daquilo que mais os motiva…»
Como será viver uma vida abençoada, ‘abensonhada’ como diz Mia Couto? Há uma inocência nos que vivem sem inquietações metafísicas que é, em certa medida, invejável. Comer para comer, beber para beber, lavar a cara para lavar a cara, escrever para escrever… Para quê levantar a ponta de cada acção e instante da vida em busca de porquês e para quês? Mas isso não significa deixar-se de viver o sentido mais profundo duma atitude interrogativa perante tudo. A admiração primordial face à vida e a tudo o que nela se entrelaça é uma forma de beatitude.
Hoje começo a perceber o sentido da Fé. Não se trata de acreditar seja no que for, nada neste imenso universo, e até fora dele, necessita que eu lhe dê crédito. A Fé é essa pureza que brilha nos olhos da criança de 9 meses e do velho moribundo que tinha na memória anos de vida, queimados, um a um, como quem queima fósforos. É uma couraça contra as investidas do egotismo. Quem precisa dum ego quando está para morrer? E quem precisa dum ego quando está para viver?
E também será uma espécie de consolo, se olharmos para esta sociedade e para o modo como as pessoas se desconsideram. Valerá a pena a alma não ser pequena? Não valerá mais ter dois pássaros a voar no coração do que ter um pássaro na mão? Ou ter as mãos como pássaros…
Hoje ouvi nas notícias uma personalidade a dizer que era importante as pessoas tentarem fazer algo de cultural, como ler, ouvir música, ir ao cinema… como se ir ao wc, palitar os dentes, dormir a sesta não fossem actos culturais. É este tipo de experiência dita intelectual que mais me revolta (num sentido manso do termo), esse elitismo, essa sobranceria dos que acham que fazem mais actos culturais do que os demais. Acho que o importante é fazermos actos cultuais, deixarmos que a vida seja um culto, um crescimento espiritual – mas há que notar que o espírito não cresce, nem decresce, é um sopro livre, o crescimento espiritual deverá ser entendido como deixarmos a vida andar ao léu, não termos eira nem beira, não vivermos emparedados em crenças de alta estirpe, como se o que há não se bastasse.
E depois? Pois, e depois?! Depois não há nada? Depois se verá!