Italian painter, Venetian school (b. 1472, Venezia, d. 1526, Capodistria)
Tempera on canvas, 280 x 611 cm
Gallerie dell'Accademia, Venice
A Santa Úrsula
(...)Estando neste porto a bela armada
Tomando o necessário mantimento,
Pera poder seguir sua jornada,
E dar terceira vez o treu ao vento;
Sendo parte da noute já passada,
A Virgem lá no seu retraimento,
Quando estava dormindo toda a frota,
A Cristo orou assim, branda e devota:
— Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor que amando vou toda rendida;
Com quem não há na vida pena grave,
Sem quem glória real não há na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor ando ferida,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que de amor cheio e de brandura,
D’amor enches est’alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e fermosura,
Não pode nunca haver cousa fermosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Uma vida tão fraca e duvidosa,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que por amor te dispuseste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do céu desceste;
Amor, que por amor à Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida deste;
Amor, que por amor a glória abriste,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que mais e mais sempre te aumentas
No coração que lá contigo trazes;
Amor, que de amor puro te sustentas
No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
Amor, que sem amor não te contentas,
De tudo com amor te satisfazes,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que com amor me cativaste;
(se livre pode ser quem não cativas)
Amor, que em tais prisões m’asseguraste
As esperanças dantes fugitivas;
Amor, que suspirando m’ensinaste
A derramar por ti lágrimas vivas,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?
Quando verei um dia em que ofereça
Por ti ao cruel ferro o peito forte,
E cercada de virgens apareça
Na tua soberana e eterna corte;
Onde lá cada uma te mereça,
Cá passando comigo a própria morte;
E todas dando o sangue juntas, todas
Celebremos contigo eternas bodas?
Fazei-me já, Senhor, esta vontade
Que tenho de te ver, que sempre tive,
Dês que me deu lugar a tenra idade,
E lume de rezão nesta alma vive,
Não queiras, meu Amor, que a saudade
Sem tal bem a mi só da vida prive;
Que se muito se alarga este desterro,
Por ela irei a ti, não por o ferro.
Desata o meu espírito saudoso,
Do nó mortal em que se vai detendo,
Primeiro que três vezes pressuroso
O Sol os doze signos vá correndo.
Espaço é que tomei, meu doce Esposo,
Pera outro esposo meu ir entretendo:
Mas a meu amor crendo, de ti creio
Que acabes com a vida meu receio.
Inda neste fervente e justo rogo
Úrsula suspirando procedia,
Quando dum resplendor como fogo
Divina voz ouviu, que assi dezia:
« Ó virgem, que soubeste fazer jogo
Do que no mundo tem valia,
Entende que da volta que fizeres,
Aqui quero que seja o que tu queres.»(...)
2 comentários:
E assim por Amor a divina saudade faz jogo do que no mundo vale ! Magnífico ! E magnífica a conjugação de verbo e imagem que aqui trazes ! Graças !
Acordo tarde e logo mui rendida. E hoje sinto Senhora, que ao ler-vos faço uma oração ao Divino e Saudoso Amor.
Para pensar que toda a oração devia ser um rasgo intenso de sentimento, beleza e pormenor. E sempre, sempre esta visão da cor e da soberania do gesto e ou esta visão do que se não vê.
Aqueles que oram olhando o mundo, não oram religiosamente, oram talvez só pletórica e retoricamente.
Leio esta oração e divina poesia e sinto logo que no mundo ando perdida...e nada há que em mim suplante esta alegria: saber que não sou daqui.
Também graças te dou!
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