O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 14 de julho de 2008

A Pele do Obscuro


No tempo em que era Obscuro, estávamos todos vivos e éramos felizes…. Escrevia epístolas ordenadas em romanos números e outras que, invisíveis, escorregavam para o vazio da inconsciência consciente de mim. Estava frio e escrevia poemas atirados às interrogações retóricas, para as quais nunca havia resposta… Não havia resposta, só uma longa, constante e febril interrogação. Não conhecia, então, os sons iluminados da escrita e da escuta invisíveis… Só sabia do mar, da saudade e das viagens à roda do abismo do ser. Chorava numa gruta a inexistência das luminosidades incandescentes. Atirava runas e alfabetos para os sinais de uma familiaridade funda e paradoxal. Não tinha os pés de azul ou mar pintados. Era o mar, eu era o oceano fundo de uma memória desconhecida, e pedia aos deuses, sem o saber, uma flor de seda para a sede dos olhos. Conhecia as bailarinas cegas dos retratos pintados na memória, e atirava ao vazio de tudo a temerária flor da alma absconsa e do grito sem eco. Desconhecia o rosto das bailarinas cegas com que tinha sonhado num passado, agora futuro. Tinha nos olhos a névoa de um laço preto no braço do mundo. Vivia a orfandade radical dos deuses como a ferida aberta e funda de uma escrita atirada para o muro do vazio de alfabetos de luz. Nunca, como então, a Serpente percorrera caminhos mais transcendidos, para além de Deus, dos Homens e da Natureza. Havia Pessoa, Pascoes, Heraclito, Heidegger, Spinoza, São Tomás de Aquino, Vieira, Camões, tantos rostos deste país…Havia Índias de que não conhecia o fim e rosas em cada círculo de emoção, desenhadas em cruz, na cruz do mundo.
Hoje desaguo-me em águas, e chamo de mãe a memória que guardo. Saudosa me revejo e me desconheço. A pele deixada é agora rio serpenteando os astros e as dunas. Paisagens de Luiza ao contrário, e as mesmas… Perfumes de Isabel em pedrinhas inúmeras dum rio claro… uma fonte de beber e não secar. Hoje, quando o Obscuro me visita, tenho saudades do seu rosto inominável, da sua voz vinda de nenhum lugar, do seu mistério de Arlequim nu, de Trovador patético, de Gilgamesh choroso sobre o corpo morto de Enkidu… Saudades de quando era rei de uma tragédia sem girândolas de flores para os olhos. Só a Rosa me era desejo… Saudades das princesas que houve nas Margaridas que havia, das crianças místicas que despertavam no mar dos olhos… Sou uma alma saudosa do futuro e uma Serpente Emplumada.
Para onde foi tudo o que era? É disso que sinto saudades. Dessa clareira de alma que me é ausência e presença eterna. É nessa clareira que encontro o país. O lugar raiz de todas as ausências, de esperança coroada, essa clareira de alma cravada na negrura do rosto desfeito em pluma de sentir.

6 comentários:

Anónimo disse...

Se te estavas a divertir tanto, porque não volta a sê-lo?

Anónimo disse...

Oscilação de tratamento?...
É preciso saber deixar a pele...
Mesmo que quiséssemos, como poderiamos voltar a ser o mesmo no mesmo rio? Se já somos outro? se já não é o mesmo rio?
O que o tempo engoliu perdeu-se para o agora. O perdido só é recuperado em saudade...
Novas borrachas ainda não chegaram. Estão encomendadas...
E se viessem não saberíamos que uso fazer delas... Se o Obscuro voltasse como poderia ser o mesmo?
Não há indulgência para o que fomos, pois que continuamos a ser de outro modo.
:)

Anónimo disse...

Saudades

hoje marcadamente triste por muitas coisas difíceis, hoje cheia de saudade e sem futuro para depois, hoje...leio o texto rapidamente que já para outros mil sítios me chamam e eu não posso deixar de ir, abraço-a e a tudo o que de Obscuro e/ou transparente deu a ver e com que vestiu e veste a minha pele. Abraço-a forte e sou vento para a si chegar.

Ah...talvez mande o sorriso imenso da minha mãe. Suponho que o escreveria como nunca saberei. Às vezes, dizem, atravessa-me como um rio. E, ele corre seguramente para si e para os seus pés. Com essa água a baptizo como uma alma afim.

Anónimo disse...

Não será tudo isto uma boa desculpa para justificar os soluços do próprio ego sob uma capa de pseudo-espiritualidade e literatura?

Anónimo disse...

Isabel,

Quase sinto remorsos por tê-la distraído de seus difíceis afazeres de hoje... Só posso agradecer o sorriso que me manda, saiba que o tem guardado e protegido nas águas que não têm nome.

Tantrika,

«Tudo isto» sou eu. És tu... É disso que falo, despindo-me, despedindo-me de mim. Agradecendo sempre. Que outra coisa poderia fazer? Faço-o com palavras, delas não me despeço... Antes a vida, como diria o Paulo Borges.

luizaDunas disse...

Saudades,
De quando em vez, quando te ouço, lembro-me do Obscuro, e vejo-te não diferente mas com rosto. Celebro isso.

Vou agora até a outras dunas junto ao Mar onde vou mergulhar. Passarei por um sítio a ver se ainda lá se encontra um escrito a rosa...