No tempo em que era Obscuro, estávamos todos vivos e éramos felizes…. Escrevia epístolas ordenadas em romanos números e outras que, invisíveis, escorregavam para o vazio da inconsciência consciente de mim. Estava frio e escrevia poemas atirados às interrogações retóricas, para as quais nunca havia resposta… Não havia resposta, só uma longa, constante e febril interrogação. Não conhecia, então, os sons iluminados da escrita e da escuta invisíveis… Só sabia do mar, da saudade e das viagens à roda do abismo do ser. Chorava numa gruta a inexistência das luminosidades incandescentes. Atirava runas e alfabetos para os sinais de uma familiaridade funda e paradoxal. Não tinha os pés de azul ou mar pintados. Era o mar, eu era o oceano fundo de uma memória desconhecida, e pedia aos deuses, sem o saber, uma flor de seda para a sede dos olhos. Conhecia as bailarinas cegas dos retratos pintados na memória, e atirava ao vazio de tudo a temerária flor da alma absconsa e do grito sem eco. Desconhecia o rosto das bailarinas cegas com que tinha sonhado num passado, agora futuro. Tinha nos olhos a névoa de um laço preto no braço do mundo. Vivia a orfandade radical dos deuses como a ferida aberta e funda de uma escrita atirada para o muro do vazio de alfabetos de luz. Nunca, como então, a Serpente percorrera caminhos mais transcendidos, para além de Deus, dos Homens e da Natureza. Havia Pessoa, Pascoes, Heraclito, Heidegger, Spinoza, São Tomás de Aquino, Vieira, Camões, tantos rostos deste país…Havia Índias de que não conhecia o fim e rosas em cada círculo de emoção, desenhadas em cruz, na cruz do mundo.
Hoje desaguo-me em águas, e chamo de mãe a memória que guardo. Saudosa me revejo e me desconheço. A pele deixada é agora rio serpenteando os astros e as dunas. Paisagens de Luiza ao contrário, e as mesmas… Perfumes de Isabel em pedrinhas inúmeras dum rio claro… uma fonte de beber e não secar. Hoje, quando o Obscuro me visita, tenho saudades do seu rosto inominável, da sua voz vinda de nenhum lugar, do seu mistério de Arlequim nu, de Trovador patético, de Gilgamesh choroso sobre o corpo morto de Enkidu… Saudades de quando era rei de uma tragédia sem girândolas de flores para os olhos. Só a Rosa me era desejo… Saudades das princesas que houve nas Margaridas que havia, das crianças místicas que despertavam no mar dos olhos… Sou uma alma saudosa do futuro e uma Serpente Emplumada.
Para onde foi tudo o que era? É disso que sinto saudades. Dessa clareira de alma que me é ausência e presença eterna. É nessa clareira que encontro o país. O lugar raiz de todas as ausências, de esperança coroada, essa clareira de alma cravada na negrura do rosto desfeito em pluma de sentir.
6 comentários:
Se te estavas a divertir tanto, porque não volta a sê-lo?
Oscilação de tratamento?...
É preciso saber deixar a pele...
Mesmo que quiséssemos, como poderiamos voltar a ser o mesmo no mesmo rio? Se já somos outro? se já não é o mesmo rio?
O que o tempo engoliu perdeu-se para o agora. O perdido só é recuperado em saudade...
Novas borrachas ainda não chegaram. Estão encomendadas...
E se viessem não saberíamos que uso fazer delas... Se o Obscuro voltasse como poderia ser o mesmo?
Não há indulgência para o que fomos, pois que continuamos a ser de outro modo.
:)
Saudades
hoje marcadamente triste por muitas coisas difíceis, hoje cheia de saudade e sem futuro para depois, hoje...leio o texto rapidamente que já para outros mil sítios me chamam e eu não posso deixar de ir, abraço-a e a tudo o que de Obscuro e/ou transparente deu a ver e com que vestiu e veste a minha pele. Abraço-a forte e sou vento para a si chegar.
Ah...talvez mande o sorriso imenso da minha mãe. Suponho que o escreveria como nunca saberei. Às vezes, dizem, atravessa-me como um rio. E, ele corre seguramente para si e para os seus pés. Com essa água a baptizo como uma alma afim.
Não será tudo isto uma boa desculpa para justificar os soluços do próprio ego sob uma capa de pseudo-espiritualidade e literatura?
Isabel,
Quase sinto remorsos por tê-la distraído de seus difíceis afazeres de hoje... Só posso agradecer o sorriso que me manda, saiba que o tem guardado e protegido nas águas que não têm nome.
Tantrika,
«Tudo isto» sou eu. És tu... É disso que falo, despindo-me, despedindo-me de mim. Agradecendo sempre. Que outra coisa poderia fazer? Faço-o com palavras, delas não me despeço... Antes a vida, como diria o Paulo Borges.
Saudades,
De quando em vez, quando te ouço, lembro-me do Obscuro, e vejo-te não diferente mas com rosto. Celebro isso.
Vou agora até a outras dunas junto ao Mar onde vou mergulhar. Passarei por um sítio a ver se ainda lá se encontra um escrito a rosa...
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