Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
sábado, 28 de fevereiro de 2009
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
Antonio Machado - da "bestia paradojica" e do nada nela
XV
Cantad conmigo en coro: Saber, nada sabemos,
de arcano mar vinimos, a ignota mar iremos …
Y entre los dos misterios está el enigma grave;
tres arcas sierra una desconocida llave.
La luz nada ilumina y el sabio nada enseña.
¿Qué dice la palabra? ¿Qué el agua de la peña?
XVI
El hombre es por natura la bestia paradójica,
un animal absurdo que necesita lógica.
Creó de nada un mundo y, su obra terminada,
“Ya estoy en el secreto – se dijo -, todo es nada.”
Antonio Machado, dos “Proverbios y Cantares”,
(“Poesías Completas”, Espasa-Calpe, Madrid, 1980, pág. 220 e seg.)
Cantad conmigo en coro: Saber, nada sabemos,
de arcano mar vinimos, a ignota mar iremos …
Y entre los dos misterios está el enigma grave;
tres arcas sierra una desconocida llave.
La luz nada ilumina y el sabio nada enseña.
¿Qué dice la palabra? ¿Qué el agua de la peña?
XVI
El hombre es por natura la bestia paradójica,
un animal absurdo que necesita lógica.
Creó de nada un mundo y, su obra terminada,
“Ya estoy en el secreto – se dijo -, todo es nada.”
Antonio Machado, dos “Proverbios y Cantares”,
(“Poesías Completas”, Espasa-Calpe, Madrid, 1980, pág. 220 e seg.)
"Quando fores velha" - Yeats (a uma amiga de alma grisalha e alegre encanto)
Quando fores velha
Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;
Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;
Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.
William Butler Yeats (1865-1939)
(Tradução de José Agostinho Baptista)
(Em aceno a uma Amiga, que o sabe, sabe o “alegre encanto” destes versos e sabe ser "grisalha" antes mesmo de sê-lo, aqui deixo este amado Yeats, “escondendo o rosto numa imensidão de estrelas”.
Sempre presente, na lareira do ser...)
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009
Serenidade
espreito por uma varanda de eternidade
e debruço-me em tons de azul
não sei se toco primeiro no céu, ou no mar
se me cansar, repousarei no monte que me espera
e quem sabe, serei também nuvem
essência etérea que a branco me reveste
traduzindo...serenidade
Poema de Luís Quintais: Psicogeografia
Como nos salvámos, ainda que só por instantes?
Recusando mapas, designando ocasos,
espreitando
a intransparência do vidro das casas
após a entropia que devora famílias.
Salvámo-nos por inquietação móvel,
por solidão contrafeita
e vigilante.
in Mais Espesso que a Água
Recusando mapas, designando ocasos,
espreitando
a intransparência do vidro das casas
após a entropia que devora famílias.
Salvámo-nos por inquietação móvel,
por solidão contrafeita
e vigilante.
in Mais Espesso que a Água
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
Karl Jenkins: Adiemus
Adiemus não é cantada em nenhuma língua. As palavras são simples sílabas, inventadas por Karl Jenkins, o compositor. Foram escolhidas para que o ouvinte se consiga concentrar exclusivamente no som e timbre da voz. O som destas sílabas permite que a voz funcione como um mero instrumento. Além disso, quando as canto, sinto alegria. Ora experimentem!
Ariadiamus late ariadiamus da
ari a natus late adua
A-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te la-te-a
Ariadiamus late ariadiamus da
ari a natus late adua
A-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te la-te-a
A-na-ma-na coo-le ra-we
a-na-ma-na coo-le ra
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la...
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la........
ah-ya-doo-ah-eh
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la.....
a-ya-doo-ah-eh...
a-ya doo a-ye
a-ya doo a-ye
****
A-na-ma-na coo-le ra-we
a-na-ma-na coo-le ra
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la...
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la........
ah-ya-doo-ah-eh
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la.....
a-ya-doo-ah-eh...
a-ya doo a-ye
a-ya doo a-ye
---
a-ri-a-di-a-mus la-te
a-ri-a-di-a-mus da
a-i-a na-tus la-te a-du-a.
A-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te la-te-a.
A-na-ma-na coo-le ra-we
a-na-ma-na coo-le ra
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la...
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la........
ah-ya-doo-ah-eh
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la.....
a-ya-doo-ah-eh...
a-ya doo a-ye
a-ya doo a-ye
ya-ka-ma ya-ma-ya-ka-ya me-ma
a-ya-coo-ah-eh mena
ya-ka-ma ya-ma-ya-ka-ya me-ma
a-ya-coo-ah-eh mena
ya----ka--ma me--ah
a-ya-coo-ah-eh mena
ya----ka--ma me--ah
Ariadiamus late ariadiamus da
ari a natus late adua
A-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te la-te-a
Ariadiamus late ariadiamus da
ari a natus late adua
A-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te la-te-a
A-na-ma-na coo-le ra-we
a-na-ma-na coo-le ra
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la...
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la........
ah-ya-doo-ah-eh
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la.....
a-ya-doo-ah-eh...
a-ya doo a-ye
a-ya doo a-ye
****
A-na-ma-na coo-le ra-we
a-na-ma-na coo-le ra
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la...
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la........
ah-ya-doo-ah-eh
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la.....
a-ya-doo-ah-eh...
a-ya doo a-ye
a-ya doo a-ye
---
a-ri-a-di-a-mus la-te
a-ri-a-di-a-mus da
a-i-a na-tus la-te a-du-a.
A-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te
a-ra-va-re tu-e va-te la-te-a.
A-na-ma-na coo-le ra-we
a-na-ma-na coo-le ra
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la...
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la........
ah-ya-doo-ah-eh
a-na-ma-na coo-le ra-we a-ka-la.....
a-ya-doo-ah-eh...
a-ya doo a-ye
a-ya doo a-ye
ya-ka-ma ya-ma-ya-ka-ya me-ma
a-ya-coo-ah-eh mena
ya-ka-ma ya-ma-ya-ka-ya me-ma
a-ya-coo-ah-eh mena
ya----ka--ma me--ah
a-ya-coo-ah-eh mena
ya----ka--ma me--ah
O novo homem
O homem será feito
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como flor
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
"Nove meses, eu?
Nem nove minutos."
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.
Carlos Drummond de Andrade
In Caminhos de João Brandão
José Olympio, 1970
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como flor
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
"Nove meses, eu?
Nem nove minutos."
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.
Carlos Drummond de Andrade
In Caminhos de João Brandão
José Olympio, 1970
Homenagem a Cesário Verde
Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas
Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas
Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!
Mário Cesariny de Vasconcelos, in pena capital
Assírio & Alvim; 2ª edição. 1999
terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
Altas Montanhas
Para lá da Montanha
Não havia Mar,
Só mais montanha
Nas montanhas,
os pescadores sem Mar
chamam-se pastores
Os peixes ganham pêlo,
que se transforma em lã
protecção do vento e do Sol
Os cardumes, são rebanhos
E o Azul, esse,
fica sempre por cima das cabeças
Não se entranha nas guelras
Nesses dias secos,
Há quem diga que a esperança
está do outro lado da estrada
e que basta atravessar
(a pedido de várias famílias... publico fora de horas e aproveito para dedicar este post à Fragmentus*, que me desculpem os restantes encorajadores)
Não havia Mar,
Só mais montanha
Nas montanhas,
os pescadores sem Mar
chamam-se pastores
Os peixes ganham pêlo,
que se transforma em lã
protecção do vento e do Sol
Os cardumes, são rebanhos
E o Azul, esse,
fica sempre por cima das cabeças
Não se entranha nas guelras
Nesses dias secos,
Há quem diga que a esperança
está do outro lado da estrada
e que basta atravessar
(a pedido de várias famílias... publico fora de horas e aproveito para dedicar este post à Fragmentus*, que me desculpem os restantes encorajadores)
Tão
Dos meandros da minha pele
Sai um talho de riso
Brutidão, ossatura
Dissimulada carne
Da diáspora das minhas veias
Vaza uma jovem de leite
Gengivas frescas, braços límpidos, frontes sem fragor
Hálito de sal e chocolate e vaidade de branco passado
Quero varandins brumosos
Doces redes
Esmaecida claridade
Horas do sem tempo
Ir onde me possua
Ir no vento, ir no vento
Nas rendas da minha pele mora um barco embandeirado
Quer margem de folha, prumo, largo
Quer vastidão, quer azul, quer água
Rumar sem rodeios
Enfim e então
Somente e apenas
Tão desatracado
Sai um talho de riso
Brutidão, ossatura
Dissimulada carne
Da diáspora das minhas veias
Vaza uma jovem de leite
Gengivas frescas, braços límpidos, frontes sem fragor
Hálito de sal e chocolate e vaidade de branco passado
Quero varandins brumosos
Doces redes
Esmaecida claridade
Horas do sem tempo
Ir onde me possua
Ir no vento, ir no vento
Nas rendas da minha pele mora um barco embandeirado
Quer margem de folha, prumo, largo
Quer vastidão, quer azul, quer água
Rumar sem rodeios
Enfim e então
Somente e apenas
Tão desatracado
A Serenidade, Ana Hatherly
A Serenidade
Não falo da serenidade olímpica dos deuses, da sua impavidez e imperturbabilidade, falo da serenidade que o homem pode atingir reconhecendo que se todas as suas certezas são susceptíveis de ser alteradas, o seu erro não será eterno (tão pouco seremos eternamente homens). Não falo da insensibilidade ou do alheamento, falo do mergulho em todas as aparências até ao ponto em que elas se fundem numa só. Falo da serenidade perante o erro e da serenidade perante toda a certeza, não falo da indiferença, falo da calma desapaixonada. Falo da serenidade que descobre os limites do próprio mal: quanto mais mal mais mal, até que há-de anular-se (tudo o que experimentamos tem limites e tudo serve para tudo transformar). Falo da serenidade que permite reconhecer em cada um o assoprador da forja sobre a qual se informa o metal candente que ao mesmo tempo é a mão que molda, o martelo que o quebra, o fogo que o queima e a casa do forjador. Falo da serenidade nascida da paz que um máximo de consciência traz consigo, o que permite sair para fora da angústia da solidão, do amor egoísta, do conceito inabalável, da moral autoritária, para fora de tudo o que limita, constrange, incompreende e separa. Falo da serenidade perante a vida e perante a morte, a que acredita no desígnio transcendente da metamorfose, a que considera o homem um ponto de confluência de vários reinos mas que é em si mesmo um curso e que portanto progredirá. Falo da serenidade que não é renúncia à felicidade mas o caminho para a alegria, a superação de todos os desejos num único: nada desejar por só desejar tudo.
Não poderemos evitar o desejo, porque o homem é ele próprio a forma do desejo, de um desejo, uma alta manifestação da vontade, humana ou divina, e o desejo é o impulso emanando do ritmo espiritual, mas o que poderemos tentar vencer são os desejos paixões da alma que nos conduzem à angústia e ao enojo, nojo ainda no sentido de luto perante uma morte que não é a metamorfose desejada, que é destruição mimética, um mimodrama em que em vez de actores nos fazemos pantomimos.
Mas como é que se pode permanecer sereno perante a fealdade, o embuste, a deturpação que se tornam humilhantes para o homem e o atiram para o desamparo do desencontro, do desentendimento, para a solidão e para o medo? Como é que se poderá permanecer sereno perante o trágico da existência?
Crendo e querendo.
Todos os credos ensinam a confiança na sabedoria duma determinação superior, todos os credos ensinam que cada um tem em si todos os meios para contribuir para a sua perfeição e para a perfeição geral. Todos os credos ensinam a serenidade, assim queiramos aceitar que a alegria está ligada à paz, que mais que um sentimento é uma forma superior de vivência, e que todos fazendo parte da economia universal, participaremos com toda a certeza da divina geometria do equilíbrio.
Então teremos ultrapassado todos os credos: teremos atingido a Alegria.
Ana Hatherly, “Nove Incursões”, Sociedade de Expansão Cultural, Lisboa, 1962, págs. 181-184.
Sophia de Mello Breyner: Pirata
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
Sophia de Mello Breyner
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
Pelo infinito de mim
Passeio pelo infinito de mim, em jeito de anjo.
Toco as estrelas, do mar, pelas ondas do meu sonhar.
Recolho-me, extasiada, no céu azul que vislumbro em luz e paz.
Sou caminhante, e peregrina, das ruas do universo que, em jeito de labirinto, me propõem o desafio de existir, em mágico sentir.
Aos filhos da Serpente, irmãos de serpentio ...
A todos, como serpentino, aqui exorto a que, em si, deixem aflorar o modo e o tempo de como lidarem com o mesmo que sabemos, nesta “hora crítica” - como, com as adequadas letras todas, lhe chamou o mentor deste não-lugar, entregando-o como sempre faz, por certo, “às suas divindades protectoras”.
Aqueles que aqui estão tão presentes, na mesma ausência de o estarem, já isso o fazem (no mesmo não-lugar, se bem que num outro "aqui"), e a que preço o fazem...!
Neles, temos honra sem nome: a de estarmos aqui, compassivos guerreiros de paz - "até"... e se algo haja como um "até" -, e de querermos ser peles desta Serpe, tanto quanto remoção instante e constante dela em nós.
Só assim há Serpente!
Assim só, a somos!
Abraço serpentino!
Calbi arabi
Escrevi isto como recordação permanente
do meu sofrimento.
A minha mão perecerá um dia, mas a grandeza ficará.
do meu sofrimento.
A minha mão perecerá um dia, mas a grandeza ficará.
Palavras do mestre arquitecto ou canteiro árabe gravadas em arábico junto da axila do transepto, lado leste, da Sé Velha de Coimbra.
Calbi arabi.
Canto do Deserto
O meu amor é do deserto, do perto,
Do distante. O meu amor é doce perfume
De laranjeiras e menta
O meu amor é de viajeiras vozes
É borboleta entre rosas
O meu amor é novo e sabe
A bago de romã, a riso
Seio, perfumes de hortelã, fresca ribeira
O meu Amor é:
Sol do meu Sol
Sorriso do meu sorriso
Palavra da minha palavra.
Amor de claro norte azul e morte
Amor lavado em águas de esquecimento
Alimentado a rosas e a jardins;
Deserto sobre fundo deserto
Rasgado de aves atravessando o tempo
Cruzadas aves em riscado céu
O meu amor é rosa de abrir
Flor de me Ser, flor do deserto
De torre de acenar e saudar
Ventos e paisagens em aceno;
Azuis perfumes e cantos.
Quem me acha em amor a dor do mar?
Quem visita o meu lume
E me não queima a asa que chegou:
Duas ditosas borboletas brancas
poisadas no ramo mais alto do limoeiro.
Rosas de chá para Isabel e Luíza
Toalha branca, de novo, para a hora
Em que saudamos nossos Amigos
Perfumes que sentimos na distância.
O meu Amor é um lugar, é um mudar
O meu Amor tem as cores de todas as coisas
Na lembrança; o meu Amor é vasto
De ponta a ponta do céu escreve uma palavra
Que as nuvens desfazem e desaparece no ar
O meu amor é peregrino, sobe ao imo de mim
Desde a terra o sinto subir
Como um cristal ao cimo da monhtanha
de mim, no Castelo de Lume em Luz
Clarão na minha cara, a tua alma!
Para todos os Sepentinos presentes e ausentes.
domingo, 22 de fevereiro de 2009
Nem Sequer Sou Poeira
Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho
Jorge Luis Borges
in "História da Noite"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho
Jorge Luis Borges
in "História da Noite"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
"Índias Espirituais" e Ilusão em Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa
The Nest That Sailed The Sky - Glenn Marshall
The Nest That Sailed The Sky (2nd version - Finished) from Glenn Marshall on Vimeo.
A Todos os Serpentinos,
serpenteando Amor na sagrada pulsão da Vida,
em imobilidade transida no belo,
na mais extreme e incontível alegria!
(Sugiro vivamente que o vídeo seja visionado em modo "full screen")
sábado, 21 de fevereiro de 2009
Somos Silêncio e Saudade
O que fazemos aqui, onde quase não estamos? Alguém pergunta e sabe. Atirada para a montanha a voz há-de em regresso florir uma resposta. Nesse dia será outra Primavera e o mesmo Silêncio nos será resposta. A mesma voz e o mesmo silêncio. Onde a neve era uma túnica branca a entrar no templo da Saudade. Que faziam aqui os lírios e as rosas? Sabiamos que sempre a Saudade era uma via nocturna para a diurna esfera que se erguia e, num dia, desaparecia no mar, e no outro da Terra nasceria a mesma flor em Ouro e Terra. Como anjos que sobrevoam a ponte onde a passagem é um centro, um vórtice; uma funda memória bebida de suas mesmas raízes e banhada em saudades futuras. Acabaremos por atravessar-nos como Luz e saberemos o lugar sem lugar que nos é, para além do que não pode ser dito e em regenerado ânimo, futurando-nos crianças de novo, não seremos nunca, disso, senão a distância! Seria pó de estrelas, o canto. Lento e silencioso deveria ser o salto da bailarina suspensa na vertigem. Por esse fio, esse triz de nos olhamos surpresos de nossa face. Uma caixa de música tocada pelo invizível braço da inexistente forma que somos. Se olharmos para trás, o que vemos então, em invertida imagem? A presença de um nada que nos enche de mundo nadificado e de novo plenamente nascido. Nada vivido no avesso dos espelhos e no eco de uma mesma Voz, oceânica e fundo, como um fundo respirar dos deuses.
Iabel subiu essa ponte, e de cima nos cantou e leu, como se, árvore de invertida forma, descansasse as suas raízes no céu. Sentados sobre a pedra dos dias, tranquilos e olhando o lago, veremos o nada que somos a acenar-nos. Futuro e espera sobre a ponte sobre o mar. Há as gaivotas que ao destino densificam em velados véus de velado rio. Olhemos, serenos, ao longe as cidades e os homens; as guerras e os cansados passos, os saudosos campos de girassóis em febre e delicados nós amarelos, de delicadas pétalas de suave brancura. Já era na voz de Isabel o silêncio do nosso esperar. E sempre um bosque surgirá com corças de leite a subir o verde renovado dos ecoados cavalos azuis e renovados quadros e ondas de sereias vozes, de madrugar auroras de memória em nós.
Havemos de pentear os nossos cabelos e revelar as almas junto ao lago, onde a água em círculos parados nos reflecte em brilhos moventes de luas nascidas. A névoa que se desprende da boca das rosas se abrirá em nevoentos cantos, dorir nossa distância na voz da água a bater na pedra cantante dos dias. Os pássaros carregaram a luz nas suas asas e, nas dos anjos soprarão música, que há-de lembrar-nos que somos esse som, antes e depois de tudo, somos Silêncio, Nada.
Para a Isabel que gosta de me ouvir as Saudades de Ser. Para todos os que na Serpente saudem o dia e nele bebem o que são e somos. Silêncio. Um rio como um espelho. Sabêmo-lo calado gesto de secreto sinal, que virá beber nas águas do rio, como um alado cavalo azul...
Na Noite Terrível
Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ...
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.
Álvaro de Campos,
in "Poemas"
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ...
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.
Álvaro de Campos,
in "Poemas"
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
Seminário "A lei da causalidade ou lei do karma" e Mesa-Redonda inter-religiosa
Seminário "A lei da causalidade ou lei do karma"
Sábado, 21 de Fevereiro, entre as 15h e as 19 h
Local: Sede da União Budista Portuguesa - Calçada da Ajuda, 246 - 1º dtº
Inscrições: 213634363 (da parte da tarde)
www.uniaobudista.pt
Por Paulo Borges
O seminário visa esclarecer a perspectiva budista sobre a lei da causalidade, mais conhecida como lei do karma. Dissipando as mistificações a seu respeito, em que muitas vezes é confundida com uma predeterminação ou destino exterior ao indivíduo, trata-se de compreender a potencialidade criadora de todos os nossos pensamentos, palavras e acções, levando-nos a assumir a responsabilidade por tudo o que somos e nos acontece, bem como pelo que acontece no mundo, na medida em que a chamada realidade é inseparável da nossa forma de a percepcionar e de sobre ela agir.
O seminário destina-se a todos os que queiram aprofundar o seu conhecimento dos fundamentos da via e da ética budista ou simplesmente reflectir sobre os motivos profundos pelos quais nem sempre nos acontece o que desejamos e muitas vezes o que não desejamos.
Contribuição: 20 euros (Estudantes: 15 euros; Sócios da UBP: 15 euros)
Nota: Uma real indisponibilidade financeira não será impeditiva da participação na actividade
EM MARÇO:
A Comunidade Mundial de Meditação Cristã tem o prazer de anunciar:
Domingo, 1 de Março de 2009 – pelas 15,00h.
Mesa-Redonda Inter-Religiosa:
"Mudar o Mundo, Mudar-se a si Próprio: A Contemplação Hoje"
Intervenientes: Prof. Paulo Borges. Sheikh David Munir. Dom Laurence Freeman OSB
Seminário de Nossa Senhora de Fátima –Alfragide
Entrada gratuita
Mais informações:mcristinags@netcabo.pttel:919264907/218488259
mjsalema@gmail.pttel:937030533/2144868407
http://meditacaocrista.weebly.com/index.html
Sábado, 21 de Fevereiro, entre as 15h e as 19 h
Local: Sede da União Budista Portuguesa - Calçada da Ajuda, 246 - 1º dtº
Inscrições: 213634363 (da parte da tarde)
www.uniaobudista.pt
Por Paulo Borges
O seminário visa esclarecer a perspectiva budista sobre a lei da causalidade, mais conhecida como lei do karma. Dissipando as mistificações a seu respeito, em que muitas vezes é confundida com uma predeterminação ou destino exterior ao indivíduo, trata-se de compreender a potencialidade criadora de todos os nossos pensamentos, palavras e acções, levando-nos a assumir a responsabilidade por tudo o que somos e nos acontece, bem como pelo que acontece no mundo, na medida em que a chamada realidade é inseparável da nossa forma de a percepcionar e de sobre ela agir.
O seminário destina-se a todos os que queiram aprofundar o seu conhecimento dos fundamentos da via e da ética budista ou simplesmente reflectir sobre os motivos profundos pelos quais nem sempre nos acontece o que desejamos e muitas vezes o que não desejamos.
Contribuição: 20 euros (Estudantes: 15 euros; Sócios da UBP: 15 euros)
Nota: Uma real indisponibilidade financeira não será impeditiva da participação na actividade
EM MARÇO:
A Comunidade Mundial de Meditação Cristã tem o prazer de anunciar:
Domingo, 1 de Março de 2009 – pelas 15,00h.
Mesa-Redonda Inter-Religiosa:
"Mudar o Mundo, Mudar-se a si Próprio: A Contemplação Hoje"
Intervenientes: Prof. Paulo Borges. Sheikh David Munir. Dom Laurence Freeman OSB
Seminário de Nossa Senhora de Fátima –Alfragide
Entrada gratuita
Mais informações:mcristinags@netcabo.pttel:919264907/218488259
mjsalema@gmail.pttel:937030533/2144868407
http://meditacaocrista.weebly.com/index.html
Psycheia | borboleta de si
Jacek Yerka, "Pearl Harbor"
Psycheia | borboleta de si
A Isabel Santiago
Qual corola em flor viva de si, abrindo-se
em carne nas pétalas de seu marfir, pelos lábios
da origem deste à luz em ler, como quem a desse
à treva que te quase deste ainda, agora que ausente.
Meus olhos, sem sequer pálpebras há tanto,
da saudade tanta, de não saudir, nem já os visita
a dor de doer, que em mim já não cabe –
ao olhar, tão-só aflora a fonte doce do lacrimescer saudoso.
Na lonjura, que de ti vai até ao imo, há uma lâmina
de um só gume (cortou-me de mim):
de longe tomou-te, Isabel, o que para longe te voara.
No vazio de sufoco que é tua não visita, borboleta de si,
a presença que te me furta te me dá mais do que te dei –
dar-te-ei (hei-de aprendê-lo) o que deixei que levasses.
Donis de Frol Guilhade
Fruto de Rilke
Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.
Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.
E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.
Rilke
(Tradução: Augusto de Campos)
quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009
Anunciado
Chamo o anjo guardião
Digo-lhe Ausento-me da tua mira
Sou um sopro de silêncio na sombra
Diz-me Quando luzes não tenho nada a ver
Digo-lhe Ausento-me da tua mira
Sou um sopro de silêncio na sombra
Diz-me Quando luzes não tenho nada a ver
Diálogos I
“Escaping from reality”, Rui Fernandes, professor de Artes na ESEN
“Penso que os lugares naturais são animais como nós. A torrente que desce ou a margem que escava são semelhantes à ave que plana à espera no ar ou no burro que trepa hesitando. As abóbadas das cavernas-sombras estão cheias das figuras que as constelações compõem.” Pascal Quignard, Terraço em Roma
É Meaume quem o diz e disse-mo a mim quando atravessava o corredor para ir ter com quem se atrasa a chegar. O livro do Quignard é também a paisagem onde poisam as tuas aves azuis. O céu onde pões a esvoaçar o que geras com movimentos desequilibrados, porque ainda não consegues a harmonia do que sobe acima de ti. As tuas visões planam por cima de ti à espera do ar. Não muito longe, um anjo de Rilke ufana as suas asas e gera em mim a mesma mancha, um rasgão e uma abertura. No corredor, a parede onde encontro quietas as tuas paisagens parecem-me cavernas-sombras de onde saem as criaturas que só existem enquanto te oiço falar. Tu dizes “peixes”, eu digo “anjos”. Tu dizes “mostro-te esta fotografia”, eu “contemplo uma gravura que partilhas e concebes com Meaume”.
“É a matéria que imagina o céu. Depois, é o céu que imagina a vida. Depois, é a vida que imagina a natureza. Depois, a natureza cresce e mostra-se sob diferentes formas que concebe muito menos do que inventa revolvendo o espaço. Os nossos corpos são uma dessas imagens que a natureza tentou junto da luz.” Pascal Quignard, Terraço em Roma
Em particular esta, mas é uma gravura e não uma fotografia de onde, como na chapa originária, sobressai como da massa esmagada pelo buril do gravador, também chamada “berço”, as paisagens antes da predefinição das figuras. Esta gravura é uma tentativa da natureza absorvida pela luz e não consumida pelo tempo. É a matéria que inventa o que o nosso olhar não vê. O céu. É a distância que gera o que não morre. A vida. É a vida que discrimina o que morre e muda. A natureza. Os movimentos seguem-se naturalmente da mudança e da revolta. Ter que nascer e mudar, ter que perecer. Ter que conseguir perpassar por entre os movimentos que reproduzem as figuras: transfigurar a matéria em luz. O corpo. Pode o corpo ser o berço do que dorme em nós até ao despertar vivíssimo do sonho? Fixo o olhar na gravura e nela está uma matéria esmagada que abre passagem ao que a matéria sonha e pode vir a ser pertença do céu, da vida, da natureza, do espaço, da clarividência. Não-lugar onde tudo se co-pertence e é em uníssono vibrar. A luz. Recebes, quando olhas, os fragmentos que acordam da descensão encadeada do gerar da matéria à figura. Nas paredes do teu ver-sonhando, numa espécie de olhar sonambólico que te arrasta para o que ainda não acordou, se a matéria for a caverna, a tua visão é o útero onde as formas, antes da figuras, se desprendem de uma distância que as torna irreconhecíveis para não dizer invisíveis e são como o alvo do Amor. No útero do teu olhar as imagens que permanecem no espírito, como as imagens do Amor são, sem rosto e sem nome, indefiníveis e irresistíveis, e parece que te perseguem na consciência e na inconsciência para te lançar para fora do mundo. A tua visão é assaltada pelo que vem de antes do tempo de haver mundo. Por isso, como Meaume, o que começava por desenhar os motivos em papel azul, o que via os cardos que levantavam no ar a sua cabeça azul, o que sabia que as borboletas azuis, mesmo poisadas, envelheciam, tu conduzes-nos à caverna antes da História e nas paredes azuis do céu revelas o mais vivo, o mais natural, o mais luminoso, para não dizer o mais numinoso, o mais numenal. Há um momento em que me pergunto se não é Deus que de mãos azuis me vem devolver o céu, uma parede onde a minha sombra fosse azul, o meu movimento não deixasse vinco, onde as paisagens ficassem mais nuas e um deserto fosse a última gravura antes do apocalipse, e múltiplos grãos de areia, trazidos no bico de gaivotas envelhecidas, esmagados recuperassem o berço onde ficou suspenso o compossível (?). O possível parece-me próximo, o impossível demasiado doloroso para se repetir.
“ Há no mundo lugares que datam da origem. Esse espaços são instantes onde o outrora se crispou. Tudo conflui neles com a antiga raiva. É o rosto de Deus. É o rasto da força primordial mais imensa que o homem, mais vasta que a natureza, mais enérgica que a vida, tão absorvente como o sistema do céu que precede os três.” Pascal Quignard, Terraço em Roma
Demoro no corredor. Não há afinal quem me venha buscar. O meu lugar é uma fissura crispada da origem e nela entrevejo o que não chegou senão a ser um instante para que confluiu a força primeva, que recua do homem, pela natureza até à vida, até antes da vida, ao céu. Esta gravura com que me visitas no não-lugar não é um motivo consciente para ti, porque tu não comunicas directamente, como Meaume, o personagem, o que vês. A visão vem mediada pela tradução. Tu és um tradutor, não de línguas, mas de seres. As formas são uma reminiscência do informe, o movimento do que está quieto, o poder da força. Não só antes da forma, como antes da cor. O azul é uma súbita metamorfose do grão da chapa original em que Deus gravou, a negro e na sombra, um sonho que teve no corpo do mundo por haver. Tu traduzes o movimento das mãos de Deus a esmagar o grão. O que se desprende desse movimento não tem nome. É uma visita atordoada que se aloja no coração e pulsa nele como um Deus que arde em mim o seu incontido desejo de criar.
Para agradecer a todos os que me dão a ver o que a escrita nunca pressentiria sem a visão rasgada pela dedicação do olhar ao informe, ao deveniente, ao ruinoso, ao instante, ao eterno, ao eterno-instante e ao instante-eterno. Ao Rui que faz o favor de ser meu amigo e me revela o que vê de um mundo a que pertenço por não ser deste. Aos que como ele trazem até mim o que as palavras desconhecem, eu desconheço e com quem vou balbuciando, como na infância. Esse ver que desencadeia o retorno e o avanço sobre o indefinido que nos pulsa suscita em mim uma muito, muito grande gratidão. Que a colham nas minhas tentativas e errâncias para dentro e fora, entre fora e dentro do que vejo na linguagem. Ao Lapdrey que partilha as minhas visões brancas, as noites brancas também. À Saudades que me canta nessas noites longas de visões e vazios.
“Penso que os lugares naturais são animais como nós. A torrente que desce ou a margem que escava são semelhantes à ave que plana à espera no ar ou no burro que trepa hesitando. As abóbadas das cavernas-sombras estão cheias das figuras que as constelações compõem.” Pascal Quignard, Terraço em Roma
É Meaume quem o diz e disse-mo a mim quando atravessava o corredor para ir ter com quem se atrasa a chegar. O livro do Quignard é também a paisagem onde poisam as tuas aves azuis. O céu onde pões a esvoaçar o que geras com movimentos desequilibrados, porque ainda não consegues a harmonia do que sobe acima de ti. As tuas visões planam por cima de ti à espera do ar. Não muito longe, um anjo de Rilke ufana as suas asas e gera em mim a mesma mancha, um rasgão e uma abertura. No corredor, a parede onde encontro quietas as tuas paisagens parecem-me cavernas-sombras de onde saem as criaturas que só existem enquanto te oiço falar. Tu dizes “peixes”, eu digo “anjos”. Tu dizes “mostro-te esta fotografia”, eu “contemplo uma gravura que partilhas e concebes com Meaume”.
“É a matéria que imagina o céu. Depois, é o céu que imagina a vida. Depois, é a vida que imagina a natureza. Depois, a natureza cresce e mostra-se sob diferentes formas que concebe muito menos do que inventa revolvendo o espaço. Os nossos corpos são uma dessas imagens que a natureza tentou junto da luz.” Pascal Quignard, Terraço em Roma
Em particular esta, mas é uma gravura e não uma fotografia de onde, como na chapa originária, sobressai como da massa esmagada pelo buril do gravador, também chamada “berço”, as paisagens antes da predefinição das figuras. Esta gravura é uma tentativa da natureza absorvida pela luz e não consumida pelo tempo. É a matéria que inventa o que o nosso olhar não vê. O céu. É a distância que gera o que não morre. A vida. É a vida que discrimina o que morre e muda. A natureza. Os movimentos seguem-se naturalmente da mudança e da revolta. Ter que nascer e mudar, ter que perecer. Ter que conseguir perpassar por entre os movimentos que reproduzem as figuras: transfigurar a matéria em luz. O corpo. Pode o corpo ser o berço do que dorme em nós até ao despertar vivíssimo do sonho? Fixo o olhar na gravura e nela está uma matéria esmagada que abre passagem ao que a matéria sonha e pode vir a ser pertença do céu, da vida, da natureza, do espaço, da clarividência. Não-lugar onde tudo se co-pertence e é em uníssono vibrar. A luz. Recebes, quando olhas, os fragmentos que acordam da descensão encadeada do gerar da matéria à figura. Nas paredes do teu ver-sonhando, numa espécie de olhar sonambólico que te arrasta para o que ainda não acordou, se a matéria for a caverna, a tua visão é o útero onde as formas, antes da figuras, se desprendem de uma distância que as torna irreconhecíveis para não dizer invisíveis e são como o alvo do Amor. No útero do teu olhar as imagens que permanecem no espírito, como as imagens do Amor são, sem rosto e sem nome, indefiníveis e irresistíveis, e parece que te perseguem na consciência e na inconsciência para te lançar para fora do mundo. A tua visão é assaltada pelo que vem de antes do tempo de haver mundo. Por isso, como Meaume, o que começava por desenhar os motivos em papel azul, o que via os cardos que levantavam no ar a sua cabeça azul, o que sabia que as borboletas azuis, mesmo poisadas, envelheciam, tu conduzes-nos à caverna antes da História e nas paredes azuis do céu revelas o mais vivo, o mais natural, o mais luminoso, para não dizer o mais numinoso, o mais numenal. Há um momento em que me pergunto se não é Deus que de mãos azuis me vem devolver o céu, uma parede onde a minha sombra fosse azul, o meu movimento não deixasse vinco, onde as paisagens ficassem mais nuas e um deserto fosse a última gravura antes do apocalipse, e múltiplos grãos de areia, trazidos no bico de gaivotas envelhecidas, esmagados recuperassem o berço onde ficou suspenso o compossível (?). O possível parece-me próximo, o impossível demasiado doloroso para se repetir.
“ Há no mundo lugares que datam da origem. Esse espaços são instantes onde o outrora se crispou. Tudo conflui neles com a antiga raiva. É o rosto de Deus. É o rasto da força primordial mais imensa que o homem, mais vasta que a natureza, mais enérgica que a vida, tão absorvente como o sistema do céu que precede os três.” Pascal Quignard, Terraço em Roma
Demoro no corredor. Não há afinal quem me venha buscar. O meu lugar é uma fissura crispada da origem e nela entrevejo o que não chegou senão a ser um instante para que confluiu a força primeva, que recua do homem, pela natureza até à vida, até antes da vida, ao céu. Esta gravura com que me visitas no não-lugar não é um motivo consciente para ti, porque tu não comunicas directamente, como Meaume, o personagem, o que vês. A visão vem mediada pela tradução. Tu és um tradutor, não de línguas, mas de seres. As formas são uma reminiscência do informe, o movimento do que está quieto, o poder da força. Não só antes da forma, como antes da cor. O azul é uma súbita metamorfose do grão da chapa original em que Deus gravou, a negro e na sombra, um sonho que teve no corpo do mundo por haver. Tu traduzes o movimento das mãos de Deus a esmagar o grão. O que se desprende desse movimento não tem nome. É uma visita atordoada que se aloja no coração e pulsa nele como um Deus que arde em mim o seu incontido desejo de criar.
Para agradecer a todos os que me dão a ver o que a escrita nunca pressentiria sem a visão rasgada pela dedicação do olhar ao informe, ao deveniente, ao ruinoso, ao instante, ao eterno, ao eterno-instante e ao instante-eterno. Ao Rui que faz o favor de ser meu amigo e me revela o que vê de um mundo a que pertenço por não ser deste. Aos que como ele trazem até mim o que as palavras desconhecem, eu desconheço e com quem vou balbuciando, como na infância. Esse ver que desencadeia o retorno e o avanço sobre o indefinido que nos pulsa suscita em mim uma muito, muito grande gratidão. Que a colham nas minhas tentativas e errâncias para dentro e fora, entre fora e dentro do que vejo na linguagem. Ao Lapdrey que partilha as minhas visões brancas, as noites brancas também. À Saudades que me canta nessas noites longas de visões e vazios.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
Ecos da Holanda
Em resposta à exortação de Lapdrey a que ecoasse aqui o diálogo entre Pessoa e Cioran, publico o início de uma das conferências que recentemente proferi na Universidade de Groningen.
Num alfabarrista da cidade encontrei a tradução neerlandesa do São Jerónimo e a Trovoada, de Pascoaes (1939)! Já em Amesterdão, acabei por não encontrar a casa de Espinosa - disseram-me que ficava um pouco fora da cidade - , mas comovi-me até às lágrimas com a atmosfera da imponente Sinagoga Portuguesa, ainda em funções, em particular ao escutar um concerto de música hebraica com duas vozes masculinas. A comoção prosseguiu diante dos primeiros quadros de Rembrandt, no Rijksmuseum.
Sinto ser a Hora de nos abrirmos a todas as culturas e de sermos verdadeiramente o "Homem de todo o Mundo" de que Vieira falava, falando do português. E, nisso, deixarmos em todo o mundo as sementes da nossa divina loucura. Foi o que tentei fazer, acendendo na Holanda e em novos amigos alemães, polacos e franceses desejos de conhecer Antero, Bruno, Pascoaes, Sá-Carneiro, Pessoa, Raul Leal, Agostinho... Alguns serão colaboradores da "Nova Águia" e, no meio da forte e boa cerveja holandesa, assomou-me a ideia de organizar na Faculdade de Letras um seminário com jovens investigadores estrangeiros sobre Fernando Pessoa. Já tem data marcada: 2 de Junho. Em pequeno estremecia ao passar por pontes e sonhava construí-las. Hoje sinto que nada somos senão ponte, suspensos entre duas margens do que se não sabe, por mais que se pressinta. Ponte-Saudade.
Abraços
Emil Cioran e Fernando Pessoa: salto no absoluto e "fuga para fora de Deus"
Fernando Pessoa e Emil Cioran vivem, de modo diverso, aquela que se pode considerar a mais ousada e radical aventura, a da transcensão de todos os limites do pensamento, da vida e da existência. Pensadores e escritores provenientes da periferia da cultura europeia dominante e agudamente conscientes de viverem um fim de ciclo da civilização dela nascida, a sua força brota também do ímpeto de libertação dos ídolos dessa mesma cultura e civilização, as normas do que se supõe mentalmente correcto, sem que se detenham perante o suposto limite do humano, numa titânica e iconoclasta hybris de superação de tudo, do sujeito e de si mesma, numa nostalgia ou saudade violenta do incondicionado, pressentido e experienciado como instância irredutível à constituição do sujeito no mundo e fundo sem fundo de toda a experiência possível.
Este ímpeto acompanha-se em ambos de uma exuberante mestria literária, que em Pessoa se exerce na tão portuguesmente barroca e poética proliferação de formas de si como outro – os heterónimos - , outros tantos ensaios de fuga à prisão do nascimento, da individuação e à suposta normalidade monopsíquica daí decorrente [1], enquanto em Cioran o génio literário serve um obsessivo, detalhado e minucioso ajuste de contas com todas as ficções da consciência, da história e da cultura, escalpelizadas e reduzidas a cinzas pelo cirúrgico e cáustico bisturi do aforismo e do pensamento incendiado na veemência da insónia, da febre e da blasfémia, mas também do entusiasmo extático e transfigurador.
Não deixa de ser curioso que a comparação entre Pessoa e Cioran possa reconduzir aos contrastes da alma ibérica, pois se no primeiro, sobretudo no ortónimo e em Bernardo Soares, tão diversos da serenidade pensada do “mestre” Caeiro e da melancólica sabedoria da renúncia em Ricardo Reis, predomina a tristeza passiva e dissolvente da saudade que impregna muita da cultura portuguesa, mareada na regressão ao Caos nocturno e oceânico do antes de ser, já no segundo rebenta a paixão sem esperança do “Espanhol que gostaria de ter sido” [2], a explosão de um cinismo místico de cuja excessividade e intensidade apocalíptica só se aproxima, entre os heterónimos pessoanos, o dionisíaco frenesim de “ser e sentir tudo de todas as maneiras”, de Álvaro de Campos.
[1] “Sou um evadido. / Logo que nasci / Fecharam-me em mim, / Ah, mas eu fugi” – Fernando Pessoa, Obras, I, Porto, Lello, 1986, p.316.
[2] “Tour à tour, j’ai adoré et exécré nombre de peuples; - jamais il ne me vint à l’esprit de renier l’Espagnol que j’eusse aimé être…” – Emil Cioran, Syllogismes de l’Amertume, Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.772. Cf. também, entre muitos outros lugares: “Le mérite de l’Espagne est non seulement d’avoir cultivé l’excessif et l’insensé, mais aussi d’avoir démontré que le vertige est le climat normal de l’homme. Quoi de plus naturel que la présence des mystiques chez ce peuple qui a supprimé la distance entre le ciel et la terre?” – Des Larmes et des Saints, Ibid., p. 304.
Num alfabarrista da cidade encontrei a tradução neerlandesa do São Jerónimo e a Trovoada, de Pascoaes (1939)! Já em Amesterdão, acabei por não encontrar a casa de Espinosa - disseram-me que ficava um pouco fora da cidade - , mas comovi-me até às lágrimas com a atmosfera da imponente Sinagoga Portuguesa, ainda em funções, em particular ao escutar um concerto de música hebraica com duas vozes masculinas. A comoção prosseguiu diante dos primeiros quadros de Rembrandt, no Rijksmuseum.
Sinto ser a Hora de nos abrirmos a todas as culturas e de sermos verdadeiramente o "Homem de todo o Mundo" de que Vieira falava, falando do português. E, nisso, deixarmos em todo o mundo as sementes da nossa divina loucura. Foi o que tentei fazer, acendendo na Holanda e em novos amigos alemães, polacos e franceses desejos de conhecer Antero, Bruno, Pascoaes, Sá-Carneiro, Pessoa, Raul Leal, Agostinho... Alguns serão colaboradores da "Nova Águia" e, no meio da forte e boa cerveja holandesa, assomou-me a ideia de organizar na Faculdade de Letras um seminário com jovens investigadores estrangeiros sobre Fernando Pessoa. Já tem data marcada: 2 de Junho. Em pequeno estremecia ao passar por pontes e sonhava construí-las. Hoje sinto que nada somos senão ponte, suspensos entre duas margens do que se não sabe, por mais que se pressinta. Ponte-Saudade.
Abraços
Emil Cioran e Fernando Pessoa: salto no absoluto e "fuga para fora de Deus"
Fernando Pessoa e Emil Cioran vivem, de modo diverso, aquela que se pode considerar a mais ousada e radical aventura, a da transcensão de todos os limites do pensamento, da vida e da existência. Pensadores e escritores provenientes da periferia da cultura europeia dominante e agudamente conscientes de viverem um fim de ciclo da civilização dela nascida, a sua força brota também do ímpeto de libertação dos ídolos dessa mesma cultura e civilização, as normas do que se supõe mentalmente correcto, sem que se detenham perante o suposto limite do humano, numa titânica e iconoclasta hybris de superação de tudo, do sujeito e de si mesma, numa nostalgia ou saudade violenta do incondicionado, pressentido e experienciado como instância irredutível à constituição do sujeito no mundo e fundo sem fundo de toda a experiência possível.
Este ímpeto acompanha-se em ambos de uma exuberante mestria literária, que em Pessoa se exerce na tão portuguesmente barroca e poética proliferação de formas de si como outro – os heterónimos - , outros tantos ensaios de fuga à prisão do nascimento, da individuação e à suposta normalidade monopsíquica daí decorrente [1], enquanto em Cioran o génio literário serve um obsessivo, detalhado e minucioso ajuste de contas com todas as ficções da consciência, da história e da cultura, escalpelizadas e reduzidas a cinzas pelo cirúrgico e cáustico bisturi do aforismo e do pensamento incendiado na veemência da insónia, da febre e da blasfémia, mas também do entusiasmo extático e transfigurador.
Não deixa de ser curioso que a comparação entre Pessoa e Cioran possa reconduzir aos contrastes da alma ibérica, pois se no primeiro, sobretudo no ortónimo e em Bernardo Soares, tão diversos da serenidade pensada do “mestre” Caeiro e da melancólica sabedoria da renúncia em Ricardo Reis, predomina a tristeza passiva e dissolvente da saudade que impregna muita da cultura portuguesa, mareada na regressão ao Caos nocturno e oceânico do antes de ser, já no segundo rebenta a paixão sem esperança do “Espanhol que gostaria de ter sido” [2], a explosão de um cinismo místico de cuja excessividade e intensidade apocalíptica só se aproxima, entre os heterónimos pessoanos, o dionisíaco frenesim de “ser e sentir tudo de todas as maneiras”, de Álvaro de Campos.
[1] “Sou um evadido. / Logo que nasci / Fecharam-me em mim, / Ah, mas eu fugi” – Fernando Pessoa, Obras, I, Porto, Lello, 1986, p.316.
[2] “Tour à tour, j’ai adoré et exécré nombre de peuples; - jamais il ne me vint à l’esprit de renier l’Espagnol que j’eusse aimé être…” – Emil Cioran, Syllogismes de l’Amertume, Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.772. Cf. também, entre muitos outros lugares: “Le mérite de l’Espagne est non seulement d’avoir cultivé l’excessif et l’insensé, mais aussi d’avoir démontré que le vertige est le climat normal de l’homme. Quoi de plus naturel que la présence des mystiques chez ce peuple qui a supprimé la distance entre le ciel et la terre?” – Des Larmes et des Saints, Ibid., p. 304.
Saudade apenas (ou uma "carta de amor" bastante ridícula)
Saudade de te amar
Saudade apenas
de tanto que te amei, tão breve
o tempo, mas tanto
espanto, de crer
querer-te, quase fome
Saudade de teus braços, só
sentidos no sono, sem sono
Saudade de voar-te na
minha noite, estrelada
Espada, lágrimas
sem dor,
saudade da entrega
plena, ousada
Saudade sem pena,
de crer num fado
apagado, breve amanhecer
lilás, riscado
partiu-se a lâmina num grito
de verão
anima, mordaz, ferro
rasgou, ardeu, carvão, sobrou
Saudade de ti
da neve, sargaço tempestade
Calor, carícia âmago beijo
Imaginado, abraço
no caldo da eternidade
Saudade até
da queda
antes da torre, menagem
antes do frio, potestade
selvagem
o ódio, saudade
Já não te amo. Isto
que sinto agora,
Saudade
apenas
de ti
Saudade apenas
de tanto que te amei, tão breve
o tempo, mas tanto
espanto, de crer
querer-te, quase fome
Saudade de teus braços, só
sentidos no sono, sem sono
Saudade de voar-te na
minha noite, estrelada
Espada, lágrimas
sem dor,
saudade da entrega
plena, ousada
Saudade sem pena,
de crer num fado
apagado, breve amanhecer
lilás, riscado
partiu-se a lâmina num grito
de verão
anima, mordaz, ferro
rasgou, ardeu, carvão, sobrou
Saudade de ti
da neve, sargaço tempestade
Calor, carícia âmago beijo
Imaginado, abraço
no caldo da eternidade
Saudade até
da queda
antes da torre, menagem
antes do frio, potestade
selvagem
o ódio, saudade
Já não te amo. Isto
que sinto agora,
Saudade
apenas
de ti
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Uma "carta de Amor" (não-ridícula)
"Looking For Your Face"
From the beginning of my life
I have been looking for your face
but today I have seen it.
Today I have seen
the charm, the beauty,
the unfathomable grace
of the face
that I was looking for.
Today I have found you
and those who laughed
and scorned me yesterday
are sorry that they were not looking
as I did.
I am bewildered by the magnificence
of your beauty
and wish to see you with a hundred eyes.
My heart has burned with passion
and has searched forever
for this wondrous beauty
that I now behold.
I am ashamed
to call this love human
and afraid of God
to call it divine.
Your fragrant breath
like the morning breeze
has come to the stillness of the garden
You have breathed new life into me
I have become your sunshine
and also your shadow.
My soul is screaming in ecstasy
Every fiber of my being
is in love with you
Your effulgence
has lit a fire in my heart
and you have made radiant
for me
the earth and sky.
My arrow of love
has arrived at the target
I am in the house of mercy
and my heart
is a place of prayer.
Rumi (1207–1273)
sábado, 14 de fevereiro de 2009
21 de Fevereiro de 2009 - ÚLTIMAS INSCRIÇÕES
Formadora: Joana Sousa
Consulte o programa e a localização do Centro Immensus Saberes.
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
Nem Sempre Sou Igual no que Digo e Escrevo
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...
Alberto Caeiro
in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXIX"
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...
Alberto Caeiro
in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXIX"
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
Todas ridículas...
"Terrível Bebé:gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo e o Bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco..."
F. Pessoa
"Minha Querida Kitty: e cheguei são e salvo, excepto pelo vazio do meu coração, que tu provocaste, como uma querida e encantadora desmazelada que és. E agora minha querida, querida rapariga! Deixa-me assegurar-te da mais verdadeira amizade por ti..."
Laurence Sterne
"Minha gentil: quem me dera ser uma ave: "arrancaria uma pena às minhas asas e, voando do céu, embebê-la-ia na tinta da aurora, naquela tinta vermelha com que os anjos escrevem cartinhas de namoro às estrelas...Quem me dera escrever-te com uma pena assim, e com uma tinta igual..."
António Nobre
Se não fossem... não seriam... de amor.... ridículas...
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
A Bailarina Cega II
A revisitação do mais puro amor num jardim de Inverno, junto às folhas emurchecidas dos livros e versos
Se afasta o rosto é para não mostrar o teu que no seu está, como no fundo de um lago parado, ternamente desenhado; se mostra leveza é para repousar no seu enlevo o teu cansaço triste; se abre os braços é porque dança ainda a clarividência de um sentimento absoluto na asa da borboleta que nasceu no instante em que num só e único olhar te selou em luz e Amar; se para outro tempo se move e com ele se comove, a bailarina cega, é porque contigo se dirige e expande para todos os ramos dourados da eternidade. E se ouvem, no mesmo silêncio que a ti te faz semear e a ela recolher, em botão as flores de amor, é porque uma mesma voz vos reúne no semear e no gerar. Enquanto semeias no seu corpo as flores, margaridas simples, sem outra cor para além do calor, escutam:
Se afasta o rosto é para não mostrar o teu que no seu está, como no fundo de um lago parado, ternamente desenhado; se mostra leveza é para repousar no seu enlevo o teu cansaço triste; se abre os braços é porque dança ainda a clarividência de um sentimento absoluto na asa da borboleta que nasceu no instante em que num só e único olhar te selou em luz e Amar; se para outro tempo se move e com ele se comove, a bailarina cega, é porque contigo se dirige e expande para todos os ramos dourados da eternidade. E se ouvem, no mesmo silêncio que a ti te faz semear e a ela recolher, em botão as flores de amor, é porque uma mesma voz vos reúne no semear e no gerar. Enquanto semeias no seu corpo as flores, margaridas simples, sem outra cor para além do calor, escutam:
Oh, que atónitos olhos nos contemplam
Nos sorriem, nos dizem: sossegai!
Românticos amantes, viajantes eternos,
Olham por nós na hora que se esvai! (Natércia Freire)
A bailarina cega não sabe, depois de teu secreto aproximar e do teu corpo em seus ramos roçagar, onde ébria de amor deixar seus pés poisar. E o seu sorriso abre em flor, aflora ao corpo, coberta de parras de uma uva pura e branca no seu viçar, é para de ti receber o vinho com que, mulher feita taça a tornas, e a ela como Diónisos te consagrares. Aberto o rosto pelo sorriso, nele corre o teu néctar e o teu fulgor e só nele, então, transcorre o sentimento canto e o encanto do pássaro que vem do teu chamar e edénico modo de a tocar. Repete quando sorri, te sorri, em asas de pássaro, este outro cantar:
Meu rosto, no teu de horizontes, meu corpo, no teu, a flutuar. (Natércia Freire)
E o mar há-de vir para nas vagas brancas de espuma e fúria vos enlaçar. Nas tuas mãos a coroa de flores no corpo abertas e floridas, no seu corpo um só grito para vos confundir às sagradas e antigas águas.
Foi quase morta que, nas margens da sede, jardineiro cego, com um braço em arco, no abraço, à morte uma vez mais a roubaste. O Amor é o dilúvio do tempo. E são ondas onde em canto a enrolas. O Amor é um passo de dança para o mais dentro e o mais fundo do mar. É nas dobras das ondas que a bailarina esconde os sons do teu nome repetido nas vibrantes forças do seu corpo atravessando o vazio do ar.
As ondas são outras bailarinas brancas de braços no ar que ao mais fundo do fundo te vão como a ti, jardineiro cego, visitar. O mar é um jardim vibrante de flores fugazes de luz. É à tua sombra que a bailarina enfeitiçada de braços no ar se vai entregar. Só uma sombra a consegue agarrar…a uma bailarina de braços esticados que vem, do mais remoto tempo, caindo devagar. E tu, estendido em sombra em seu redor vens, com o convite nas mãos e com o canto do pássaro, convidar para em amor dançar. A bailarina veste-se de plumas e corre para te aceitar. Da árvore do paraíso se irão, depois da dança, recordar. Para lá, bailarina e jardineiro cegos, inocentes e dolentes, haverão de regressar. É de lá que vem a unidade que os reúne no dilúvio e no reconhecimento profundo que vem de um certo olhar fechado pelo sentir silente do amar que os arrasta como flores de memória para a espuma cantante do mar.
Depois virá o tempo: a bailarina tomará a palavra para contar e o jardineiro o seu corpo para a evocar num eterno passo de dança nas margens de uma permanente lembrança. O que o jardineiro sabe é que a memória é um jardim povoado por estátuas em estado de dança. Que a lembrança é uma bailarina perdida na duração. É por isso que mesmo distante, o jardineiro a vem, nas margens do mar e dos livros, buscar e salvar. Abraçar. Só o Amor colhe flores no Inverno. Só o Amor, esse jardineiro cego, semeia fores de memória junto às estátuas que em pedra e mármore querem com ele dançar…
paleta de cores para um retrato
Tempo frio
Cinzento
No balcão de zinco da Taberna
Um copo de aguardente
Com reverberações azuis
Afoga
Uma cândida amêndoa
Cor-de-rosa
Cinzento
No balcão de zinco da Taberna
Um copo de aguardente
Com reverberações azuis
Afoga
Uma cândida amêndoa
Cor-de-rosa
Poema de amor
Vasa-me os olhos e eu poderei ver-te
Destrói-me os ouvidos e eu poderei ouvir-te
Mesmo sem pés poderei chegar a ti
Mesmo sem boca poderei conjurar-te
Corta-me os braços adorar-te-ei
Com os braços com as mãos
No coração latejará o meu cérebro
E se incendiares o meu cérebro
Guardar-te-ei ainda no meu sangue
Rainer Maria Rilke
(1875 - 1926)
Destrói-me os ouvidos e eu poderei ouvir-te
Mesmo sem pés poderei chegar a ti
Mesmo sem boca poderei conjurar-te
Corta-me os braços adorar-te-ei
Com os braços com as mãos
No coração latejará o meu cérebro
E se incendiares o meu cérebro
Guardar-te-ei ainda no meu sangue
Rainer Maria Rilke
(1875 - 1926)
Cioran e Pessoa: o levantar-se de haver nascido (em homenagem ao belo aforismo da Luísa)
"Beyond-God and Beyond-Being: Uncreated and Saudade in Fernando Pessoa" (11 de Fevereiro; 16:30-18), na Faculdade de Teologia e Estudos Religiosos. Desta é responsável a Joana Serrado.
"Emil Cioran and Fernando Pessoa: the Leap into the Absolute and the Escape Beyond God", no Colóquio 'Leaps' in literature: On Cioran's philosophical ars saltandi - Workshop em Rijksuniversiteit, 13 de Fevereiro, Academiegebouw, Broerstraat 5, room no. 7.
Organizador: Dagmara Kraus
Resumo desta conferência: "We can find in Emil Cioran and Fernando Pessoa a same urge to transcend existence and recover what's before being born. On the basis of that, this paper intends to compare Cioran's leap in the absolute, connected with the experience of ecstasy and trans-figuration, and Pessoa's evasion from God, leading to be free from being and not-being."
Que Deus me perdoe! E a Maria da Conceição também!
Bill Hicks - Positive Drug Story (Lua Cheia)
"We can explore SPACE, together, both inner and outter, forever, in PEACE"
"Life is a ride..."
"Life is a ride..."
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009
domingo, 8 de fevereiro de 2009
Pela marinha a vender azeite e farinha.
Cantiga de escarnho de Afonso X o sábio
Non me posso pagar tanto
do canto
das aves nen do seu son,
nen d'amor nen de mixon
nen d'armas - ca ei espanto,
por quanto mui perig(o)sas son,
- come dun bon galeon,
que mi alongue muit'aginha
deste demo da campinha
u os alacrães son;
u os alacrães son;
ca dentro no coraçon
senti deles a espinha!
E juro par Deus lo santo
que manto non tragerei nen granhon,
nen terrei d'amor razon
nen d'armas, por que quebranto
e chanto
ven delas toda sazon;
mais tragerei un dormon,
e irei pela marinha
e irei pela marinha
vendend' azeit' e farinha;
e fugirei do poçon
do alacran, ca eu non
lhi sei outra meezinha.
Nen de lançar a tavolado
pagado
non sõo,
se Deus m'ampar,
aqui, nen de bafordar;
e andar de noute armado,
sen gradoo
faço, e a roldar;
ca mais me pago do mar
que de seer cavaleiro;
ca eu foi já marinheiro
e quero-m' ôi-mais guardar
do alacran, e tornar
ao que me foi primeiro.
E direi-vos un recado:
pecado
nunca me pod'enganar
que me faça já falar
en armas, ca non m'é dado
(doado
m'é de as eu razõar,
pois-las non ei a provar);
ante quer' andar sinlheiro
e ir come mercadeiro
algûa terra buscar,
u me non possan culpar
alacran negro nen veiro.
A Senhora Carmen acaba de gravar o seu disco não há muito, tem 82 anos, de Sanguinheda, no Sul da Galiza.
Aqui canta "Na flor dos meus anos"
Aqui canta "Na flor dos meus anos"
Fragrante peugada
Naturalmente dócil, um pasto verde-luxuriante, um toiro. E não poderão ser diferentes as palavras ou pensar num outro qualquer início. Uma Esmeralda em fogo até ao fim de uma consciência ou possível forma de este ser exposto, por estas palavras. Dizer; um esforço… e um campo doirado de Sol e trigo, que o estrídulo das cegarregas levava ao rubro. O bebedoiro da Terra velha. E um toiro, nado e criado na planície ribatejana (de gaiola como um passarinho condenado a divertir a multidão). Foi ímpeto inicial e onda de calor que lhe tapou o entendimento; pronto, já está! Estava na arena… A tremer como varas verdes, olhei à volta; do lado de lá gente, sem acabar... O artista acompanha o seu longo passeio, a plenos pulmões; ilusão da luz, a iluminação e a procura. E nesse toiro, a razão de uma procura. E nesse animal, a minha expressão e humanidade que por um ápice lhe foi concedida, a última vastidão, em impacto. Revejo-o, em uma cigarra feliz, com água limpa de espelhar os olhos, que canta… Depois, um coro de rouxinóis que acompanham Mozart, de mãos dadas, ao último momento deste possível fim.
O mundo oferecer-se-te-á para que seja desmascarado
Não é necessário que saias de casa. Fica à mesa e escuta. Não escutes sequer, espera apenas. Não esperes sequer, está completamente quieto e só. O mundo oferecer-se-te-á para que seja desmascarado, não tem outra escolha, serpeará perante ti em êxtase.
- Franz Kafka, Aforismos, 109, edição, apresentação e tradução de Álvaro Gonçalves, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, p.133 [tradução ligeiramente modificada].
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009
10 TOUROS
1. A PROCURA DO TOURO
Na pastagem deste mundo, afasto, sem cessar, as ervas altas na procura do touro.
Seguindo rios que não têm nome, perco-me sobre os caminhos que, cruzando-se, penetram as montanhas distantes.
Minha força falhando e exausta a vitalidade, não consigo encontrar o touro.
Só o que ouço é o canto das cigarras atravessando a floresta à noite.
Comentário: O touro anda perdido. Qual a necessidade de continuar a procura? Só por me ter separado da minha verdadeira natureza é que não consigo encontrá‑lo. Na confusão dos sentidos até lhe perco as pegadas.
Longe de cada muitos são os cruzamentos dos caminhos que vejo, mas, qual deles é o caminho certo, eu não sei. A ganância e o medo, o bem e o mal, me atrapalham.
2. DESCOBRINDO AS PEGADAS
Acompanhando a margem do rio debaixo das árvores, descubro as pegadas!
Até debaixo da erva fragrante vejo as pegadas.
Na profundidade de remotas montanhas elas são encontradas.
Estas marcas não podem esconder-se melhor do que o nariz de uma pessoa olhando para o céu.
Comentário: Conforme vou entendendo o ensinamento, vou vendo as pegadas do touro. Aprendo então que, exactamente como muitos utensílios são feitos de um mesmo metal, inúmeras entidades fazem parte do tecido do eu. Se eu não discriminar como é que eu vou distinguir a verdade da não-verdade? Ainda não tendo entrado o portal, todavia já me é discernível o caminho.
3. DISTINGUINDO O TOURO
Ouço o canto do rouxinol.
O sol está quente, o vento é suave, verdes são os salgueiros que orlam a costa,
Aqui nenhum touro se pode esconder!
Qual o artista que pode desenhar-lhe a sólida cabeça, aqueles majestosos cornos?
Comentário: Quando se ouve a voz, pode-se apreender-lhe a origem. Logo que os seis sentidos entram em fusão, entra-se o portal. Seja onde for que se entre vê-se a cabeça do touro! Esta união é como sal em água, ou cor em matéria corante. A coisa mais insignificante não deixa de ser parte do que se é.
4. AGARRANDO O TOURO
Eu o prendo com tremendo esforço.
Sua imensa vontade e poder são inesgotáveis.
Ele lança-se para o alto planalto muito para além da nebulosidade das nuvens,
Ou numa ravina impenetrável ele fica parado.
Comentário: Ele viveu na floresta durante muito tempo, mas hoje eu o prendi! O envolvimento com a paisagem interfere com o seu sentido de direcção. Desejoso de erva mais tenra, ele vagueia errante. A sua mente ainda está obstinada e descontrolada. Se desejar submetê-lo, tenho de levantar o meu chicote.
5. AMANSANDO O TOURO
O chicote e a corda são necessários,
De contrário ele pode perder-se por qualquer poeirento caminho baixo.
Sendo bem treinado ele torna-se naturalmente dócil.
Depois, solto, ele obedece ao seu mestre.
Comentário: Quando um pensamento emerge, outro pensamento se lhe segue. Quando o primeiro pensamento brota da iluminação, todos os pensamentos seguintes são verdade. Por causa da ilusão, tornamos tudo não-verdade. A ilusão não é causada pela objectividade; ela é o resultado da subjectividade. Segura firme o anel do nariz e não admitas nem uma só dúvida.
6. MONTANDO O TOURO PARA CASA
Montando o touro, lentamente regresso em direcção a casa.
A voz da minha flauta canta pela noite fora.
Medindo com a mão o compasso da vibração da harmonia, conduzo o ritmo que não tem fim.
Quem quer que ouça esta melodia juntar-se-á a mim.
Comentário: Esta luta acabou; ganhar e perder são assimilados. Eu canto a canção do lenhador da aldeia, e toco as toadas das crianças. Sentado sobre o touro, observo as nuvens no alto. Para diante eu sigo, não importa quem possa desejar chamar-me para voltar atrás.
7. O TOURO TRANSCENDENTALIZADO
Sentado sobre o touro, chego a casa.
Estou sereno. O touro pode também descansar.
Chegou o amanhecer. Em abençoado repouso,
Dentro da minha casa de tecto de colmo, pus de lado o chicote e a corda.
Comentário: Só existe uma lei, não são duas. Só consideramos o touro um assunto temporário. É como a relação do coelho com a armadilha, do peixe com a rede. É como o ouro e a escória, ou a lua surgindo de uma nuvem. Um caminho de luz clara atravessa o tempo sem fim.
8. O TOURO E EU AMBOS TRANSCENDENTALIZADOS
Chicote, corda, pessoa e touro – todos se fundem no NADA.
Este céu é tão vasto que nenhuma mensagem o pode macular.
Como pode um floco de neve existir num fogo intenso?
Aqui estão as pegadas dos patriarcas.
Comentário: A mediocridade partiu. A mente está limpa da ideia de limitação. Não procuro um estádio de iluminação. Nem permaneço onde não exista iluminação. Como não fico em nenhuma destas condições, os olhos não me podem ver. Se centenas de pássaros espalhassem flores no meu caminho, esse elogio não teria significado.
9. CHEGANDO À ORIGEM
Demasiados passos têm sido dados no regresso à raiz e à origem.
Mais valia ter sido cego e surdo desde o começo!
Permanecendo a pessoa na sua verdadeira morada, sem preocupação com o que está lá fora –
O rio corre tranquilamente e as flores são vermelhas.
Comentário: Desde o começo, a verdade é clara. Em atitude de silêncio, eu observo as formas de integração e desintegração. Quem não se ligar à ‘forma’ não necessitará ser ‘reformado’. A água esmeralda, a montanha anil, e eu vejo aquilo que cria e aquilo que destrói.
10. NO MUNDO
Descalço e de peito nu, misturo-me com as pessoas do mundo.
As minhas roupas estão esfarrapadas e cobertas de pó e eu estou sempre contente.
Não faço uso da magia para prolongar a minha vida;
Agora, ante mim, as árvores tornam-se vivas.
Comentário: Dentro do meu portal, mil sábios não me conhecem. A beleza do meu jardim é invisível. Porquê andar à procura das pegadas dos patriarcas? Vou para o local do mercado com a minha garrafa de vinho e regresso a casa com o meu cajado. Entro na loja dos vinhos e visito o mercado, e todos aqueles para quem olho se tornam iluminados.
- Kakuan (1100-1200), 10 Touros, tradução para inglês de Nyogen Sensaki e Paul Reps, versão portuguesa de Aldegice Machado da Rosa e Agostinho da Silva (manuscrito recolhido por Romana Pinho e Amon Pinho, transcrição de Ricardo Ventura, inédito a integrar a publicação das Obras Reunidas de Agostinho da Silva, a iniciar este ano pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda).
Tenho a alegria de oferecer aos amigos e leitores deste blog a primeira publicação deste texto, totalmente inédito, que ilustra a colaboração dos amigos Aldegice e Agostinho, que saúdo no mundo visível e invisível. Faltam as belíssimas ilustrações de Tomikichiro Tokuriki.
Na pastagem deste mundo, afasto, sem cessar, as ervas altas na procura do touro.
Seguindo rios que não têm nome, perco-me sobre os caminhos que, cruzando-se, penetram as montanhas distantes.
Minha força falhando e exausta a vitalidade, não consigo encontrar o touro.
Só o que ouço é o canto das cigarras atravessando a floresta à noite.
Comentário: O touro anda perdido. Qual a necessidade de continuar a procura? Só por me ter separado da minha verdadeira natureza é que não consigo encontrá‑lo. Na confusão dos sentidos até lhe perco as pegadas.
Longe de cada muitos são os cruzamentos dos caminhos que vejo, mas, qual deles é o caminho certo, eu não sei. A ganância e o medo, o bem e o mal, me atrapalham.
2. DESCOBRINDO AS PEGADAS
Acompanhando a margem do rio debaixo das árvores, descubro as pegadas!
Até debaixo da erva fragrante vejo as pegadas.
Na profundidade de remotas montanhas elas são encontradas.
Estas marcas não podem esconder-se melhor do que o nariz de uma pessoa olhando para o céu.
Comentário: Conforme vou entendendo o ensinamento, vou vendo as pegadas do touro. Aprendo então que, exactamente como muitos utensílios são feitos de um mesmo metal, inúmeras entidades fazem parte do tecido do eu. Se eu não discriminar como é que eu vou distinguir a verdade da não-verdade? Ainda não tendo entrado o portal, todavia já me é discernível o caminho.
3. DISTINGUINDO O TOURO
Ouço o canto do rouxinol.
O sol está quente, o vento é suave, verdes são os salgueiros que orlam a costa,
Aqui nenhum touro se pode esconder!
Qual o artista que pode desenhar-lhe a sólida cabeça, aqueles majestosos cornos?
Comentário: Quando se ouve a voz, pode-se apreender-lhe a origem. Logo que os seis sentidos entram em fusão, entra-se o portal. Seja onde for que se entre vê-se a cabeça do touro! Esta união é como sal em água, ou cor em matéria corante. A coisa mais insignificante não deixa de ser parte do que se é.
4. AGARRANDO O TOURO
Eu o prendo com tremendo esforço.
Sua imensa vontade e poder são inesgotáveis.
Ele lança-se para o alto planalto muito para além da nebulosidade das nuvens,
Ou numa ravina impenetrável ele fica parado.
Comentário: Ele viveu na floresta durante muito tempo, mas hoje eu o prendi! O envolvimento com a paisagem interfere com o seu sentido de direcção. Desejoso de erva mais tenra, ele vagueia errante. A sua mente ainda está obstinada e descontrolada. Se desejar submetê-lo, tenho de levantar o meu chicote.
5. AMANSANDO O TOURO
O chicote e a corda são necessários,
De contrário ele pode perder-se por qualquer poeirento caminho baixo.
Sendo bem treinado ele torna-se naturalmente dócil.
Depois, solto, ele obedece ao seu mestre.
Comentário: Quando um pensamento emerge, outro pensamento se lhe segue. Quando o primeiro pensamento brota da iluminação, todos os pensamentos seguintes são verdade. Por causa da ilusão, tornamos tudo não-verdade. A ilusão não é causada pela objectividade; ela é o resultado da subjectividade. Segura firme o anel do nariz e não admitas nem uma só dúvida.
6. MONTANDO O TOURO PARA CASA
Montando o touro, lentamente regresso em direcção a casa.
A voz da minha flauta canta pela noite fora.
Medindo com a mão o compasso da vibração da harmonia, conduzo o ritmo que não tem fim.
Quem quer que ouça esta melodia juntar-se-á a mim.
Comentário: Esta luta acabou; ganhar e perder são assimilados. Eu canto a canção do lenhador da aldeia, e toco as toadas das crianças. Sentado sobre o touro, observo as nuvens no alto. Para diante eu sigo, não importa quem possa desejar chamar-me para voltar atrás.
7. O TOURO TRANSCENDENTALIZADO
Sentado sobre o touro, chego a casa.
Estou sereno. O touro pode também descansar.
Chegou o amanhecer. Em abençoado repouso,
Dentro da minha casa de tecto de colmo, pus de lado o chicote e a corda.
Comentário: Só existe uma lei, não são duas. Só consideramos o touro um assunto temporário. É como a relação do coelho com a armadilha, do peixe com a rede. É como o ouro e a escória, ou a lua surgindo de uma nuvem. Um caminho de luz clara atravessa o tempo sem fim.
8. O TOURO E EU AMBOS TRANSCENDENTALIZADOS
Chicote, corda, pessoa e touro – todos se fundem no NADA.
Este céu é tão vasto que nenhuma mensagem o pode macular.
Como pode um floco de neve existir num fogo intenso?
Aqui estão as pegadas dos patriarcas.
Comentário: A mediocridade partiu. A mente está limpa da ideia de limitação. Não procuro um estádio de iluminação. Nem permaneço onde não exista iluminação. Como não fico em nenhuma destas condições, os olhos não me podem ver. Se centenas de pássaros espalhassem flores no meu caminho, esse elogio não teria significado.
9. CHEGANDO À ORIGEM
Demasiados passos têm sido dados no regresso à raiz e à origem.
Mais valia ter sido cego e surdo desde o começo!
Permanecendo a pessoa na sua verdadeira morada, sem preocupação com o que está lá fora –
O rio corre tranquilamente e as flores são vermelhas.
Comentário: Desde o começo, a verdade é clara. Em atitude de silêncio, eu observo as formas de integração e desintegração. Quem não se ligar à ‘forma’ não necessitará ser ‘reformado’. A água esmeralda, a montanha anil, e eu vejo aquilo que cria e aquilo que destrói.
10. NO MUNDO
Descalço e de peito nu, misturo-me com as pessoas do mundo.
As minhas roupas estão esfarrapadas e cobertas de pó e eu estou sempre contente.
Não faço uso da magia para prolongar a minha vida;
Agora, ante mim, as árvores tornam-se vivas.
Comentário: Dentro do meu portal, mil sábios não me conhecem. A beleza do meu jardim é invisível. Porquê andar à procura das pegadas dos patriarcas? Vou para o local do mercado com a minha garrafa de vinho e regresso a casa com o meu cajado. Entro na loja dos vinhos e visito o mercado, e todos aqueles para quem olho se tornam iluminados.
- Kakuan (1100-1200), 10 Touros, tradução para inglês de Nyogen Sensaki e Paul Reps, versão portuguesa de Aldegice Machado da Rosa e Agostinho da Silva (manuscrito recolhido por Romana Pinho e Amon Pinho, transcrição de Ricardo Ventura, inédito a integrar a publicação das Obras Reunidas de Agostinho da Silva, a iniciar este ano pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda).
Tenho a alegria de oferecer aos amigos e leitores deste blog a primeira publicação deste texto, totalmente inédito, que ilustra a colaboração dos amigos Aldegice e Agostinho, que saúdo no mundo visível e invisível. Faltam as belíssimas ilustrações de Tomikichiro Tokuriki.
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
Bildnis eines Schattens / Retrato de uma Sombra
Os teus olhos, rasto de luz dos meus passos;
a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;
as tuas sobrancelhas, orla do caminho da tragédia;
as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
os teus cabelos, corvos, corvos, corvos;
as tuas faces, campo de armas da madrugada;
os teus lábios, hóspedes tardios;
os teus ombros, estátua do esquecimento;
os teus seios, amigos das minhas serpentes;
os teus braços, álamos à porta do castelo;
as tuas mãos, tábuas de juras mortas;
as tuas ancas, pão e esperança;
o teu sexo, lei do fogo na floresta;
as tuas coxas, asas no abismo;
os teus joelhos, máscaras da tua altivez;
os teus pés, campo de batalha dos pensamentos;
as tuas solas, criptas em chamas;
as tuas pegadas, olho da nossa despedida.
- Paul Celan (1920-1970), A Morte é uma Flor (Poemas do espólio), tradução, posfácio e notas de João Barrento, Lisboa, Cotovia, 1998, p.19.
a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;
as tuas sobrancelhas, orla do caminho da tragédia;
as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
os teus cabelos, corvos, corvos, corvos;
as tuas faces, campo de armas da madrugada;
os teus lábios, hóspedes tardios;
os teus ombros, estátua do esquecimento;
os teus seios, amigos das minhas serpentes;
os teus braços, álamos à porta do castelo;
as tuas mãos, tábuas de juras mortas;
as tuas ancas, pão e esperança;
o teu sexo, lei do fogo na floresta;
as tuas coxas, asas no abismo;
os teus joelhos, máscaras da tua altivez;
os teus pés, campo de batalha dos pensamentos;
as tuas solas, criptas em chamas;
as tuas pegadas, olho da nossa despedida.
- Paul Celan (1920-1970), A Morte é uma Flor (Poemas do espólio), tradução, posfácio e notas de João Barrento, Lisboa, Cotovia, 1998, p.19.
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
Devaneios de Saudades
Para construir um navio, quantos litros de sal sobre a folha aberta dos dias são necessários para que o mar venha colher à mão do tempo o Amor que lhe sabe, em Saudade. Para a impermanência das horas fomos feitos. Na errância de tudo fazer recolher para o fundo, para lá do navio; para trás do mar. Para cada lado do mar, cruzando as direcções, o corpo escreve o suave gesto de um aceno: a Norte de onde me chegam os pássaros e o coração da Primavera é uma frágil flor no peito do vestido; um aceno ao Sul, ao canto-chão, às vozes que do ventre da noite e da terra desbravam a lonjura em horizontes largos como braços. A todos os lados da impermanência sem dimensão de tudo. A impermanência da dança; a impermanência de nada, a de tudo. Tudo se despedindo de tudo; tudo a ser de outro modo em tudo... A impermanência do amor - tudo como não foi - tudo levado para trás do grande mar.
E o gesto de imitar o vento levantava a brisa nos dedos: o coração virado a oriente, o espírito no deserto, a esperança na montanha. O riso da impermanência do amor e de tudo! A preparação, o separar dos objectos; o acender o fogo; a espera, a eterna espera, em ouro imaginada... o silêncio que se quer a ampliar o silêncio e a dilatar o tempo, a moldar o tempo...
O que fica de tudo o que passa? Nada fica do que nada passou... Continuamos até onde nos levar o que permanente permanece na impermanência de tudo.
Foi preciso ao poema audaciar-se para abrir todas as páginas do caderno de escrever. Impermanecer demorado sob a forma movente dos olhos, reflexo parado do amor que se vai, entre pingos de chuva e memória de beijos até à porta falsa do esquecimento. Ali onde se guarda o que permanece à superfície das águas, como rosas de guardar. Era preciso ao poema transmudar-se, embarcar, naufragar em uma praia de seixos claros e rir até não poder mais do seu mesmo sorriso; Rir de dor do Amor que mal chega ao seu acenar, logo, logo, emudece. Impermanente e errante, como quero que seja o beijo que não demos em nenhum jardim... Fica um gosto de saudade que morre em cada poema tecido ele mesmo da sua impermanência. Da sua substância de pulverizar mundos.
Um dia, construiremos um navio singular, feito de terra e de mar e, quem quizesse lá ficar... tinha de andar léguas em seu pensar....E, bebido o ar e o som, pudéssemos dizer que a sinfonia foi tocada altíssima em vozes colhidas e nascidas da divina colheita do amor. A vide, Iabel, a vide!
Trazei-me o Outono já que o Inverno tarda, para que volte ao que em teia de seu mesmo tear, o manto teça, o manto do seu ser de dor e de saudade. Tomai comigo um cálice, amigos! Que este é o nectar sagrado dos deuses, o perfume enganador dos sentidos, os cantos alegríssimos do vinho. Banquete e mesa posta, em nós, sentados, como se comungássemos dum mesmo dolorido gesto de nascer. Banquete rico de nós, entregues ao pensamento no Egipto do ser. Quem se não sonha por um dia: Cleópetra, Inês, Beatriz, Isolda, Penélope, Isabel ou Saudades? Quem não se sonha Pitonisa, Oráculo, Cálice, Cruz e Rosa e Cristo? Buda ou o Grande Grande Vazio, ou o SILÊNCIO que por ora é um eco. Desde o navio até ao sal do dia, serei a coroa e o anel. A espada está onde o punho a deixou, suspensa da vontade e do merecimento. Sabe-se que terá que ser puro, corajoso e fiel. Por isso a impermanência do Amor sempre será Cálice cheio de quem bebe a sua mesma impermanência. Um brinde ao Amor, meus amigos!
E o gesto de imitar o vento levantava a brisa nos dedos: o coração virado a oriente, o espírito no deserto, a esperança na montanha. O riso da impermanência do amor e de tudo! A preparação, o separar dos objectos; o acender o fogo; a espera, a eterna espera, em ouro imaginada... o silêncio que se quer a ampliar o silêncio e a dilatar o tempo, a moldar o tempo...
O que fica de tudo o que passa? Nada fica do que nada passou... Continuamos até onde nos levar o que permanente permanece na impermanência de tudo.
Foi preciso ao poema audaciar-se para abrir todas as páginas do caderno de escrever. Impermanecer demorado sob a forma movente dos olhos, reflexo parado do amor que se vai, entre pingos de chuva e memória de beijos até à porta falsa do esquecimento. Ali onde se guarda o que permanece à superfície das águas, como rosas de guardar. Era preciso ao poema transmudar-se, embarcar, naufragar em uma praia de seixos claros e rir até não poder mais do seu mesmo sorriso; Rir de dor do Amor que mal chega ao seu acenar, logo, logo, emudece. Impermanente e errante, como quero que seja o beijo que não demos em nenhum jardim... Fica um gosto de saudade que morre em cada poema tecido ele mesmo da sua impermanência. Da sua substância de pulverizar mundos.
Um dia, construiremos um navio singular, feito de terra e de mar e, quem quizesse lá ficar... tinha de andar léguas em seu pensar....E, bebido o ar e o som, pudéssemos dizer que a sinfonia foi tocada altíssima em vozes colhidas e nascidas da divina colheita do amor. A vide, Iabel, a vide!
Trazei-me o Outono já que o Inverno tarda, para que volte ao que em teia de seu mesmo tear, o manto teça, o manto do seu ser de dor e de saudade. Tomai comigo um cálice, amigos! Que este é o nectar sagrado dos deuses, o perfume enganador dos sentidos, os cantos alegríssimos do vinho. Banquete e mesa posta, em nós, sentados, como se comungássemos dum mesmo dolorido gesto de nascer. Banquete rico de nós, entregues ao pensamento no Egipto do ser. Quem se não sonha por um dia: Cleópetra, Inês, Beatriz, Isolda, Penélope, Isabel ou Saudades? Quem não se sonha Pitonisa, Oráculo, Cálice, Cruz e Rosa e Cristo? Buda ou o Grande Grande Vazio, ou o SILÊNCIO que por ora é um eco. Desde o navio até ao sal do dia, serei a coroa e o anel. A espada está onde o punho a deixou, suspensa da vontade e do merecimento. Sabe-se que terá que ser puro, corajoso e fiel. Por isso a impermanência do Amor sempre será Cálice cheio de quem bebe a sua mesma impermanência. Um brinde ao Amor, meus amigos!