Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho
Jorge Luis Borges
in "História da Noite"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Eu sou mais uma velha gaiteira!
ResponderEliminar"O meu rosto (que não vi)
ResponderEliminarNão projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho."
Espantosos, estes versos!
Tomara todos pudéssemos dizer o mesmo, de infindas diferentes maneiras...
Sinal seria de que teríamos na face a presença real de nós mesmos, na própria ausência de tudo o que nos apequena.
Muito grato, Liliana!
"Nem Sequer Sou Poeira": sou Poeta... (no sentido amplo de criador-a)
ResponderEliminarSer poeta: que pena! Antes poeira.
ResponderEliminarSer poeta? Ai que pena!
ResponderEliminarAntes poeira! Que a eira
é de Anónimos sem beira -
birutas qu'a tudo dizem: Ena!
(Inventa outra, birutinha!)
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ResponderEliminarNão conhecia este poema de Borges e achei curioso ele mencionar Amadis e Urganda, personagens do único romance de cavalaria português, Amadis de Gaula, romance que se crê datado de finais do século XIII, pertencente ao ciclo arturiano, de autor desconhecido, mas com fontes que referem que o primeiro autor possa ter sido Vasco de Lobeira, armado cavaleiro na batalha de Aljubarrota.
ResponderEliminarObrigada pela partilha, Liliana.
Pudéssemos sim Lapdrey, colher em mãos o que Borges nos deixou e renovar gestos.
ResponderEliminare Madalena obrigada pela partilha que nos deixou.
uma boa noite