sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Nem Sempre Sou Igual no que Digo e Escrevo

Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...


Alberto Caeiro
in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXIX"

6 comentários:

  1. Se eu morrer novo,
    Sem publicar livro nenhum,
    Sem ver a cara que têm meus versos em letra impressa,
    Peço que, se se quiserem ralar por minha cauda,
    Que não se ralem,
    Se assim aconteceu, assim está certo.

    Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
    Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
    Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
    Porque as raízes podem estar debaixo da terra
    Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
    Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

    Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
    Nunca fui senão uma criança que brincava.
    Fui gentio como o sol e a água,
    De uma religião universal que só os homens não têm.
    Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
    Nem procurei achar nada,
    Nem achei que houvesse mais explicação
    Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

    Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
    Ao sol quando havia sol
    E à chuva quando estava chovendo
    (E nunca a outra coisa),
    Sentir calor e frio e vento,
    E não mais longe.

    Uma vez amei, julguei que me amariam,
    Mas não fui amado.
    Não fui amado pela única grande razão -
    Porque não tinha que ser.

    Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
    E sentando-me outra vez à porta de casa.
    Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados

    Como para os que não são.
    Sentir é estar distraído.

    Alberto Caeiro
    in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXVIII"

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  2. Caeiro é, ainda hoje, o mestre que nos ensina a ser pessoas, lendo-nos em Pessoa: e porventura ser-no-lo-á sempre...

    (Grato, Liliana!)

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  3. É sempre agradável e claro, como um regato, ouvir a voz de Caeiro.
    Em outros poemas dos seus "inconjuntos versos" o puro e branco de cal já está "contaminado" de algum modo com sentimentos, como no poema em que o poeta diz que não deixa de achar a natureza bela, desde que ama, mas que a vê diferentemente bela, acrescentada... A "doença" também afectou a objectividade do simples Caeiro(!)

    E todos mudamos um pouco o sentido para onde estamos orientados... A mudança, porém, nunca estranha o que no imo de nós é a presença ausente que para além do ser e do não ser, do haver e não haver é e não é, nem é nem não é, nem há nem não há.
    Aí, aí... não há palavras, nem sujeito nem objecto, nem Saudade nem não Saudade... aí não há nada, porque há tudo...

    Um abraço de Saudades, Liliana.

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  4. Necessariamente concordo, cara Saudades!
    Talvez apenas elementos químicos e atómicos sejam "realidades" em estado puro e assépticas, isentas porventura da contaminação do que lhes é diferente.

    Mas será que algo na Natureza estará isento, em si mesmo, do que lhe é diverso? Creio que não.

    Se assim não fosse, coisa alguma interagiria com alguma coisa que fosse.

    Por isso, até Caeiro está ferido de contaminação

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