O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 3 de janeiro de 2010

O desafio intercultural: subversivo, enriquecedor e difícil



"Não se pode negar, em qualquer caso, que a atitude intercultural implica um risco e leva consigo a aceitação da vulnerabilidade humana. Porém, se não aceitamos este risco, tudo desembocará num "choque de civilizações", isto é, numa guerra de culturas, que se prolongará como nos últimos seis mil anos de história humana, na qual a cultura da guerra prevaleceu sobre a cultura da paz. Esta transição de uma cultura da guerra a uma cultura da paz é o desafio de vida ou de morte com que se enfrenta a humanidade contemporânea. [...]

A interculturalidade é um imperativo humano do nosso tempo. Para que tenha lugar a mutação de uma cultura de guerra numa cultura de paz, a mudança deve alcançar o domínio do mythos e não somente o do logos; do que se depreende que havemos de modificar os nossos mitos e não apenas as nossas ideias. Esta transição, este passo (pesah, pascha), [...] é a tarefa principal da filosofia intercultural, é o desafio intercultural do nosso milénio. Note-se que falamos de desafio intercultural e não somente ético. [...] O desafio da interculturalidade não pode reduzir-se a um discurso ético. Não há que nos espantarmos de que o desafio intercultural seja tão subversivo como enriquecedor ao passo que difícil.

Cada cultura crê nos seus próprios mitos e, quando nos esquecemos do carácter relativo das convicções que estão encerradas (e compreendidas) no mito, corremos o risco de converter em absolutos as ideias e os valores de tal cultura. Este é o perigo das culturas que se fecharam em si mesmas ou que estão convencidas da sua superioridade. O encontro com outras visões do mundo que são incompatíveis com a nossa não apenas nos causa incómodo, mas também nos torna inseguros, faz-nos perder o equilíbrio. [...]

A abertura à interculturalidade é verdadeiramente subversiva. Desestabiliza-nos, contesta convicções profundamente enraizadas que damos por garantidas porque nunca as colocámos em discussão. Diz-nos que a nossa visão do mundo, e portanto o nosso próprio mundo, não são únicos. [...]

Porém, ao mesmo tempo, a abertura à interculturalidade é enriquecedora. Permite-nos crescer, sermos transformados; estimula-nos a tornarmo-nos mais críticos, menos absolutistas e amplia o campo da nossa tolerância. Ademais faz-nos descobrir as próprias raízes da nossa cultura, esses pontos de intersecção para um crescimento harmonioso dessa mesma cultura. [...]

O nosso terceiro adjectivo convida-nos a ser prudentes e realistas. O encontro entre as culturas é difícil, porque não se trata de um fácil eclecticismo ou de um cocktail arbitrário. [...]

É natural que seja necessário ir com prudência, para evitar cair no fascínio do exótico e sermos assim vítimas de um parasitismo debilitador confundido com uma simbiose enriquecedora"

- Raimon Pannikar, Paz e Interculturalidad. Una reflexión filosófica, Barcelona, Herder, 2006, pp.105-107 e 109-110.

1 comentário:

Maria disse...

Verdadeiramente enriquecedor.
Grande homem!