segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
CARTAS EM ANDAMENTO
Quem dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir. Depois tu sorris e eu esqueço tudo que aprendi.
Já passavam das dez da manhã quando acabei de ler. Não me lembro ao pormenor, como vim parar aqui. Quando os militares tomaram o poder substituíram a censura pela leitura selectiva. Sem eira nem beira fui colocada no ministério da cultura.
- Major, não arranja um trabalho para a minha filha?
O pobre coitado que tinha acabado de mudar de patente ficou embatucado. A memória de um favor por pagar visitava delicadamente o presente.
- Claro que sim. A revolução precisa de jovens que estejam ao lado da liberdade.
Pois foi assim que me tornei leitora profissional. Milhares de cartas por ler!
A vida é feita de regras e a que me foi destinada era só uma: - LER!
Bastava ler, dobrar a carta e colocar de novo no envelope. Em seguida ia para um caixote das CARTAS LIDAS.
Era uma jovem responsável, apoiante da revolução. Foi num ápice que li todas as cartas. Sebastião, um velho funcionário, aconselhou-me a voltar a colocar as cartas já lidas no caixote das CARTAS POR LER, pois se me mostrasse desocupada seria despedida.
Lembro-me de ter sorrido. Sempre senhora da verdade corri ao gabinete do major.
- Major as cartas já foram todas lidas. Devo responder?
- Todas? Se não há mais cartas sou obrigado a mandá-la embora…
Quem me dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir.
Depois tu sorris e eu esqueço de tudo o que aprendi
(Porque agora a ladainha da velha? Porque esta dor que rompe o som?)
- Mas Major hão-de vir mais cartas para ler. Devo responder as que já li?
- Seu trabalho é de leitura. Ninguém escreve esperando uma resposta. E se esperar, paciência – temos mais o que fazer. Continue lendo. Quando deixarem de escrever acaba o seu trabalho.
No corredor Sebastião sorria só com o olhar.
- Eu avisei. Coloque as cartas lidas no caixote das cartas por ler, se quiser este emprego…
Passaram 20 anos e o meu sorriso perdeu-se pelo caminho. Não sei quantas voltas já dei ao caixote.
Há cartas que sei de cor. Outras o tempo tratou de engolir o texto. Passados seis meses o major foi colocado noutro lugar, mas eu já me habituara à rotina das caixas.
Ninguém se preocupou – o trabalho quando bem feito não deve ser alterado. Já tinha encontrado uma metodologia que rentabilizava o circuito. Quem precisa de mudar quando tudo parece tão perfeito?
Hoje eram dez e eu já tinha lido tudo. Amanhã vou acompanhar o corpo de Sebastião. Morreu de morte natural – foi o que li na carta que a esposa enviou aos colegas. Esta vai para o caixote das CARTAS LIDAS.
Quem me dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir.
Depois tu sorris e eu esqueço de tudo o que aprendi
(Sempre a ladainha da velha. A mesma dor que rompe o som – todos os dias!)
Já passavam das dez da manhã quando acabei de ler. Não me lembro ao pormenor, como vim parar aqui. Quando os militares tomaram o poder substituíram a censura pela leitura selectiva. Sem eira nem beira fui colocada no ministério da cultura.
- Major, não arranja um trabalho para a minha filha?
O pobre coitado que tinha acabado de mudar de patente ficou embatucado. A memória de um favor por pagar visitava delicadamente o presente.
- Claro que sim. A revolução precisa de jovens que estejam ao lado da liberdade.
Pois foi assim que me tornei leitora profissional. Milhares de cartas por ler!
A vida é feita de regras e a que me foi destinada era só uma: - LER!
Bastava ler, dobrar a carta e colocar de novo no envelope. Em seguida ia para um caixote das CARTAS LIDAS.
Era uma jovem responsável, apoiante da revolução. Foi num ápice que li todas as cartas. Sebastião, um velho funcionário, aconselhou-me a voltar a colocar as cartas já lidas no caixote das CARTAS POR LER, pois se me mostrasse desocupada seria despedida.
Lembro-me de ter sorrido. Sempre senhora da verdade corri ao gabinete do major.
- Major as cartas já foram todas lidas. Devo responder?
- Todas? Se não há mais cartas sou obrigado a mandá-la embora…
Quem me dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir.
Depois tu sorris e eu esqueço de tudo o que aprendi
(Porque agora a ladainha da velha? Porque esta dor que rompe o som?)
- Mas Major hão-de vir mais cartas para ler. Devo responder as que já li?
- Seu trabalho é de leitura. Ninguém escreve esperando uma resposta. E se esperar, paciência – temos mais o que fazer. Continue lendo. Quando deixarem de escrever acaba o seu trabalho.
No corredor Sebastião sorria só com o olhar.
- Eu avisei. Coloque as cartas lidas no caixote das cartas por ler, se quiser este emprego…
Passaram 20 anos e o meu sorriso perdeu-se pelo caminho. Não sei quantas voltas já dei ao caixote.
Há cartas que sei de cor. Outras o tempo tratou de engolir o texto. Passados seis meses o major foi colocado noutro lugar, mas eu já me habituara à rotina das caixas.
Ninguém se preocupou – o trabalho quando bem feito não deve ser alterado. Já tinha encontrado uma metodologia que rentabilizava o circuito. Quem precisa de mudar quando tudo parece tão perfeito?
Hoje eram dez e eu já tinha lido tudo. Amanhã vou acompanhar o corpo de Sebastião. Morreu de morte natural – foi o que li na carta que a esposa enviou aos colegas. Esta vai para o caixote das CARTAS LIDAS.
Quem me dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir.
Depois tu sorris e eu esqueço de tudo o que aprendi
(Sempre a ladainha da velha. A mesma dor que rompe o som – todos os dias!)
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4 comentários:
Há paladares... para tudo! JCN
Foi o que fez bem! JCN
Caro JCN, agradeço todos os seus conselhos!
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