O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 23 de janeiro de 2010

FEBRES DE SÃO TOMÉ - Junho 2005

1
Veio do mar aquele que um dia roubou um pedaço de mim. Parti sem saber meu destino.
- Dona este é o caminho da Boa Morte
- E depois sr Manuel?
- Dona depois é o cemitério de São João
- Me deixe ficar por aqui Manuel, se boa é a morte
- Dona o doutor vai saber que malária é essa que lhe morde a alma
Entre o hospital da cidade de São Tomé e a casa de Daio não sei o que aconteceu. Ouvi o médico cubano segredar que o meu mal só ocupava lugar. Na esquina da dor quase atravessei a morte.

2
Na ilha, na casa de Jesus Nosso Senhor há uma porta de entrada e outra de saída. Tão perto uma da outra – por vezes quem entra esbarra em quem sai. Entrei na casa de Deus - saí em busca de um atalho.
As estradas de São Tomé apodrecem – o alcatrão luta contra os buracos.
- Dona – cuidado! Maria deitou-se com José, veja só o pecado...
Quem me mandou sair do santuário?
- Se aquiete homem, também me deito com Cristo e ninguém me leva ao inferno...
- Dona – cuidado!
As estradas de São Tomé morrem devagar – preguiçosas.

3
Desço a rua do Quilombo, viro à direita passo o Papa-Figo, para trás um horizonte perdido. Na minha frente o mar. Daio está no Passante
- Branca, branca....
Queria que minha a cor fosse como a de Daio – negra.
- Branca, branca...

4
Procurei em Daio meu amor perdido noutra ilha. Vi a malária matar os corpos jovens de São Tomé. Tantos brancos ousaram inventar a sina daqueles que a cor ditou a dor. A branca histérica pregou que o racismo não existe. O preto desviou o olhar - sofreu em silêncio.
- Dona fique por cá...
Os olhos de Daio não mentem. Vejo nele a memória do seu povo. Cada grito calado, cada lágrima contida. Um dia matam todos os africanos.
Quero de Daio a revolta escondida. Lamento constante. Resistência passiva.
- Dona fique por cá...
Quis de Daio cada carinho roubado. Daio triste olhou o vazio. Procurei uma chama, calor de um tempo passado. Daio triste olhou o vazio.
- Dona fique por cá...
- E o que tem essa ilha perdida para além das tristezas vividas?
- Não tem passado. Minha geografia – o vazio.

No regresso à casa, Lisboa quero-te de novo vestida de véu e grinalda!
Mostra-me que também aqui é possivel amar.

Tenho sono. Saudades de São Tomé.

Diz-me Cleo se o teu planeta é melhor do que este que destruímos com tanta pressa?.

4 comentários:

platero disse...

também estive uma semanita em S.Tomé
É mesmo lindo

Gosto de seu exercício de escrita
beijinho

ethel disse...

Obrigada Paltero :)
Beijinho

ethel disse...

desculpa-me Platero

platero disse...

Desculpar o quê?

Tudo bem

beijinho