sábado, 24 de outubro de 2009
"Somos a carne e a presença do todo que nos cerca." - Vergilio Ferreira
Fotografia: Howard Schatz
O sangue que nos aquece e nos inventa a vida, é o que respiramos, dá aos sonhos as formas dessa presença invisível de tudo o que nos cerca. Um modo de pensar, de sentir, organiza-se nos limites das raízes indistintas, transforma-se aí obscuramente, enquanto as nossas mãos distraídas continuam a moldar o pó dos sonhos mortos. Somos a carne e a presença do todo que nos cerca. As células vivas de um espírito que não morre vão expulsando as que já se corromperam. Lentamente, uma evidência nova habita-nos os nervos, corporiza-se connosco, é a nossa pessoa. E um dia descobrimo-nos uma unidade miraculosa, uma certeza de sermos, o puro acto da nossa identidade – no que afirmamos ou negamos. Muita gente, meu amigo, nos explica que tal modo de sermos unos, de habitar-nos a evidência que nos coube, é o fruto da erosão ou da sedimentação do que isto ou aquilo semeou em nós. Sim. Mas a pedra que a água desgastou, se pudesse conhecer-se, ignorava como vã a explicação da água e do tempo, sabia-se inteira e irredutível, na sua condição de pedra mutilada. Ela seria apenas a verdade absoluta de ser pedra com desgaste, no instante, no instante em que se reconheceu assim. A acção do que nos rodeia, se a sabemos é uma verdade indiferente. O que não é indiferente e se nos impõe como a única verdade que de nós irrompe, o que nos afirma uma totalidade de ser, o que nos define e é a própria realidade de estarmos sendo – é o todo que nos sentimos e nos projecta, é a absoluta presença de nós a nós próprios, esta irredutível e impensável realidade do que somos, impensável e irredutível porque não podemos sê-la de fora, desdobrá-la em duas totalidades.
Vergílio Ferreira, “Carta ao Futuro”, Livraria Bertrand, Lisboa, 1981, págs.31-33.
Etiquetas:
carne,
ficção da identidade,
instante,
presença
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5 comentários:
Classicista de formação, Vergílio Ferreira sabia o que dizia e, sobretudo, como dizê-lo. Beirão de gema, era "indivisível": tal como a pedra, gastava-se... mas não partia. Fomos colegas. JCN
para sempre aqui estou.
v.f.(sartre de fontanelas)
foste colega de uma bela m....
Vai vir "ri'bomba", bem prevejo, baal...
(não é que eu tenha avisado, mas...)
P.S.
Porventura, há ainda quem fale de Sartre?
Só se for nas escolas primárias do Havre!...
Pelos vistos, há.
Não se admire, senhor Damien: entre portugueses... há sempre saudosistas... seja do que for! Até do satânico Estaline, que por sinal era descendente de judeus portugueses. Que botas-de-elástico. E ainda falam de Salazar... que igualmente as usava!
Quanto a Fontanelas, parque da cidade de Viseu, pura ignorância geográfica: Vergílio Ferreira era de Melo, concelho de Gouveia, distrito da Guarda. Escolinha, senhor BAAAL, escolinha! Precisa de bibe?!... JCN
Estaré vossemecê, senhor BAAAL, acometido de revolucionárias "salmonelas"... para trocar FONTELO, tão presente na obra de Vergílio Ferreira, pela sintrense FONTANELAS, tão circunstâncial na sua vida?!... Será que vossemecê, tal como o arcaico Saramago, também usa óculos de arame, que têm o condão de lhe entortarem a vista, olhando sesgado?... Já pensei!
Quanto a m..., sempre é melhor que trampa. A meu ver. JCN
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