sexta-feira, 16 de outubro de 2009
Realidade-Ficção e Vacuidade
Quanto mais contemplo o espectáculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me compenetro da ficção ingénita de tudo, do prestígio falso da pompa de todas as realidades. E nesta contemplação, que a todos, que reflectem, uma ou outra vez terá sucedido, a marcha multicolor dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos impérios e das culturas - tudo isso me aparece como um mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos. Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo «Já sei tudo», ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: «omnia fui, nihil expedit - fui tudo, nada vale a pena.»
Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, operando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas inconscientes, outra vez através de homens inconscientes. Um terramoto e um massacre não têm para mim diferença senão a que há entre assassinar com uma faca e assassinar com um punhal. O monstro imanente nas coisas tanto serve - para o seu bem ou o seu mal, que, ao que parece, lhe são indiferentes - da deslocação de um pedregulho na altura ou da deslocação do ciúme ou da cobiça num coração. O pedregulho cai, e mata um homem; a cobiça ou o ciúme armam um braço, e o braço mata um homem. Assim é o mundo, monturo de forças instintivas, que todavia brilha ao sol com tons palhetados de ouro claro e escuro.
Para fazer face à brutalidade de indiferença, que constitui o fundo visível das coisas, descobriram os místicos que o melhor era repudiar. Negar o mundo, virar-se dele como de um pântano a cuja beira nos encontrássemos. Negar como o Buda, negando-lhe a realidade absoluta; negar como o Cristo, negando-lhe a realidade relativa.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio e Alvim (2006), pp. 138-139.
Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, operando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas inconscientes, outra vez através de homens inconscientes. Um terramoto e um massacre não têm para mim diferença senão a que há entre assassinar com uma faca e assassinar com um punhal. O monstro imanente nas coisas tanto serve - para o seu bem ou o seu mal, que, ao que parece, lhe são indiferentes - da deslocação de um pedregulho na altura ou da deslocação do ciúme ou da cobiça num coração. O pedregulho cai, e mata um homem; a cobiça ou o ciúme armam um braço, e o braço mata um homem. Assim é o mundo, monturo de forças instintivas, que todavia brilha ao sol com tons palhetados de ouro claro e escuro.
Para fazer face à brutalidade de indiferença, que constitui o fundo visível das coisas, descobriram os místicos que o melhor era repudiar. Negar o mundo, virar-se dele como de um pântano a cuja beira nos encontrássemos. Negar como o Buda, negando-lhe a realidade absoluta; negar como o Cristo, negando-lhe a realidade relativa.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio e Alvim (2006), pp. 138-139.
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2 comentários:
Isto foi o que Pessoa, na pele de Bernardo Soares, disse em determinada altura; dadas as suas assumidas variações de opinião, tê-lo-ia mantido... uma hora depois?!... JCN
Bebe um copito, que ainda és capaz de acertar um comentário de jeito.
E tu, ó Beato, o que dizes? És absoluto ou relativo ou depende dos dias?
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