terça-feira, 6 de outubro de 2009
Antes de Começar
O BONECO - Já por várias vezes fomos os dois juntos dentro da mesma algibeira!...
A BONECA - É verdade!...Nesse tempo não sabia que tu eras como eu...
O BONECO - É verdade!...nem eu!...e podíamos ter falado tanto, dentro da algibeira!...Fartei-
me de puxar por ti!...
A BONECA - Eu não sabia que eras tu!
O BONECO - Era eu!
A BONECA - Porque não me disseste ao ouvido?
O BONECO - Eu não sabia que tu ouvias!
A BONECA - Pois ouvia!
O BONECO - E tu nunca te aborrecias de estar sempre na posição em que o Homem te tinha dei-
xado?
A BONECA - Punha-me a pensar...Pensei muito! Pus por ordem todas as coisas que aconteceram
comigo...Sei tudo de cor...
O BONECO - Conta, conta o que sabes!...
A BONECA - Só há uma coisa que eu não sei e que também aconteceu comigo...
O BONECO - O que foi?
A BONECA - Não sei explicar a razão por que são tão pequenas as pessoas que vêm todas as
noites ver o espectáculo!...
O BONECO - (Ri.) São assim tão pequenas porque ainda não chegaram a grandes...As pessoas pequenas chamam-se crianças.
A BONECA - Isso não sabia eu...Era a única coisa que eu não tinha sido capaz de compreender!...Via umas pessoas maiores e outras mais pequenas, e não sabia a razão.
O BONECO - Ah! Ah! Ah!
A BONECA - Naturalmente estás-me a enganar?...
O BONECO - Não te estou a enganar, não...estou a rir-me do que terás para contar se não sabias
que as pessoas antes de serem grandes começam por ser pequeninas!...(Ri.)
Almada Negreiros
in Antes de Começar
Colecção Baratinha, Raiz Editora, 1995
A BONECA - É verdade!...Nesse tempo não sabia que tu eras como eu...
O BONECO - É verdade!...nem eu!...e podíamos ter falado tanto, dentro da algibeira!...Fartei-
me de puxar por ti!...
A BONECA - Eu não sabia que eras tu!
O BONECO - Era eu!
A BONECA - Porque não me disseste ao ouvido?
O BONECO - Eu não sabia que tu ouvias!
A BONECA - Pois ouvia!
O BONECO - E tu nunca te aborrecias de estar sempre na posição em que o Homem te tinha dei-
xado?
A BONECA - Punha-me a pensar...Pensei muito! Pus por ordem todas as coisas que aconteceram
comigo...Sei tudo de cor...
O BONECO - Conta, conta o que sabes!...
A BONECA - Só há uma coisa que eu não sei e que também aconteceu comigo...
O BONECO - O que foi?
A BONECA - Não sei explicar a razão por que são tão pequenas as pessoas que vêm todas as
noites ver o espectáculo!...
O BONECO - (Ri.) São assim tão pequenas porque ainda não chegaram a grandes...As pessoas pequenas chamam-se crianças.
A BONECA - Isso não sabia eu...Era a única coisa que eu não tinha sido capaz de compreender!...Via umas pessoas maiores e outras mais pequenas, e não sabia a razão.
O BONECO - Ah! Ah! Ah!
A BONECA - Naturalmente estás-me a enganar?...
O BONECO - Não te estou a enganar, não...estou a rir-me do que terás para contar se não sabias
que as pessoas antes de serem grandes começam por ser pequeninas!...(Ri.)
Almada Negreiros
in Antes de Começar
Colecção Baratinha, Raiz Editora, 1995
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4 comentários:
Era um bom pândego... este Almada Negreiros! Bem se governou com o Estado-Novo! Chamem-lhe tolo! JCN
É uma passagem que bem retrata em Almada Negreiros O valor da ingenuidade
A ingenuidade inocente, julgada pelo Homem mais pelas suas perguntas do que pelas suas respostas, como diz Voltaire.
Grato Liliana.
Um abraço.
Olá Liliana,
Já faltava este texto para bem reflectir, como "bonecos" que ganharam vida no sonho que sonharam de tudo quanto descobriram, de olhos abertos cheios de sede de saber...
E já faltava também que Almada dissesse que não sabíamos, então, que a ingenuidade "ganha" ao conhecimento... e vale mais do que a esperteza que nos convence do contrário...
Um beijo aos dois
E um sorriso:)
Por trás desta inocente ou aparente "ingenuidade", quanta perversidade... assolapada! Quem não te conhecesse, Almada! Que sardónica era a tua expressão plástica e verbal! Tinhas génio, indiscutivelmente, mas que malbarataste com as tuas... felonias. Mas não esquecerás! São pessoas como tu... que levam tempo a morrer. Será que morrem mesmo?!... JCN
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