O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 6 de outubro de 2009

Antes de Começar

O BONECO - Já por várias vezes fomos os dois juntos dentro da mesma algibeira!...
A BONECA - É verdade!...Nesse tempo não sabia que tu eras como eu...
O BONECO - É verdade!...nem eu!...e podíamos ter falado tanto, dentro da algibeira!...Fartei-
me de puxar por ti!...
A BONECA - Eu não sabia que eras tu!
O BONECO - Era eu!
A BONECA - Porque não me disseste ao ouvido?
O BONECO - Eu não sabia que tu ouvias!
A BONECA - Pois ouvia!
O BONECO - E tu nunca te aborrecias de estar sempre na posição em que o Homem te tinha dei-
xado?
A BONECA - Punha-me a pensar...Pensei muito! Pus por ordem todas as coisas que aconteceram
comigo...Sei tudo de cor...
O BONECO - Conta, conta o que sabes!...
A BONECA - Só há uma coisa que eu não sei e que também aconteceu comigo...
O BONECO - O que foi?
A BONECA - Não sei explicar a razão por que são tão pequenas as pessoas que vêm todas as
noites ver o espectáculo!...
O BONECO - (Ri.) São assim tão pequenas porque ainda não chegaram a grandes...As pessoas pequenas chamam-se crianças.
A BONECA - Isso não sabia eu...Era a única coisa que eu não tinha sido capaz de compreender!...Via umas pessoas maiores e outras mais pequenas, e não sabia a razão.
O BONECO - Ah! Ah! Ah!
A BONECA - Naturalmente estás-me a enganar?...
O BONECO - Não te estou a enganar, não...estou a rir-me do que terás para contar se não sabias
que as pessoas antes de serem grandes começam por ser pequeninas!...(Ri.)

Almada Negreiros
in Antes de Começar
Colecção Baratinha, Raiz Editora, 1995

4 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Era um bom pândego... este Almada Negreiros! Bem se governou com o Estado-Novo! Chamem-lhe tolo! JCN

rmf disse...

É uma passagem que bem retrata em Almada Negreiros O valor da ingenuidade

A ingenuidade inocente, julgada pelo Homem mais pelas suas perguntas do que pelas suas respostas, como diz Voltaire.

Grato Liliana.

Um abraço.

Anónimo disse...

Olá Liliana,

Já faltava este texto para bem reflectir, como "bonecos" que ganharam vida no sonho que sonharam de tudo quanto descobriram, de olhos abertos cheios de sede de saber...

E já faltava também que Almada dissesse que não sabíamos, então, que a ingenuidade "ganha" ao conhecimento... e vale mais do que a esperteza que nos convence do contrário...

Um beijo aos dois
E um sorriso:)

João de Castro Nunes disse...

Por trás desta inocente ou aparente "ingenuidade", quanta perversidade... assolapada! Quem não te conhecesse, Almada! Que sardónica era a tua expressão plástica e verbal! Tinhas génio, indiscutivelmente, mas que malbarataste com as tuas... felonias. Mas não esquecerás! São pessoas como tu... que levam tempo a morrer. Será que morrem mesmo?!... JCN