terça-feira, 22 de abril de 2008
Forward de Gomes Leal
*AGUA FURTADA D'UM ORIGINAL*
(A Bruno Blue de Carvalho)
Eu moro altivo é só n'uma trapeira,
Onde as pennas das pombas deixam rastros;
Exposta todo o dia á soalheira...
E onde passa dormindo a vida inteira,
Nas visinhanças limpidas dos astros!
Como na era feliz das serenadas,
As graves castellãs nos seus balcões,
E gothicas varandas recostadas...
--Vejo, em baixo, passar as cavalgadas,
Os enterros e as lentas procissões!...
Professo o culto só do _far niente_
Deitado, todo o dia, num colchão...
Na posição immovel d'um vidente...
Fumando o meu cachimbo, eternamente,
Com os tranquillos modos d'um sultão.
Ó filhas do _spleen_ malfadadas
Vãs poesias sem razão nem senso!
_Ó sebentas_ do estudo empoeiradas,
E tristes quaes sultanas despresadas,
A quem o grão senhor não deita o lenço!...
E vós teias d'aranhas inquietos
Tecidos, onde o sol brilha e seduz!...
Ó Musas que inspiraes os meus sonetos!
Qual foi o deus, ó astros dos meus tectos!
Que vos creou ao seu _fiat lux_!?
Sois vós que me escondeis, qual caracol,
E servís de cortina e bambinellas...
Quando eu declamo involto n'um lençol,
E as visinhas que estão tomando o Sol
A espreitar-me se põe entre as janellas!...
Ali tenho um cachimbo de cigano
Sobre uns versos que fiz a uma Felicia...
E onde puz um retrato de Trajano,
Dentro d'um casacão diluviano,
Soffrendo como Cesar de calvicia!
Nas paredes estão phrases symbolicas,
E aqui e ali borrados a carvão:
Uma Venus com ar de grandes colicas,
Um santo d'umas barbas apostolicas,
E dous frades jogando o bofetão!
Mais ao pé, tenho as cartas de namoro,
E uma Biblia mui velha onde no fim...
Se pinta o Padre Eterno, em nuvens d'ouro...
Tendo n'um grande pé chinello mouro,
E vestido com ar de mandarim!...
Defronte ri sinistra uma caveira,
A que puz uns bigodes com cortiça...
E d'um truão a loura cabelleira...
E me acompanha a rir da vida inteira
Como um Marte do Papa ajuda á missa!
Ao lado mora-me um visinho manco
Que faz dos sinos unico regallo...
E gosa da união d'um saltimbanco,
Que anda pintado de vermelho e branco,
E toda a noute canta como um gallo.
Defronte uma visinha costureira,
Doce lyrio que treme a um vento vario...
Que canta a manhã toda e a tarde inteira...
E tem deixado cá para a trapeira
Duas vezes fugir o seu canario!...
Toda a noute o sineiro tem secretos
Desejos de espreitar como é que eu passo!...
Imita o som dos sinos indescretos...
E canta, n'uma voz que abala os tectos,
Ao som das cambalhotas do palhaço!
E assim eu vivo só n'uma trapeira...
Onde as pennas das pombas deixam rastros...
Exposta todo o dia á soalheira,
E onde passo dormindo a vida inteira,
Nas visinhanças limpidas dos astros!
Gomes Leal
(A Bruno Blue de Carvalho)
Eu moro altivo é só n'uma trapeira,
Onde as pennas das pombas deixam rastros;
Exposta todo o dia á soalheira...
E onde passa dormindo a vida inteira,
Nas visinhanças limpidas dos astros!
Como na era feliz das serenadas,
As graves castellãs nos seus balcões,
E gothicas varandas recostadas...
--Vejo, em baixo, passar as cavalgadas,
Os enterros e as lentas procissões!...
Professo o culto só do _far niente_
Deitado, todo o dia, num colchão...
Na posição immovel d'um vidente...
Fumando o meu cachimbo, eternamente,
Com os tranquillos modos d'um sultão.
Ó filhas do _spleen_ malfadadas
Vãs poesias sem razão nem senso!
_Ó sebentas_ do estudo empoeiradas,
E tristes quaes sultanas despresadas,
A quem o grão senhor não deita o lenço!...
E vós teias d'aranhas inquietos
Tecidos, onde o sol brilha e seduz!...
Ó Musas que inspiraes os meus sonetos!
Qual foi o deus, ó astros dos meus tectos!
Que vos creou ao seu _fiat lux_!?
Sois vós que me escondeis, qual caracol,
E servís de cortina e bambinellas...
Quando eu declamo involto n'um lençol,
E as visinhas que estão tomando o Sol
A espreitar-me se põe entre as janellas!...
Ali tenho um cachimbo de cigano
Sobre uns versos que fiz a uma Felicia...
E onde puz um retrato de Trajano,
Dentro d'um casacão diluviano,
Soffrendo como Cesar de calvicia!
Nas paredes estão phrases symbolicas,
E aqui e ali borrados a carvão:
Uma Venus com ar de grandes colicas,
Um santo d'umas barbas apostolicas,
E dous frades jogando o bofetão!
Mais ao pé, tenho as cartas de namoro,
E uma Biblia mui velha onde no fim...
Se pinta o Padre Eterno, em nuvens d'ouro...
Tendo n'um grande pé chinello mouro,
E vestido com ar de mandarim!...
Defronte ri sinistra uma caveira,
A que puz uns bigodes com cortiça...
E d'um truão a loura cabelleira...
E me acompanha a rir da vida inteira
Como um Marte do Papa ajuda á missa!
Ao lado mora-me um visinho manco
Que faz dos sinos unico regallo...
E gosa da união d'um saltimbanco,
Que anda pintado de vermelho e branco,
E toda a noute canta como um gallo.
Defronte uma visinha costureira,
Doce lyrio que treme a um vento vario...
Que canta a manhã toda e a tarde inteira...
E tem deixado cá para a trapeira
Duas vezes fugir o seu canario!...
Toda a noute o sineiro tem secretos
Desejos de espreitar como é que eu passo!...
Imita o som dos sinos indescretos...
E canta, n'uma voz que abala os tectos,
Ao som das cambalhotas do palhaço!
E assim eu vivo só n'uma trapeira...
Onde as pennas das pombas deixam rastros...
Exposta todo o dia á soalheira,
E onde passo dormindo a vida inteira,
Nas visinhanças limpidas dos astros!
Gomes Leal
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3 comentários:
Grande, grande Gomes Leal...
Vi hoje o blog e parabéns pelo teor cultural subjacente.
Abraços.
Gomes leal é um ginsana para a poesia.
Obrigada sátiro, pelo elogio (ou seria setírico). Com o "subjacente"quase aposto que é jurista!
Abraços
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