O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 19 de julho de 2010

quando a morte me levar não ergam bandeiras negras.
encham sim os copos com vinho;
mas cuidado que a Gula azeda a garganta!


Ó Fascinados Produtores de Lixívia!
Será que um dia da vossa produção dará para desinfectar o mundo?
Então dois dias
Que venham lá três! Três dias sem sair de casa
Três hipóteses para sobreviver
Três terços de manhã à tarde e à noite
Esta mosquitagem vai toda de uma vez!

O estudante precisa de um canudo
E eu preciso de um canudo para bater no estudante
Aprender é aqui
De A a Z nas estantes
Como o borrachão nas adegas
A teoria não muda a fralda a ninguém
Não foi preciso esperar pela luz
Eu nunca me borrei!
Sou auto-suficiente

Na tropa toquei clarim e mandei o exército regressar
Elogiaram-me o pescoço
Que daria para bom laço
Disseram
A sorte é que tenho amigos corruptos
E num empurrão elevaram-me a mártir

Os heróis só aparecem nas estreias
A mim espetaram-me com bíblias na mão
Para vender de porta a porta
Na primeira porta que bati beijaram-me os pés
Só porque eu tinha cabelos compridos e as vestes compridas

Mudei de marca de cigarros
Os intelectuais souberam logo!

Eu cá sou de mudanças
Vou ao Paulista porque posso ficar a dever
E tem boas entradas

Demitido sou noutras ruas
Um dia engoli uma bola de queijo
E ninguém me deu valor
Toquei Bach com os dedos metidos na boca
E fizeram-me olhos negros

A inteligência não sai na bica da fonte
Acreditem! Eu já tentei!

Meu cérebro gorduroso apostou tudo numa rixa
Se disser que ganhei minto

O maior pecado é não pecar e ver os outros pecar
O maior cemitério é o que está a um palmo acima das nossas cabeças
Ou talvez menos
Lindas paisagens!
Lindos azulejos!
Lindos seios que aquela mulher tem!
O eco ecoa sempre que a ponte me tenta

Não!
Não vou acender o isqueiro quando houver fuga de gás!
Não vou a Roma só porque dizem que lá a fé é mais barata!
Aprendi a andar de bicicleta tarde
Mas olhem como eu pedalo! Faço curvas
Contra-curvas
Tiro as mãos do volante
Sabia que é tudo uma questão de sistemas emparelhados?

Domino papagaios como nunca dominei uma mulher
Fico para ali horas a vê-lo voar
E eu na terra
A trocar os fios da corrente eléctrica a ver no que dá

A ganância já se vende nas bancas
Os jornais falarão de mim quando não houver massacres
Manifestações
Vítimas violadas
Santos roubados
Congressos de pívias
Estarei eu
Diante e exposto
A dar sangue aos cabeçalhos
A dar cursos de divergências
A tomar o lado do contraditório

E tudo: ah! Que lindas são as paisagens maciças!
Os ventos nem conseguem mexer uma folha!
Nada fecunde
Nada transmite ao Outro o que o Outro disse
Nada mais vai parar aos museus
Toda a História será revista por bisontes
As clínicas a tornarem-se casas de passe
Nada será mais Ontem
O Futuro tem a data do século anterior
Nos blocos operatórios joga-se à bisca

Quem mexer na minha cabeça terá de responder!
E aviso que tenho amigos maus
Fazem truques de maldade
Mastigam livros inteiros do Saramago em vez de chiclete!

A minha missão é pôr fim aos fingimentos
Tenho um mindinho que detecta tudo
Quem se mexer está a levar!

Os meus lábios estão inclinados para a morte
Mas não me empurrem!
A minha única moral é ser contra os moralistas
Tenho uma mulher que me abre o lençol
Prepara-me o lanche e regressa ao mar

O mito há-de ser mitigado
Colocado na batedeira a mil rotações

Não julguem que eu não amo
Amo! Amo os glaciares que estão derretendo
Amo os ombros do homem que carrega
Amo a liga da mulher oferecida
Amo o espectáculo dos amantes
Amo o pecador à saída da igreja
Amo a plasticidade com que me beijam!

Ó noites fartas ó noites vadias!
Tomai meu pulso enquanto bate
O elixir já se esgotou

Restas-me tu ó mesa dos condenados!
Ó licenciada em vampirismo!
Verifica-me o sal antes de beijar a pedra
Esta pedra que aqui vês a servir de janela
Tenho pena que não haja árvores para subir
Era puto e lembro-me que subia subia subia

Agora
Que a tísica sede me toma
Fico aqui
Na escrivaninha do tempo
No silêncio intemporal
Coleccionando raridades
Lançando beijos às moças das fábricas

do meu livro Sou um Louco Que Sabe Tocar Acordeão

2 comentários:

Anónimo disse...

És "um louco que sabe tocar acordeão" e eu gosto de te ouvir tocar!

Um abraço, Flávio

platero disse...

sabes que não podia deixar de gostar

abraço