domingo, 11 de julho de 2010
Prefácio a "Bússola", de Flávio Lopes da Silva, que terei a honra de apresentar na Feira do Livro de Barcelos, 15 de Julho, às 21 h
Um livro que nos convoca ao indomável
Tive a felicidade de conhecer a magnífica poesia de Flávio Lopes da Silva no blogue da revista Nova Águia, onde foi a grande revelação, e de o ver depois honrar o meu blogue pessoal, Serpente Emplumada, bem como o blogue da revista que dirijo, Cultura Entre Culturas, da qual será também colaborador.
Flávio Lopes da Silva é um poeta em todo o sentido da palavra e um dos grandes poetas vivos da língua portuguesa, com quatro obras: Nós vezes Nós, Líquida Obsessão, Sétimo Vão e Sou Um Louco Que Sabe Tocar Acordeão. Poeta na forma, no conteúdo e, sobretudo, na vida selvagem que lhe inflama e move a escrita, indomável por escolas, maneirismos ou desejo de reconhecimento fácil. Tudo o que Flávio escreve vem directamente da inspiração, inquietação e sinceridade – “Diz o que tens a dizer. Nem que tenhas de cuspir a tua própria língua” - de uma consciência nua e sensível aos cumes e abismos da existência e da vida, que os explora intensamente, não se furtando às suas luzes e sombras, ao seu absurdo, drama e tragédia, mas também às suas redenções, mormente por via do amor, da antecipação da morte e da própria poesia, vias instantâneas de fecunda libertação: “Poesia: quando te bebo, descubro um filho dentro de mim”.
O poeta oferece-nos aqui um livro de aforismos / euforismos, não menos admiráveis que os seus poemas. Um aforismo é uma sentença extremamente concisa, que condensa em poucas palavras um sentido ou sentidos amplos e profundos, nascidos de uma intuição fulgurante e súbita. No aforismo a expressão é o mais íntima possível à fonte originária de onde brota, numa espontaneidade não sacrificada à distância e intervalo da reflexão, que frequentemente faz com que a forma e o conteúdo da escrita nasçam do arrefecimento do vislumbre nos moldes dos conceitos transaccionáveis no comércio da vida e da linguagem. No aforismo, que etimologicamente remete para uma delimitação, um dizer extremamente conciso demarca-se do fluxo corrente do palavreado mental e verbal para deixar ver o que mais importa, como que num refluxo do discurso para a quinta-essência de uma visão que o transcende e suspende. No aforismo, o pensamento e a palavra despem-se de todo o acessório para repousarem na nudez essencial.
Mas estes aforismos são euforismos, notável neologismo que remete para a experiência de um bom transporte, de um feliz arrebatamento, de uma euforia. O que é bem apropriado a um exercício em que o autor escreve tendencialmente na bem-aventurança de um sair de si e/ou dos limites comuns do pensamento e da linguagem dos homens. Este livro apresenta-se assim como um exercício de alegria, pela qual triunfa desses fundos mais dolorosos ou opressivos da vida que ironicamente explora e dos quais afinal se nutre, numa subtil alquimia que converte o mais denso chumbo em ouro e asas. Exercício de cada instante, onde escrever é sem antes nem depois: “Não tenho nem passado nem futuro / Represento o instante em que escrevo”.
Filho da nobre linhagem das grandes palavras (vac) sapienciais indianas, das sentenças pré-socráticas e do seu eco no pensamento ocidental (Pascal, Novalis, Nietzsche, Pascoaes, José Marinho, entre tantos outros), estes aforismos euforísticos e eufóricos são afinal a Bússola que sempre indica a direcção por mais errante, extraviado e transviado que pareça o caminho. Na verdade, se numa primeira leitura tudo aparenta apontar neste livro em direcções diversas e até opostas, o seu lento madurar revela uma direcção de conjunto, que milagrosamente emerge da própria dispersão em que as palavras e os sentidos se entretecem. E que direcção? A da edificação do homem que é o verdadeiro livro a ler, escrever e ser, pelo qual se podem e devem sacrificar todas as bibliotecas: “Não tenhas receio de sacrificar uma biblioteca inteira para seres um bom livro”.
Esse homem, por ser autêntico, sabe a morte e o delito de que é feito, sabe que nascer é cisão e morte que nos destina a morrer, sabe que a ex-istência é ferida aberta no corpo do real que só sara desaparecendo: “Respira: ergue as paredes do teu túmulo”; “Há na morte uma verdade: a delinquência de havermos existido”.
Mas esse mesmo homem é o que se aniquila e morre anulando a morte na plena intensidade da experiência de estar aí: “Aquele que escuta a terra no ponto alto da sua gravidez é o mesmo homem que por amor se fez cadáver”. Isso acontece no instante, a cada instante: “Nunca te esqueças que és fruto de um instante e que nesse instante todas as sementes se calaram para te ouvir chegar”. Instante em que o eterno de nós em nós explode, se, plenamente receptivos, o não buscarmos: “Não procures a eternidade. A qualquer momento ela explodirá dentro de ti”. Aí nos libertamos da estreiteza de nos presumirmos: “Ninguém é estúpido; Estúpido é: pensarmos que somos Alguém”.
Homem autêntico e livre, sobretudo de si, assume toda a autoridade para desmascarar o ridículo de uma história humana que oculta uma verdade chamada amor: “A História dos homens é ridícula, pois na escola nunca ouvi contarem casos de amor”. Se ao nascer não soube ao que vinha – “Quando nasci não me avisaram deste mundo” - , agora sabe que o mundo dos homens só vale se nele a soberania for outra: “Quando o amor for uma política, eu votarei”. Então haverá a cura e ressurreição que a medicina desconhece, pois confunde a saúde com a normalidade do homem rastejante: “A medicina está longe de me dizer qual o melhor remédio para ressuscitar as asas”.
Muito mais se poderia e deveria dizer sobre um livro que nos convoca ao melhor de nós mesmos, ao indomável, mas a leitura destas palavras luminosas urge. Escutemos apenas, como preâmbulo, a nobre e bela exortação que nos dirige:
“Que os teus abraços abertos sugiram o voo e que na brandura do sono a tua cabeça seja o ceptro onde nenhum servo põe a mão, pois só tu és águia na raiz do firmamento”.
E recolhamo-nos, pois “A cada instante o silêncio liga a sua ignição”.
Boa viagem!
Tive a felicidade de conhecer a magnífica poesia de Flávio Lopes da Silva no blogue da revista Nova Águia, onde foi a grande revelação, e de o ver depois honrar o meu blogue pessoal, Serpente Emplumada, bem como o blogue da revista que dirijo, Cultura Entre Culturas, da qual será também colaborador.
Flávio Lopes da Silva é um poeta em todo o sentido da palavra e um dos grandes poetas vivos da língua portuguesa, com quatro obras: Nós vezes Nós, Líquida Obsessão, Sétimo Vão e Sou Um Louco Que Sabe Tocar Acordeão. Poeta na forma, no conteúdo e, sobretudo, na vida selvagem que lhe inflama e move a escrita, indomável por escolas, maneirismos ou desejo de reconhecimento fácil. Tudo o que Flávio escreve vem directamente da inspiração, inquietação e sinceridade – “Diz o que tens a dizer. Nem que tenhas de cuspir a tua própria língua” - de uma consciência nua e sensível aos cumes e abismos da existência e da vida, que os explora intensamente, não se furtando às suas luzes e sombras, ao seu absurdo, drama e tragédia, mas também às suas redenções, mormente por via do amor, da antecipação da morte e da própria poesia, vias instantâneas de fecunda libertação: “Poesia: quando te bebo, descubro um filho dentro de mim”.
O poeta oferece-nos aqui um livro de aforismos / euforismos, não menos admiráveis que os seus poemas. Um aforismo é uma sentença extremamente concisa, que condensa em poucas palavras um sentido ou sentidos amplos e profundos, nascidos de uma intuição fulgurante e súbita. No aforismo a expressão é o mais íntima possível à fonte originária de onde brota, numa espontaneidade não sacrificada à distância e intervalo da reflexão, que frequentemente faz com que a forma e o conteúdo da escrita nasçam do arrefecimento do vislumbre nos moldes dos conceitos transaccionáveis no comércio da vida e da linguagem. No aforismo, que etimologicamente remete para uma delimitação, um dizer extremamente conciso demarca-se do fluxo corrente do palavreado mental e verbal para deixar ver o que mais importa, como que num refluxo do discurso para a quinta-essência de uma visão que o transcende e suspende. No aforismo, o pensamento e a palavra despem-se de todo o acessório para repousarem na nudez essencial.
Mas estes aforismos são euforismos, notável neologismo que remete para a experiência de um bom transporte, de um feliz arrebatamento, de uma euforia. O que é bem apropriado a um exercício em que o autor escreve tendencialmente na bem-aventurança de um sair de si e/ou dos limites comuns do pensamento e da linguagem dos homens. Este livro apresenta-se assim como um exercício de alegria, pela qual triunfa desses fundos mais dolorosos ou opressivos da vida que ironicamente explora e dos quais afinal se nutre, numa subtil alquimia que converte o mais denso chumbo em ouro e asas. Exercício de cada instante, onde escrever é sem antes nem depois: “Não tenho nem passado nem futuro / Represento o instante em que escrevo”.
Filho da nobre linhagem das grandes palavras (vac) sapienciais indianas, das sentenças pré-socráticas e do seu eco no pensamento ocidental (Pascal, Novalis, Nietzsche, Pascoaes, José Marinho, entre tantos outros), estes aforismos euforísticos e eufóricos são afinal a Bússola que sempre indica a direcção por mais errante, extraviado e transviado que pareça o caminho. Na verdade, se numa primeira leitura tudo aparenta apontar neste livro em direcções diversas e até opostas, o seu lento madurar revela uma direcção de conjunto, que milagrosamente emerge da própria dispersão em que as palavras e os sentidos se entretecem. E que direcção? A da edificação do homem que é o verdadeiro livro a ler, escrever e ser, pelo qual se podem e devem sacrificar todas as bibliotecas: “Não tenhas receio de sacrificar uma biblioteca inteira para seres um bom livro”.
Esse homem, por ser autêntico, sabe a morte e o delito de que é feito, sabe que nascer é cisão e morte que nos destina a morrer, sabe que a ex-istência é ferida aberta no corpo do real que só sara desaparecendo: “Respira: ergue as paredes do teu túmulo”; “Há na morte uma verdade: a delinquência de havermos existido”.
Mas esse mesmo homem é o que se aniquila e morre anulando a morte na plena intensidade da experiência de estar aí: “Aquele que escuta a terra no ponto alto da sua gravidez é o mesmo homem que por amor se fez cadáver”. Isso acontece no instante, a cada instante: “Nunca te esqueças que és fruto de um instante e que nesse instante todas as sementes se calaram para te ouvir chegar”. Instante em que o eterno de nós em nós explode, se, plenamente receptivos, o não buscarmos: “Não procures a eternidade. A qualquer momento ela explodirá dentro de ti”. Aí nos libertamos da estreiteza de nos presumirmos: “Ninguém é estúpido; Estúpido é: pensarmos que somos Alguém”.
Homem autêntico e livre, sobretudo de si, assume toda a autoridade para desmascarar o ridículo de uma história humana que oculta uma verdade chamada amor: “A História dos homens é ridícula, pois na escola nunca ouvi contarem casos de amor”. Se ao nascer não soube ao que vinha – “Quando nasci não me avisaram deste mundo” - , agora sabe que o mundo dos homens só vale se nele a soberania for outra: “Quando o amor for uma política, eu votarei”. Então haverá a cura e ressurreição que a medicina desconhece, pois confunde a saúde com a normalidade do homem rastejante: “A medicina está longe de me dizer qual o melhor remédio para ressuscitar as asas”.
Muito mais se poderia e deveria dizer sobre um livro que nos convoca ao melhor de nós mesmos, ao indomável, mas a leitura destas palavras luminosas urge. Escutemos apenas, como preâmbulo, a nobre e bela exortação que nos dirige:
“Que os teus abraços abertos sugiram o voo e que na brandura do sono a tua cabeça seja o ceptro onde nenhum servo põe a mão, pois só tu és águia na raiz do firmamento”.
E recolhamo-nos, pois “A cada instante o silêncio liga a sua ignição”.
Boa viagem!
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4 comentários:
parabéns, Flávio!
São palavras como estas que leio - as de amizade e as de poesia - que me fazem acreditar que tudo é possível.
felicidades ao autor, que felizmente nos tem brindado com as suas inspirações aqui no blog.
abraço, Paulo*
bom dia!
é com grande felicidade que tenho as palavras do Paulo Borges no refácio do meu livro, bem como a sua presença no lançamento do mesmo.
desde já convido todos o autores e e leitores deste blogue a assistir à apresentação do livro Bússola que decorrerá no dia 15 de julho em barcelos no âmbito da feira do livro.
abraço a todos!
flávio
Sinto-me cada vez mais honrado por ter contribuído para tanta coisa; desde prefaciar o louco que vive num livro em forma de acordeão, até na caminhada te ter levado a conhecer um pensador lusófono que hoje te honra com todas as letras, naquele que é o livro que reclamo como sendo um livro de um livre pensador em que te tornas com uma arma entre dedos onde inscreves a loucura das palavras sãs.
Duplamente encantado por acreditar na magia dos caminhos.
Que amanhã seja mais do um simples hoje, ontem.
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