O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 8 de junho de 2008

pergunta

(a António Quadros)

*

Na cela onde medito,

Erodindo-se a vida,

Recordo, e deixo escrito

O enigma da partida.

A própria situação

Em que me encontro agora

É de luz e prisão,

É de mágoa e de glória.

O respirar é brando

E revulsivo o olhar —

Ainda vislumbrando

Perigos sem lugar.

A terra que murmura

Abraçando os sinais

De uma noite escura,

Esfuma-se no cais...

Tudo se depura.

Sobe a voz ao vento

E trémula, insegura –

Na canção do tempo

O silêncio escoa –

A boca se esvazia

E — leve — a coroa

De espinhos caída.

O som de uma pluma,

Nem tanto, falava,

Arcaico, e nenhuma

Palavra se escutava.

Contemplo-me, calmo,

A respirar calado.

Ouço-me, sossegado:

Já não posso dar-me...

E, porém, a luz

Que diviso agora

Nem sequer reduz

A beleza da hora.

Vejo a longa sala

Com as almas dentro:

Ora ocas de gala,

Ora em pensamento...

E porém o peso

Que me fecha os olhos

Não o sinto ou penso:

Pára-nos, e foge-nos.

Cinzas do apagado

Fogo se atearam

E é só luz a chama

Do espírito no ar:

Já não anda cego

O navio, fica

Vazio; surpreso,

O enigma não

Se explica.

O lábio está preso

À porta fechada;

A cela onde rezo

Esfria, abandonada.

Mas quem é que fala

Commigo e, ao sê-lo,

Porque não me cala?

Porque vou sabê-lo?

...

Depois era o céu

Límpido do sul

Delido no seu

Infinito azul.

4 comentários:

Anónimo disse...

Um abraço, Francisco, de infinito azul de céu e mar... De memórias que alimento nas salas vazias por onde o meu pensamento andou perdido.

Anónimo disse...

A cela onde leio traz este belo som de antes. Soantes. E é infinito o seu sopro.
...Depois era o som límpido de Antes delido no seu
Infinito Silêncio...

Depois de o ler, na cela onde leio, entra a Beleza.
Olho-a para que ela apague tudo e deixe de novo ouvir o que foi soprado.
Obrigada

Paulo Borges disse...

Belo poema ! Grato e um abraço, Francisco.
Resistes a Angola ou ela inspira-te ?

fas disse...

Obrigado pelos vossos comentários.
Paulo: estou em casa. Espero que nos visites aqui um dia destes. Com a Nova Águia nas mãos.