O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 24 de junho de 2008

O rei-Saudade

"[fala de Pedro] Mas um dia, "Alguém" desceu ao fojo: - "Alguém" que era da morte e era da vida; e mais - de além da morte e além da vida... E eu vi a Saudade ao pé de mim. Nunca mais me deixou: vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue. Fez-se Inês. Por isso sabes toda a minha vida. Por isso eu sei a morte como tu. Sou o homem que viveu a vida e a morte: sou o homem-Saudade, o rei-Saudade..."
- António Patrício, Pedro o Cru, in Teatro Completo, Lisboa, Assírio & Alvim, 1982, p.167.

Uma obra belíssima e genial, como quase tudo em António Patrício. Dramaturgia iniciática. Tive a felicidade de a ver encenada no D.Maria II em 1982.

6 comentários:

Anónimo disse...

Sobre o Pedro e Inês da Olga Roriz para juntar ao seu:

"...ao governar o Amor em vez de um rei, o inumano tomou conta desse homem particular chamado Pedro, um tal que amou desmesuradamente Inês, e a História de Portugal conheceu, com esse monarca, o carácter trágico que outros reinos e outros mitos não acrescentaram à História normal e repetitiva das sucessões no trono e ao trono. Pedro interrompe a linearidade da história consagrando e inaugurando o primado das rainhas mortas sobre as vivas, do Amor sobre o poder político. O reinado da desrazão sobre a lógica governativa e dos sentimentos. Pedro não se sente poder. Sente-se possuído. Pedro não quis matar homens, quis imortalizar uma mulher, não quis vencer outros semelhantes, quis tão só aceitar o visitante estranho que é o Amor quando se torna hóspede de todos os sentidos e de todas as palavras. Pedro não é um homem de Estado, é o estado do amor. Mas, então, em que consiste tal estado de inumanidade? Da inumanidade do Amor?
Esta pergunta faz sentido se pensarmos que este mito, o mito de Pedro e Inês, que é um mito do amor, se encontra ligado à experiência mais banal e largamente divulgada no nosso mundo ocidental: quem é que não se sentiu apaixonado ou infeliz por não o estar, ou no mínimo curioso de saber se estaria ou não? Repito esta pergunta feita por Denis de Rougemont, porque ela evidencia o carácter filosófico e não só emocional desta questão que a alma se coloca a si mesma.
Um príncipe sem atenção ao mundo exterior, sem concentração no mundo que não seja o que governa toda a sua alma raptada por uma imagem, por uma presença de que não se defende, mas a que se entrega, não é rei, é o amador com coisa amada. Mas essa imagem de amador em fuga para dentro dos claustros da alma que se reúne a outra é, como em todos os grandes mitos do amor, a figura conjunta do Amor e da Morte. A inumanidade do Amor está em ela ser a Morte disfarçada nos actos excessivos daqueles que a sentem. Inês é a Amada mas a Morte. Antes de ser morta Inês implora-a a Pedro caso o destino os desligasse. Contra os duros mandados de teu pai, / contra importunas vozes dos que podem / mudar acaso teu constante peito (…) com teu armado peito envolta em sangue/ M’ arranques deste corpo, que não veja / tão triste dia, tão cruel mudança; / eu tomarei por doce a minha morte: / por piedoso amor, tal crueldade. Entre a Morte e o Amor está Pedro. Pedro promete matar o pai e está como Inês, indefeso, porque se entregou às duas. Primeiro a Inês, depois à Morte. Nunca ele equacionou razões. Ele detém-se no sonho e no sono enfeitiçado. (...)
No palco [do bailado de Olga Roriz]corre um regato que se acalma em lago _ também as peças ou órgãos da Natureza criam paisagens para descansarem do devir do tempo _ e onde Pedro e Inês se encontram para se re - unirem no encalço do amor e do corpo. O efeito do Amor na água, do entrelaçamento e da fusão dos corpos corre como a água, na água, no rio da memória. Pedro ama, na água de Mnemósina, Inês. O Amor é, entre eles, a unidade e o terceiro. O que os funde. O que os expande. Inês oferece-se em fuga. Ela é móvel como uma alma. Ela só é alma. Pedro procura-a insaciável. Condoem-se. Envolvem-se. Enovelam-se nos fios frágeis da água interior e exterior. Gorgolejam na mesma água da vida. Penetram-se no abismo físico um do outro. Cria-se no palco uma mistura do "Beijo" de Klimt (o suor dos corpos respinga gotas douradas, em exuberante composição pontista) com o "Grito" de Munch (o grito dos corpos que perdem a individuação e experimentam a forma e o som de grifos ou gárgulas, por onde escorrega a água interna, a água vital). Só os corpos falam. Gemem: não um do outro, mas um para o outro. Acontece no Amor como na dança. Na dança do Amor. Na primeva linguagem da natureza, com arpejos e ritmos puros, na absoluta experiência da Unidade, que é mais do que o sexo. (...)
A seu modo, o corpo de Pedro contém o de Inês. Em verdade nenhuma memória é apenas imaterial, fluxo de palavras ou de imagens. A memória, ao inverso do entendimento, não é meramente representacional. Um ser de memória é um ser que sente a presença de um peso, de uma proximidade material com os outros e as coisas dos outros. Os seres de memória não deixam que se deixe confundir ou apagar esse ausente - presente que vibra como a corda de um violino dentro de nós. O corpo do amante é a catedral onde as mãos retraçam o movimento da génese e da sagração. O corpo é o sagrado da reciprocidade. E um ser de memória não esquece a fusão: afectiva e corpórea.(...)
Termino com uma passagem que, ligeiramente modificada pelo Amor que tomo à sua autora, Maria Gabriela Llansol, fica assim:
Ele sai, e diz-lhe
-Sim – diz-me ela, pousando as mãos nos meus joelhos: - Desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e que seja um homem.
- Alguém que queira ressuscitar para ti?
-Sim. Alguém que tenha para comigo essa memória.(...)"

Agora vou, é tempo do mundo sem Inês e sem Pedro. Depois de um acordar mítico-poético.
Bem-haja!

Maria disse...

Olá Isabel !

Belo texto, que conheço muito bem na integra ... li-o há já algum tempo, no papel como sabes ... e AMEI !

Sorriso ... do tamanho do Amor de Pedro e Inês.

Anónimo disse...

"É o rei-Saudade, Afonso!..."

Anónimo disse...

"A minha dor, Inês, beijo-a nos olhos!...
beijo-a como beijei a tua boca... como – cerrando os olhos na saudade – beijei, beijei, beijei a tua alma... Tudo, tudo foi bom.
(...)
Cada árvore sabe a tua graça. A
tarde cai lembrando o teu sorriso. A terra que tu pisaste alimentou-me: era pão para mim, mais do que pão. Oh! Mas Coimbra foi como uma mãe.
Como se o húmus recebesse a tua carne, floriu todo em saudades – campo e montes... Terra de comunhão carne de Inês."

Anónimo disse...

Também Pascoaes diz que nasceu uma segunda vez pela saudade... O que é a saudade ? Alguém diz ?

Anónimo disse...

E tu "Anónima Mente", queres explicar. Sou toda ouvidos...