O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 10 de junho de 2008

A Aurora Adormecida

"Mensagem: mente agita matéria."
O despertar da mente ocorre pela passagem do sono para o sonho, o do corpo ocorre do sonho interior para o exterior.
Assumindo que é a mente que move o corpo, como separar o seu despertar do despertar do corpo? Como pode despertar o corpo sem que a mente continue desperta: sonhando?
Como se pode valorizar mais o despertar do corpo do que o da mente?
Quando a mente se engana a si mesma, não se apercebendo que está desperta pelo sonho, em que estado se encontra ela? Está desperta ou adormecida pelo próprio sonho?
Quando não se entende que se sonha - durante toda a vida, adormece-se (e sonha-se dentro do próprio sonho), é como regressar ao sono, visto não se saber estar a sonhar, assim como não se sabe estar a dormir - apenas após esse estado. Quando se entende que se sonha, desperta-se, ou melhor, acorda-se*, sabendo-se estar a viver um sonho.
ACORDAR* NÃO É DESPERTAR O CORPO, É ACORDAR O CORPO COM O DESPERTAR DA MENTE: O SONHO.

|*lembrar, estar ou pôr de acordo.|

"Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.
- Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna (...) à minha espera, (...) se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.
- Nem eu! - acudiu Carlos com uma convicção decisiva.
E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. (...) De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:
- Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas.
E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e sínteses da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!
- Oh, diabo!... E eu que disse ao Vilaça e aos rapazes para estarem no Bragança pontualmente às seis! Não aparecer por aí uma tipóia!...
- Espera! - exclamou Ega - Lá vem um «americano», ainda o apanhamos.
- Ainda o apanhamos! Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
- Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma...
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...
A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o «americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia."
Eça de Queiroz, "Os Maias"

- A vida é sonho!
- Sim, mas já se sabe isso.
Falando agora da realidade...

Onde é que eu já vi-vi isto?... - não me refiro, certamente, à teoria, mas ao desacordo entre teoria e prática...

1 comentário:

Unknown disse...

"O sonho? Mas o sonho está dentro da vida. Vivemos o sonho? Vivemos. Sonhamo-lo apenas? Morremos. E a morte está dentro da vida."
Bernardo Soares